Quarta-feira, 24 de Julho de 2013
I've seen horrors... horrors that you've seen.

Baba-se, a criatura.

Escorre saliva pelo queixo.

Falta-lhe compostura.

É asquerosa, viscosa, a criatura,

porque saliva. Não se controla.

Vai de viola, a criatura.

No reino da normalidade,

a saliva tem sentido único. E há controlo.

Ordem, criatura.

Baba-se, a criatura. Coisa feia.

Decadente. Velhice, doença, estado demente.

Falta-lhe compostura,

à abjeta criatura.

E chora, parece que tem sentimentos, a criatura.

Talvez os tenha.

Mas falta-lhe a compostura.

Parece ter o mundo às costas

e, lá dentro, todas as culpas originais,

congénitas ou acidentais, florescem em doces súplicas.

Mas anormais.

Baba-se, a criatura.

É mais linda, que as demais,

Mais aberta, luminosa, e tudo o mais.

Mas baba-se, a criatura,

escorre saliva pelos queixos.

Não pode aspirar a mais.

Artigos da mesma série: ,
publicado por Manuel Anastácio às 20:50
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (1) | Adicionar aos favoritos
Quinta-feira, 18 de Julho de 2013
Se bem me esqueço

Lembro-me da luz do sol trazida pelas mãos da Donzília,

para que dormisse.

Da minha mãe a chorar frente ao lava loiças

pelo homem da camisa azul que me traria a confusão de Laio

e estranhas maravilhas, a pilhas, da Arábia.

Do cheiro a serradura e a cemitério de Chão de Meninos,

dos bolos da Cila e dos livros dos Sete que não me deixavam ler

porque também precisava de me dar com miúdos chatos, parvos e ricos.

Das sestas que não queria dormir.

Do vizinho que desapareceu e que fazia pregas na barriga e dizia que era uma bichana,

Das cascas enroladas da pele de tomate numa sopa intragável,

Num selvagem imitando o grito de um inimigo,

imitando o grito de um inimigo - e das vezes que me lembrei disso,

não por ser importante, mas porque era uma lembrança a guardar

na disformidade de Proteu,

Da Natália na primeira e na segunda classe, e de julgar que era a mais linda das meninas, nunca o tendo sido.

Num barco numa praia, na minha irmã a correr com uma menina de vestido de outra época, de um marinheiro zangado atrás delas.

De caranguejos sobre uma rocha, fugindo às mãos da minha mãe,

De um olho que nunca vi, numa fechadura que nunca espreitei, ou terei?

Da primeira declaração de amor, entre carros numa travessa, e ela, de cabelo louro sobre os olhos claros, olhando-me com espanto e piedade,

oferecendo a triste consolação de recusada amizade.

Do homem do carro, e do homem das latas,

Do Marco a descascar feijões, do pó, da comichão, de mim, sentado,

a contar a Bíblia, a vida de Haydn e da Joana d’ Arc à Florbela

na rua da minha avó. Da minha avó, perguntando de onde vinha a chuva,

do silêncio do meu avô.

Das maçãs de inverno debaixo da cama de palha de centeio,

das oliveiras abertas ao centro para receber a luz da noite,

da ribeira no inverno e dos moluscos debaixo das pedras,

da areia mastigada por vermes,

das estevas em Vale de Tábuas e de um gato selvagem fixo em mim, entre os troncos queimados dos pinheiros.

Das broas de azeite e do chiar das tremelas e dos varais,

de um regabofe de fantasmas a meio da noite. Do alçapão

que dava para o sótão, onde desciam aliens de olhos esbugalhados como louva-a-deus nas costas das cartas de jogar,

De uma cigana, que não era a Carmen (nem eu conhecia Bizet) e de uma rosa vermelha nos cabelos, da foto de uma adolescente numa banheira,

do fascínio da maldade e da redenção,

da resistência passiva de uma corajosa cobardia.

De Deus e do corpo escanzelado de Cristo,

dos olhos inexpressivos da Virgem e da voz das velhas a rezar o terço,

das rosas roubadas em maio, dos risos pueris de quem enfeita um andor,

do padre Rosa que todos os anos morria no dia das mentiras.

No mato, na urze, no estrume das ovelhas,

nos livros, nos livros, nos livros, nas bofetadas do homem da Biblioteca Itinerante,

que enviou para casa a Mensagem de Fernando Pessoa, e de como me senti importante.

