Agnes Obel, cantautora dinamarquesa, uma descoberta que fiz graças ao jrd, dona de um porte bergmaniano, de uma voz e um estilo musical muito contemporâneo mas sereníssimo, como se fosse um fresco rebento de uma Gymnopedie de Satie, bem visível nos acompanhamentos de piano, vale bem uns momentos de atenção.
Se a música serve para desinquietar, como pretende qualquer arte digna do nome, e não criar ambiente, como mera arte decorativa, os Cromagnon, banda dos anos 60, saberiam dar ao mundo uma boa dose de desinquietação, caso o mundo quisesse dar ouvidos a miúdos que, se calhar, só queriam provocar. O que já não é mau como projeto artístico, digo eu. O seu álbum “Orgasm”, que mais tarde foi republicado sob o título de Cave Rock não será, provavelmente do agrado de muita gente. Logo na primeira e mais famosa das faixas, Caledonia, sons guturais e volumes sincopados de toneladas de decibéis, que associamos hoje às bandas de Heavy Metal, em conjunto com referências primitivas, folclóricas (no melhor sentido da palavra) e mesmo visceralmente biológicas, formam um objeto sonoro a que qualquer amante da arte dos sons não devia ser indiferente. Ritual Feast of the Libido, a segunda faixa, dificilmente será considerada fruto de uma mente equilibrada. O som de rochas e gritos e regurgitações cavernícolas é capaz de provocar pesadelos ao mais resiliente dos ouvidos, mas é, definitivamente, uma experiência marcante. Organic sundown, mais tribal e xamânico, decepciona um pouco quem se tenha entusiasmado com o início do álbum, dado o seu carácter mais introspectivo. Em Fantasy, as gargalhadas e grunhidos iniciais e sons vocais semelhantes a flatulências dão lugar a ruídos urbanos contemporâneos que se diluem num tema terno que regressa após uma sucessão de estática com fragmentos radiofónicos sobre a linha persistente e aguda de uma sirene, desembocando em vozes que exigem liberdade. É difícil de dizer qual a verdadeira intenção, se é que há intenção nesta forma de indisciplina estética e de alegre desprezo pelas normas. Seja uma forma de humor ou um ato de pura contracultura, não se pode, contudo, considerar que isto seja lixo sonoro. A utilização da guitarra acústica em registo de mera repetição em Crow Of The Black Tree e as suas vocalizações uivadas tornar-se-ia, a certa altura, totalmente convencional na criação de um ambiente pagão tendente ao transe não fosse a liberdade escarninha que desconcentra tudo, tornando-se a canção num objeto que nega qualquer intenção séria do ponto de vista artístico, se considerarmos os estados alterados de consciência uma forma legítima de usufruir da dita cultura séria (quase exclusivamente aquela que não está institucionalizada). Genitalia, por sua vez, parece repegar na imagem dos corvídeos, conseguindo converter gemidos orgásmicos num frenesi a capella, dando conta do experimentalismo versátil de um álbum que não se sabe bem localizar na história da música, se em precedência de estilos musicais que viriam depois, se em vias paralelas. O ambiente religioso de um cântico gregoriano ou de um mantra em sobreposição e alheio a um louco solo de guitarra eléctrica termina um álbum tantas vezes amado pelo seu sopro de loucura profética, mais vezes ainda odiado pelo desconforto e estranheza que provoca e, mais ainda, injustamente ignorado, até pelos mais irreverentes e indisciplinados dos vanguardistas.
