Excerto de "O meu vizinho Totoro" de Hayao Miyazaki
Folhas. O Outono são as folhas. O sol vai para a escola e empurra as andorinhas para longe. Tem de ter a secretária limpa para as folhas limpas dos cadernos e para o odor fresco a tipografia dos manuais. A Primavera é apenas a altura em que as árvores escrevem as histórias. No Verão, imprimem-se as cartilhas maternais. No Outono, o Sol começa a soletrar frases e a virar as páginas. Desleixado, e com hábitos um tanto ao quanto porcalhões, molha os dedos com saliva e vira-as devagar. Os caracóis deixam um rasto viscoso sobre os poemas escritos pela luz. O sol não sabe, mas foi ele mesmo quem escreveu aquilo que agora não consegue decifrar.
Excerto de "O Homem que matou Liberty Valance", na altura em que matar era uma questão de honra.
Chama-se erva-cicutária, mas não tem nada a ver com cicuta que matou o sábio grego. É uma planta umbelífera. As flores, minúsculas, estão agrupadas naquilo a que os botânicos chamam de umbelas, palavra que faz lembrar guarda-chuva. São umbelíferas as cenouras e a salsa, mas os alhos, que não são umbelíferas, também têm flores em forma de umbela. Há outras ervas altas a passar perante o olhar fixo no fundo da estrada daquele homem que vai mudar o mundo... o mundo não, vá lá... Portugal. Sim, aquele homem vai mudar Portugal ao fazer a curva tapada por grandes hastes de erva cicutária, erva que nasce muito vulgarmente nas beiras das estradas e caminhos portugueses. Este homem que vai a correr, aconselhado pelo médico por causa da hipertensão que lhe foi diagnosticada não sabe que ao virar daquela umbela branquinha mais espetada se vai espetar contra o primeiro-ministro português que, não sendo natural daquela terra, ali pernoitou por causas que se prendem ao cargo e que não vêm agora ao caso, até porque o ficcionista tem mais em que se preocupar.
Do lado ortogonalmente oposto ao do homem que, por enquanto, ainda não matou Sócrates, nem sei se vai matar, vem esse mesmo, de nome José, senhor de porte elegante e cabelos prateados que, apesar de simples primeiro ministro de um país que apenas foi grande em épocas passadas, já dá nas vistas dos ociosos jornalistas das vaidades mundanas do país ao lado. Naquela hora da manhã, quando os jornalistas ainda não o perseguem (é a vantagem de se ser primeiro ministro num país como este, onde os fotógrafos cor-de-rosa, como qualquer funcionário público, gostam é de passar a manhã na caminha, cansados das noitadas ao lado da Lili Caneças), Sócrates, com a noite mal dormida, passa rente às ervas que recebem indevidamente o nome daquela outra que matou o seu homónimo filósofo grego, mas ignora essas particularidades científicas. Por enquanto, só lhe passa pela cabeça aquela anedota parva que o põe a dizer num hotel, com o seu excelente inglês técnico, tu ti tu tu tu tu, querendo dizer "dois chás para o 222". Ele sabe que a anedota não é sobre ele em particular - basta procurar no Google para ver que outros políticos, como o Lula da Silva, também são escolhidos pelos respectivos governados como personagens principais da anedota, mas não deixa de ser triste. Ele tem os seus defeitos, claro que tem... Quem não tem pecados que atire a primeira pedra, ora raios... É como aquela treta dos favorecimentos que os beiços gordos e peçonhentos da Moura Guedes pretende vender... Mesmo que fosse verdade... repete para si... mesmo que fosse verdade: quem é que em Portugal não vende favores? Quem???
Ao virar a última erva-cicutária daquele lado do caminho, bateu com o homem das Novas Oportunidades. Um simples choque que não traria consequências de maior, não fosse o caso de ambos estarem a grande velocidade e, em termos relativos, terem embatido ao dobro da velocidade média de um homem a fazer jogging, o que no momento foi particularmente grave já que o coração, em momento de diástole, não recebeu o sangue que devia entrar pelas aurículas, pelo que o primeiro caiu no chão, redondo, enquanto no seu cérebro apenas ouvia a sílaba parva de um tu tu tu tu e sobre ele dançavam umbelas brancas e angelicais. Antes de se apagar, ainda pensou que, felizmente, não devia nenhum galo a Esculápio.
O homem das Novas Oportunidades não o reconheceu. Não tinha saldo no telemóvel (estava desempregado e não podia ter esses luxos, mesmo com o subsídio que recebia por andar a estudar de novo) e não ligou para o INEM. Azar. Fugiu dali como um coelho foge da raposa. Ingrato. Cobarde. Mas, à tarde, insuspeito, sentiu-se importante quando deram a notícia na televisão, enquanto rodava entre os dedos o canudo que lhe tinha sido entregue no dia anterior.
"Modern Times", de Charles Chaplin - início.
- Por que escreve poesia em vez de... Romance?... Crônica... Ensaio...?!
- A poesia é sintética. Rápida. É o Big Mac da literatura. As crónicas, essas, já são um bife à café ou uma açorda à alentejana - é fácil de fazer, dá pouco trabalho, é água a ferver, coentros e alho... Um romance exige mais tempo. Muito lume brando.
- É por isso que os portugueses escrevem mais poesia que ficção?
- Poesia é ficção.
- É?
- É.
- É por isso que os portugueses escrevem mais poesia que prosa?
- Não acredito muito nisso. Acho que toda a literatura portuguesa é poesia. E a que não é, não presta.
- Cara: acha que é por isso que os portugueses escrevem mais poemas p'rá titia que romances p'rá vovó?
- Ah! Assim já estamos a falar a mesma língua. Não.
- Não?