Da Biblioteca do Entroncamento, dos dias perdidos,

de ver o início da Irma la Douce num café, em dias perdidos,

dos filmes de John Ford na televisão,

nas cassetes vhs aos molhos, O Último Ano em Marienbad,

numeradas. No Rui Navalho a falar dos Guns.

Da Acácia sobre o pátio da escola primária, das figueiras,

das orelhas do miúdo que não ouvia nem sentia,

de pedras penduradas em fios que puxávamos para bater às portas escondidos no outro lado da rua,

nas cascas de eucalipto com que fazíamos trenós, casas de altas paredes e ventoinhas,

numa menina afogada, num braço a sair da lama,

num inesperado caixão,

em maçãs de inverno debaixo de palha centeia.

Do calor sufocante no sótão, no pó, em papéis amarelos,

em copos do Juá.

Na fonte da Serafina, em tudo arrasada,

num ferreiro, num moleiro, num bêbedo na valeta,

no Vale da Carreira, no jogo da malha. Na dentadura branca e ofuscante do Salgado Zenha, em discursos comunistas, em cassetes piratas,

na Lara Li e no Carlos Paião,

Na cerejeira do Estreitinho, na camélia que ainda não era japoneira,

No vinho abafado, no alambique da ti Jesuína escorrendo aguardente por uma palha.

Na luz do sol a fechar-me os olhos.

Artigos da mesma série:
publicado por Manuel Anastácio às 22:02
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (4) | Adicionar aos favoritos
Terça-feira, 2 de Julho de 2013
Experimental como o destino

Quis saber o que faria um porco com pérolas.

Cheguei-me a um, sorrateiro, com vagares de terrorista,

enquanto chafurdava na fossa imunda

dos seus desejos.

Troquei-lhe o Financial Times

pela The New Yorker.


E foi vê-lo a ressonar que nem um camelo.


Troquei-lhe o Financial Times

pel' O Capital.


E foi vê-lo a ressonar.

Ruidosamente.

Ponto final.


Quis saber o que faria um ser humano com diamantes.

Cheguei-me a um, sorrateiro, com vagares de sedutor,

enquanto se afundava na fossa imunda

de desejos sem calor.

Troquei-lhe o Catecismo

por Sophia.


E foi vê-lo a ressonar que nem um camelo.


Troquei-lhe o último best seller

por Camilo.

E não fiquei tranquilo enquanto não aconteceu

o que já era de esperar.

Artigos da mesma série: ,
publicado por Manuel Anastácio às 22:44
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (3) | Adicionar aos favoritos
Terça-feira, 9 de Abril de 2013
Para Thatcher

A populaça e a desordem

comem dinheiro. Os sindicatos

são um formigueiro,

carraças do gordo perdigueiro que abraças.

E a lei, do teu lado,

é musculada.

És assim, feita de nada,

entregue à decadência e à vermícola bicharada

ou às labaredas que disso te poupam.

Todos morremos, até quando sobrevivemos

e enchemos a memória do Universo

das nossas bestiais convicções.

Formiga

Cigarra. Ninguém te agarra.

O que poderias ter sido e não foste, burguesa

proletária, guerreira, santa asneira, diarreia

Mãe desnaturada.

Heroína louca disciplinada.

Lambes liberdade nas chagas da fome

E o povo engole, das tuas pústulas, o ávido apetite

da desconsideração.

No teu chão floresce absinto

e as estrelas prestam-te homenagem.

Curva-se a criadagem ao excesso de batom

que se te cola aos dentes.

Entrementes, o mundo apodrece como sempre

E na madeira bichosa da tua lição nascem os teus santos seguidores

edificadores do anátema da destruição.

Desapareceste antes de desaparecer.

As bandeiras da mediocridade já pendiam a meio

muito antes de te fechares em demência,

E nem o santo sudário da Meryl Streep

te servirá de relicário. Adeus.

Artigos da mesma série: ,
publicado por Manuel Anastácio às 22:30
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (4) | Adicionar aos favoritos
S&M

Há quem pague a prostitutas

para lhes bater.

Para em gemidos de prazer

saber

que as humilharam.

E assim se humilham eles.

Há quem nem precise de pagar,

para humilhar.

Olhar do alto,

mesmo de sola rasa e não de salto alto,

E, ainda assim, serem pagos. Eles.

E assim nos humilhamos nós,

passivos observadores de um filme pornográfico

que pagamos para ver.

Artigos da mesma série: ,
publicado por Manuel Anastácio às 21:44
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (2) | Adicionar aos favoritos
.pesquisar