The Medium is the Massage, em 1967, foi um livro que, de alguma forma e através de uma forma gráfica ora ilustrativa, ora redundante, ora provocante nas questões capaz de suscitar, pretendia dar aos sentidos uma experiência consentânea com as teses de Marshall McLuhan. A interferência entre imagem e texto ficou nas mãos do artista gráfico Quentin Fiore, com a coordenação Jerome Agel. O livro marcou não uma geração, mas todas as gerações a partir da década da confusão e, provavelmente, aquilo que tanta confusão fazia a quem se esforçava por entender o pensamento de McLuhan, já que se utilizavam ferramentas e modelos interpretativos do passado para compreender um futuro de perigosidade e confusão obrigatória é hoje igualmente difícil para quem nasceu imerso na própria extensão electrónica de uma rede de sistemas nervosos centrais e tem apenas como referências ferramentas e modelos interpretativos de um passado onde o indivíduo não era o que é hoje. Um ano depois do livro, John Simon, da Columbia Records, decide pegar no conceito subjacente ao livro e traduzi-lo numa gravação. Mantém os créditos do livro e dá origem a uma fascinante montagem ao modo de colagem de sons e música(s), evocativos da aparente descoordenação dos média e da televisão em particular, com citações, predominantemente de McLuhan, mas também de autores como John Cage, Joyce, Sócrates, Lewis Carroll, numa série de vozes diferenciadas na sua interpretação e no seu posterior tratamento. Não é por acaso que Joyce aparece entre as vozes dispersas, já que o fluxo de consciência que constitui grande parte da sua obra não é apenas percursor como é a própria forma adotada por esta narrativa sonora prenunciadora do zapping (anos 80) e da conversão da sociedade linear ocidental ao hipertexto e hipermédia (termos vindos à luz em 1963), bem como a um esquema mental que pouco difere das paranomásias de McLuhan, espelhado nas próprias formas de humor da era do Facebook. O medium é a mensagem (message), a era da confusão (mess age), a era das massas (mass age) e a massagem (massage - como aparece no título, supostamente graças a um erro de impressão que foi bem recebido e apropriado por McLuhan). Aqui vos deixo as duas partes desta gravação que alterou a percepção da realidade a muita gente e ainda o pode fazer hoje em dia. Podem acompanhar as citações aqui à medida que vão ouvindo esta ópera ainda contemporânea.
Há histórias verdadeiras que parecem mentira pelo simples facto de conjugarem em si uma infinita beleza a essa tão rara aparição chamada justiça. Seria justo todos encontrarmos o amor, e não são poucos aqueles que nele tropeçam e injustamente o rejeitam como lixo. Seria justo recebermos a retribuição dos outros conforme o nosso esforço, dedicação e mérito. Mas é tão rara esta carícia do Universo, que todo aquele que teve a felicidade do seu beijo retribuído devia, por força, seguir o caminho dos justos - infelizmente, há quem sendo justamente acarinhado pelo Universo, pela sua ingratidão consiga transmutar a justiça em perversão. Não é o caso de um cantor norte-americano, Sixto Rodriguez, que escreveu e interpretou algumas das peças musicais mais verdadeiras da sua época. Em 1970, lançou um álbum chamado Cold Fact e em 1971, o álbum Coming from Reality. Neste último, uma das canções começa pelo verso “Cause I lost my job two weeks before Christmas“. É uma canção com um suporte poético perfeito, na forma e no sentido. Curiosamente, era também uma certeira profecia. Rodriguez, duas semanas antes do Natal viu o seu contrato rescindido, já que os seus álbuns tiveram vendas praticamente nulas e desapareceu, tal como os seus discos. Podia terminar aqui. Mas às vezes, o Universo ri-se da nossa humilde ignorância. Não se sabe como, os álbuns de Sixto Rodriguez chegaram a uma África do Sul amordaçada pelo Apartheid, e tornaram-se, durante décadas, um símbolo de justa subversão para os sul-africanos de etnia europeia. Rodriguez tornou-se naquela metade daquele país, mais importante e popular que Elvis. Nos Estados Unidos ninguém sabia quem era. Na África do Sul, ouvido e amado, ninguém sabia também quem era o bardo das suas inquietações, e nasceu o mito de um cantor-poeta maldito que se tinha imolado no fogo em palco. Até que dois sul americanos quiseram saber mais sobre este homem, e como tinha sido a sua morte heroica, e descobriram que o seu profeta era vivo. A história, simplesmente emocionante, é contada no filme que ganhou, este ano, o Óscar para Melhor Documentário, “Searching for Sugar Man” e é digna de ser contada a todos, não porque haja qualquer moral ou verdade metafísica a retirar-se de um caso absolutamente excepcional, ocorrido com um ser humano absolutamente excepcional, mas porque todos precisamos, por vezes, de um conto de fadas. E quando esse conto de fadas nos é oferecido pela própria realidade, é como se fosse a nós, sapos, que coubesse a sorte de sermos beijados pela princesa... e quantas vezes não o somos, sem o sabermos.