"O fado é talvez a mais significativa forma de expressão artística em Portugal (...) e aquela que melhor define a alma do nosso povo”, afirmou o nosso chefe de Estado, sua excelência Aníbal Cavaco Silva. É verdade, até a pessoa mais bacoca e insensível, como é o caso do nosso presidente é capaz de dizer coisas acertadas. O Fado é a expressão artística que melhor define a alma portuguesa. Um enorme lamento uivado e resignado.
Cavaco Silva lembrou os tempos em que o fado não era ainda “reconhecido e estimado” pelos portugueses: “Tempos houve em que o fado era apenas associado a uma vida boémia que continha em si retratos de uma Lisboa pouco recomendável”. Tempos em que o fado continha em si germes de revolta, e por isso tão pouco recomendável para o nosso presidente, ou tempos em que o fado era apenas uma forma autocomplacente das classes miseráveis transformarem em beleza a exordície em que viviam? Fica a questão. Assim, ao longo de décadas, acrescentou, o fado “resistiu às modas e ao tempo”. Apesar de não ser verdade. O próprio presidente o afirma antes, ao recordar a origem boémia e pouco recomendável do fado, para não falar de todas as renovações que os grandes nomes do estilo sempre foram acrescentando, seja o Alfredo, a Amália, a Maria Teresa e que continua, com diferentes roupagens, hoje em dia. Mas o conservadorismo do senhor presidente faz-lhe ver resistências ao tempo em tudo. Só é pena que não a veja num pacote de leite azedo. Continua o senhor presidente a sua preleção dizendo que nas décadas de 70 e 80, o público acabou por se afastar um pouco do fado “por razões mais ou menos ideológicas”. A ideologia não deveria interferir com qualquer forma de expressão artística, como penso que é óbvio, mas é provável que não fosse a ideologia a afastar o fado mas o fado que, ao transmitir geneticamente uma ideologia de resignação, não soubesse lá muito bem, no seu travo rançoso, aos palatos de quem bebia pela primeira vez o néctar inebriante da liberdade. Inebriante porque deu em ressaca. E com a ressaca voltou o gosto pela choraminguice uivada. “Felizmente, os tempos de hoje são bem diferentes", diz o presidente. E diz muito bem, felizmente para ele e para todos os que espezinham a gentalha pouco recomendável mas devidamente resignada e grata pelos açoites que leva nos lombos. “Lembra-nos sobretudo que a crise não se vence apenas com a economia, vence-se também com a cultura, criatividade e alma”. Nesta frase outras questões se levantam: a crise vence-se? O presidente quer vencer a crise? Defina crise. Crise para quem? Criatividade? Criatividade de quem? Alma? Alma de quê? O senhor presidente não saberá que a alma foi sempre coisa negada aos escravos? Os escravos são objetos manipuláveis de acordo com os interesses dos seus amos. Não precisam de alma para nada... Ou talvez não. A existência da alma, imortal, sff, é a única esperança de quem é transformado em mero resíduo ou excremento de uma sociedade que prega moral enquanto semeia a imoralidade, que vangloria a arte e a criatividade e instaura a censura através da pauperização mental das massas.
Em termos musicais, a existência de estilos musicais é coisa que a mim pouco interessa. A música é boa ou é má. Se é fado ou não é fado, tanto me faz - reconheço a qualidade artística e poética de uma peça musical independentemente dos valores mais progressistas ou mais retrógrados que o vulgo associa a cada estilo ou género. Mas calha bem ver o Fado reconhecido como Património Mundial nos dias que correm, em que os salazares se multiplicam em cada esquina. Agora, só falta canonizar os pastorinhos, e teremos a díade da resignação e do sacrifício estúpido a guiar os passos da felicidade choramingona que, dizem eles, e muito bem, nos define. Enquanto vamos à bola, claro.
Orelha Negra parece nome de organização secreta. E há, talvez, muito de secretismo narrativo num grupo de Hip Hop que consegue ir além dos tiques revoltados mas ociosos deste género cultural urbano. Da mesma forma, Vhlis, como assina o artista português Alexandre Farto, reinventa a arte de marcar o espaço urbano através de meio que só aparentemente é mais violento e subversivo que a vulgar graffitagem com latinhas de spray. O trabalho de Vhils consiste em rasgar o estuque das paredes através da colocação paciente de explosivos sobre a sua superfície. Se o resultado final é belo, o fascínio do fogo e da explosão pede mais que o simples divertimento perante as bombinhas de carnaval. Há nestas imagens lentas de um processo de destruição calculada a chave metafórica para a mudança do mundo, do indivíduo e da sociedade. Há, sempre, no acto de fazer nascer, um gesto de morte.
