Bastaria que eles, sempre, em cada ocasião, se perguntassem "o que faria Jesus"? Subiria ao púlpito defender a proibição da entrada de emigrantes? Choraria frente aos caixões de Lampedusa e depois manteria as fronteiras a cadeado? Não. Os Cristãos que enchem as Igrejas e mantêm o poder nas mãos do conservadorismo militar, dos gajos dos submarinos, dos patriotismos, das austeridades (muito pouco franciscanas), parecem ter uma visão muito distorcida daquilo que Jesus faria. Para estes Cristãos devotos dos mercados, Jesus é um pedaço de pau, sagrado, mas não mais que um pedaço de pau, um totem do seu clã. Uma bandeira sem outra moral que não seja a da defesa intransigente da sua cómoda e confortável posição numa cadeia alimentar antropófaga. Cada vez que um cristão conservador se curva reverentemente frente a um crucifixo, Jesus é novamente espetado com a lança da mesma maldade e desprezo com que antes foi sacrificado. Sempre que um político cristão avança com medidas gravosas para órfãos, viúvas, pobres, e deixa as grandes fortunas incólumes, tem a sua própria mão a bater com as canas verdes do ódio e da iniquidade a coroa do martírio. Domine, ignosce eis, quod enim faciunt, nesciunt. Perdoai-lhes, Senhor, que a tua misericórdia é infinita, apesar de apertada. A minha é finita. Tolero porque não tenho outro remédio. O omnipotente és tu.
Há dois dias escrevi no Facebook: “Há pessoas que estão fartas de ideias dos políticos. Querem ações. Será que se lhes derem um tiro nas trombas ficam satisfeitos? É uma ação...suponho que não gostem é da IDEIA…” Serviu-me este desabafo para compreender a minha solidão mental.
A ideia de que “é a trabalhar que se vai para a frente” está de tal modo inculcada na mente das pessoas, que qualquer tentativa para lhes abrir os olhos está condenada à partida. O trabalho dignifica o ser humano, se o trabalho for dignificante, perdoem-me a frase que poderia ter sido escrita pelos próprios soldados de La Palisse. Se me derem uma pá para escavar a minha própria sepultura e eu começar a cavar, estarei a trabalhar. Estarei a andar para a frente. Isso é desejável? Duvido. Eventualmente, será inevitável. E, das duas, uma. Ou me recuso a escavar e levo tanta porrada até ficar inconsciente, ou vou escavando devagar para prolongar a minha tortura. Num caso ou noutro, só tenho à frente a minha condição de condenado à morte, à humilhação e ao sofrimento.
Ideia genial foi a dos nazis quando escreveram à entrada dos seus “campos de trabalho” a famosa frase “Arbeit macht frei” - “o trabalho libertar-te-á”. O trabalho não libertaria ninguém que lá entrasse. A acção só apressaria a exterminação do “trabalhador” e daqueles que eram do seu afeto. Isso foi evidente, por exemplo, entre o grupo de judeus encarregados de falsificar a moeda dos aliados a favor do Reich. Atenuaram o seu dilema de colaboracionistas (mesmo que à força) com um constante boicote aos fins do trabalho que lhes foi destinado. Não foram heróis, mas esforçaram-se por não serem filhos da puta.
Hoje, são os próprios condenados a exigirem “trabalho” e “ação”, e menos blá blá por parte dessa coisa asquerosa que são os políticos. Ora, a política é discurso, é ideia (e só é asquerosa e mentirosa se for feita por gente mentirosa e asquerosa). E a ação, se não for comandada por ideias, estará sempre ao serviço de quem tem o poder e não ao serviço de quem trabalha. As coisas poderiam ser invertidas se quem tivesse o poder fossem os trabalhadores. Ora, isto não acontece porque os trabalhadores abdicam desse poder a favor da possibilidade de um dia serem eles os exploradores de outros milhares de almas esfomeadas por poder. Abdicam a favor de uma ideia que de tão mesquinha que é nem sequer é exteriorizada politicamente em discursos "repetivos".
O povo está farto de “ideias”, de “pensamento”, de “discursos repetitivos”, da “cassete dos comunistas”. Então, que trabalhem. Atuem. Quando o buraco estiver suficientemente fundo, os donos da arma de fogo terão muito prazer em satisfazer-lhes a vontade de ação. E o fim virá com uma pancada seca.
E seria muito bem feito. A natureza não se compadece dos fracos. E se o grupo dos “trabalhadores” é fraco, merece bem a morte sumária… Seria assim, mas os poderosos não querem matar ninguém. São demasiado requintados para isso. Preferem manter os espécimes minimamente saudáveis aptos para trabalhar. Crentes que, com o seu trabalho, um dia libertar-se-ão. Quando escravizarem os outros.