- Não acho nada disso. Os portugueses - eu incluído - escrevemos poesia porque não temos tempo para escrever coisas que se pareçam com a verdade. A verdade, ou o seu simulacro, exige tempo. É artesanato. Pode não ser tão apreciado e valorizado quanto a arte, mas exige mais trabalho. Trabalho físico e intelectual, entenda-se. A arte socorre-se apenas da ideia de "génio". Enfim, coisa de preguiçosos. O artesanato tem um valor intríseco maior que a arte - ou, pelo menos, que grande parte da arte... Enfim, e em suma: os portugueses são quase todos escritores de nascença. Mas só podem ser poetas porque não têm vida para serem romancistas, nem ensaístas. Produzem coisas rápidas para serem digeridas com lentidão.
- Quanto demora digerir um hamburguer?
- Não sei. Depende do estômago.
- Quanto demora fazer um hamburguer?
- Não sei.
- Rápido?
- Não sei.
- Fico esclarecido quanto à sua ignorância.
- Fico feliz por ter sido útil.
- ...
- Já agora: quanto tempo leva a fazer um hamburguer?
- Qual?
Confutatis e Lacrimosa, do Requiem de Mozart, John Eliot Gardiner conduzindo os English Baroque Soloists e o Coro Monteverd, Palau de la Musica Catalana, Barcelona, Dezembro de 1991.
A mãe sentava-se no canto. Aborrecido com o seu silêncio acusador, fazia-lhe uma careta, acendia a televisão, aborrecia-se ainda mais, levantava-se e saía. Sem dizer nada. Seguia ao longo da estrada, atravessava os campos sem prestar atenção à erva ou à terra que calcava, ao rio escondido entre salgueiros e choupos ou às torres de tijolo abandonadas, e espreitava o local onde, por vezes, as prostitutas esperavam a paragem de um carro que justificasse a espera. Passava rente a elas, à espera de um comentário ou mesmo de uma proposta. Às vezes acontecia, não a proposta, que não havia tempo para diversões gratuitas, mas a frase solta de quem se esconde atrás de um falso descaramento. Ou de um verdadeiro, se este for a acção de perder a cara, de diluir a face numa vergonha misturada de coragem, desespero e fraqueza. Mas, isso, ele não entendia. Tinha alguma pena delas, mas não o bastante para as olhar como seres humanos, como, de facto, não se olhava a si mesmo. Ele era o que passava, o que agora desejava. O que fazia.
Não queria saber de futuros nem do bem que todos lhe diziam querer. Preferia fugir pela cidade e chegar tarde a casa. A mãe, sempre no canto, não lhe fazia perguntas. Por onde andaste, que fizeste, nada. O pai chegava mais tarde ainda. Com ele falava. Pouco, mas falava, de raparigas, do futebol e, infelizmente, por vezes, da escola, a que faltava invariavelmente. Tal como, por vezes, lhe oferecia a tareia que, na escola, se dizia não receber. Mas preferia a mão pesada do pai ao silêncio acocorado da mãe.
O pai seguia em primeiro lugar para o quarto, cansado, enquanto a mãe parecia de volta ao canto depois de nem ter sido possível reparar que de lá tivesse saído.
Ele também não ia logo para a cama. A vida de mandriice trazia-lhe a leve sensação de que o tédio era o maior dos prazeres porque exigia a procura de entretenimento, o que era a melhor forma de se entreter, já que chegando o divertimento, de novo se instalava o tédio. Mas era tudo uma sensação. Não se julgue que pensava nisso – e muito menos por estas palavras. Até porque conhecia poucas palavras, incluindo tédio. Entretenimento, saberia vagamente o que queria dizer. Até porque os dias eram uma fiada de horas que convinha encher de tudo, menos de palavras. Na escola, tudo eram palavras. E tédio, vontade de expandir aquelas paredes brancas sujas com becos de aventuras estranhas e olhares sedutores como o da morte. A escola parecia tão suja como os caminhos que o chamavam, mas sem os recantos onde anichava o seu desejo de ócio orgânico. De um tipo de sono acordado que queriam constantemente perturbar com palavras, imagens e raciocínios que só se tornavam vagamente interessantes quando reduzidos a anedota e ao ridículo da sua pomposidade e inutilidade exposta. Ao exercício do descaramento.
Não ia logo para a cama. Olhava para a mãe, no canto. Sempre acusando-o com o olhar, apenas com o olhar, que não lhe levantava a mão. Já o fizera e arrependera-se. Tiveram de correr com os irmãos mais pequenos para casa da avó, que se recusou à troca inversa. A mãe passou a recolher-se ainda mais para o canto até à altura em que a forçaram a fazer qualquer coisa, a castigá-lo de alguma forma, para que não se tornasse no gandulo que todos pressagiavam que viria a ser. Castigou-o fechando à chave todas as pequenas coisas a que teria alguma afeição. Alguma, pouca. Bater-lhe, nem se atrevia, nem ninguém a tal a aconselhava. Ele ignorou o acidente: as ruas não se fechavam a cadeado. Um dia, quando voltou, estava a mãe deitada no chão, a gemer e a apontar na direcção do armário onde tinha o medicamento que a deveria socorrer. Ele puxou um banco e ficou a olhar para ela, silenciosa, no chão, de olhos cada vez mais vidrados, respirando a custo, talvez suplicando, ou não, até que começou a esboçar o sorriso plácido da paz que nunca tivera. Ele deixou-se ficar, até que o pai chegou. Vieram os bombeiros buscar-lhe o corpo. Seguiram-se dias de silêncio sem tédio e sem procura, até que tudo voltou ao mesmo, sempre ao mesmo, com ela sempre ao canto. Presente ali só para o castigar com o silêncio, ao canto, dizendo-lhe que também ela não faria nada para o salvar.