É bonito este mundo, não é?
Portugal, o país, nasceu de um puro desejo de poder. Não houve nele desígnios divinos ou um papel predestinado na história da Humanidade. Um rapaz quis ser rei, ou chefe de um bando de gente com força suficiente para se demarcar de outros com o mesmo desejo de dominação, e para isso lutou, matou, roubou. Impôs-se com a sua força e teve a sorte de os outros, por razões diversas, não terem conseguido impedi-lo de alcançar uma independência que não era mais que uma divisão entre senhores, em que o povo não foi tido nem achado. Depois, as lendas foram criando um sentimento de unidade. De Conquistador, Afonso Henriques passou a Libertador, coisa que nunca foi a não ser, talvez, de si mesmo, se descontarmos a ajuda que deu à libertação de alguns senhores do Norte, a um bispo e a algumas comunidades monásticas. Os primeiros a morrer nas batalhas que fundaram este país não lutavam por essa idealização tribal que é a Pátria, morreram porque a isso foram coagidos pela força ou porque tentaram a sua sorte. Mais tarde, sob a bandeira de uma propaganda política sustentada em histórias da carochinha, onde não faltaram milagres e aparições, a ideia de Pátria nasceu. Morrer como português, isto é, como cãozinho fiel a um dono imposto pela ordem da força e da mentira disfarçada de religião, passou a ser uma questão de honra, um livre trânsito para o panteão dos trouxas.
Talvez não seja assim tão simples. Nestas questões, os fautores da mentira são os primeiros a acreditar nela. Daí não faltarem nobres paspalhos elevados a heróis de um valor tão alto como as ilusões de glória e grandeza. Mera vaidade. Morte, apenas. Uma Pátria é um monte de ossos. Por respeito a essa vala de enganos e vidas desperdiçadas, em vez de missas, lápides e monumentos de bronze podia, ainda assim florescer a vida, o riso, a beleza compartilhada. Isso seria uma Pátria, e estaria disposto a morrer por ela. Por uma questão de amor.
Há coisas de tal modo evidentes que não me ocorre senão pensar que o povo português, tão crente nas virtudes dos sacrifícios bestiais e demoníacos, à moda dos pastorinhos e da Senhora da azinheira, como crente na teoria de que a crise se deve aos bifes que andámos a comer a mais, só pode ser um povo de retardados mentais. Todos aqueles que acreditam que o resgate nos veio resgatar de alguma coisa e que a austeridade tem de ser e tem de continuar porque não há dinheiro (dizem eles, repetindo a cassete: "eu também não gosto da austeridade, mas tem de ser, blá, blá, blá"), são os mesmos que apoiam os cortes na cultura, esse sorvedouro do dinheiro dos contribuintes para financiar os delírios duns gajos e de umas gajas de costumes fáceis e sem moral, que se autodesignam de artistas. Acontece que esses delírios dão lucro, dão receita. Há retorno. Nos resgates do FMI temos, de retorno, um abismo cada vez mais fundo, tanto nas contas do estado como na vida e dignidade de quase todos, para lucro de quase nenhuns. Isso devia ser evidente. Mas não é. O meu povo prefere acender velas à mensageira do advento neoliberal1. Falo da Merkel ou da gaja da azinheira? Das duas.
Peço desculpa antecipada a todos os crentes das ditas Senhoras, mas as árvores conhecem-se pelos frutos e destas azinheiras, só vi bolota bichosa e podre que nem aos porcos aproveita.
1. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz, se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz. (2.º segredo de Fátima: façam bom proveito deste tempo de paz, que até a senhora diz apenas "algum").
Eu não tinha dito? Às vezes irrito-me de ter tantas vezes razão. A esquerda cantou vitória com a decisão do TC. Era a derrota do governo, disseram. Os funcionários públicos que perderem o emprego não se vão esquecer que foram os partidos de esquerda a pedir a inconstitucionalidade das normas inviabilizadas. Esta é uma vitória do governo. Uma vitória manhosa. Sabiam muito bem que as medidas eram inconstitucionais e que assim seriam consideradas. Assim, podem culpar a Constituição e a esquerda pelas medidas que já pretendiam impor, recebendo um apoio mais alargado da população, incluindo daqueles que irão para o olho da rua, ao mesmo tempo que farão os cortes que pretendiam. E quando a recessão se agravar, têm a bateria carregada com um argumento que lhes prolongará o estado de graça por meses/anos, apesar de terem feito os mesmos cortes pretendidos ou mais. Uma jogada de génio.