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Quando estava a estudar para exercer a profissão que hoje vou aprendendo a exercer, eram os meus colegas frequentemente assaltados pelo medo das perguntas dos alunos para as quais não tivessem resposta. Eu, pelo contrário, nunca tive pejo (antes pelo contrário, tenho muito gosto) em dizer que não sei aquilo que não sei, seja sobre o animal, real ou imaginário, que o menino viu ontem numa macacada, seja sobre aquelas coisas que se interpõem entre a visão científica cumpridora dos paradigmas aceites pela comunidade dos que estudam os objectos, e a visão sonâmbula dos conceitos criados por um povo criativo mas limitado, nos ciclos e repetições poéticas de um mundo que não entendem. A Ciência é prosa e invenção. O sonho é poesia e repetição. Parafraseio, agora, uma frase em resposta à Maria Helena numa das resenhas dedicadas à Gláucia. Há coisas que não sei. E não invejo a Deus o saber tudo, se é que sabe. A ignorância é o campo onde a alma se estende, aquecendo-se em raios de sabedoria, mas não inflamando-se nela. Os estados místicos de êxtase teresianos, que não são mais que estados de consciência alterados, dão a sensação de que, num breve momento, tudo se compreende. E por alguma razão são tão passageiros e dão lugar a uma ressaca mística. Não somos lenha para tal fogueira.
Ora, a Gláucia pegou numa fotografia minha exposta no Facebook, onde apareço frente a um gráfico misterioso, e perguntou o que era. Um gráfico onde eu, com a cabecinha mesmo no centro dos círculos, aparecia aureolado de conceitos zumbindo como melgas. Zumbem de facto, estes conceitos, e outros. De forma confusa, em atropelo, e não organizadinhos segundo eixos de orientação bem definida como no caso desta obra de arte de Erick Beltrán, exposta no MUSAC, Museu de Arte Contemporânea de Castela e Leão, onde me tiraram a fotografia. Beltrán é um artista mexicano, nascido em 1974 e radicado em Barcelona, que transforma conceitos e as suas relações em obras gráficas, diagramas e infogramas que ascendem ao lugar de obra de arte tanto pelo seu conteúdo estético como pelo seu conteúdo informativo real, textual e, apesar de não especializado, tendente à objectividade. Por alguma razão é o objecto o conceito gerador do gráfico em questão.
A Arte Contemporânea centrou a autoria da obra de arte no indivíduo, espoliando-a (algo hipocritamente) ao artista que parece imolar a sua individualidade e o seu talento à capacidade dos outros em pensar aquilo a que se nega a fazer. Tem-se arte quando há alguém disposto a atribuir esse significado (e valor) artístico ao objecto criado, escolhido ou eleito. Neste gráfico, ainda que seja o objecto o centro, o todo é o indivíduo. Em contraste com a utilização dos conceitos num contexto poético, Beltrán expõe-os de forma sistemática, de acordo com critérios lógicos e estabelecimento de dicotomias quase objectivas, não fossem elas relativas a um ser humano cuja perspectiva jamais poderá ser objectiva porque está toldada pela inevitável ignorância que, mais que aquilo que sabemos, nos guia os passos. Confrontado com uma situação para a qual não se tem uma resposta objectiva e mecanizada, o ser humano é obrigado a distorcer a realidade de forma a conformá-la aos seus eixos de entendimento. Caso não o faça, entra na angústia da incapacidade de decidir. Um processo de decisão é sempre uma escolha feita pela emoção ao confrontar o nosso quadro mental ao quadro objectivo que nos coloca o problema.
Beltrán é o enciclopedista das perspectivas individuais. Ao analisar e confrontar a posição específica de cada um dos conceitos expostos no quadro referido, serão muitas as vezes em que eu mesmo seria tentado a mudá-los de sítio. Aquele não é o meu modelo de pensamento. Ao contrário do modelo das coisas materiais físico-químicas, para as quais, dentro de um paradigma científico, se pode chegar a um consenso, as perspectivas individuais são mais distintas que as nossas impressões digitais. O Homem Duplicado de José Saramago, por exemplo, pegou na questão da identidade pelo lado errado - não é a forma exterior, mas a interior, que nos identifica. E o professor de História e actor, sendo iguaizinhos, em nada eram iguais, e em nada se sobrepunham, em nada havia a motivação para a exclusão obrigatória do outro a não ser a inveja e a oportunidade de ocupar o lugar do outro. É um mau exemplo, ainda que o exemplo do professor de História de Saramago possa ser repescado por outra razão. Saramago apresenta o professor como defensor de uma extravagância pedagógica original: a de que a história deveria ser contada ao contrário, do presente para o passado mais remoto. Ora, ao contrário do que Saramago pressupõe, esta tese é popular nos meios pedagógicos há muito tempo e é aplicada frequentemente. É a noção de que se deve avançar, na construção do conhecimento, a partir daquilo que é conhecido ou de acesso imediato, em direcção ao que mais se afasta da experiência quotidiana. Foi assim, aliás, que, bem visto, se criou a própria história. Ora, da mesma forma, a partir dos anos sessenta, anos de origem da actual inominada Arte Contemporânea, há no círculo dos historiadores a tese de que, em vez de se partir das grandes estruturas políticas, económicas, sociais e culturais (o macro), há que fazer o caminho inverso, partindo do que, mísero e mesquinho, lançará alguma luz a um novo caminho. E, na verdade, pululam agora as histórias sobre as coisas pequenas e, a partir desta nova história muitas respostas se foram iluminando e muitas questões se foram reformulando. Beltrán é outro cronista do mundo individual. É um retratista de ideias no seu meio natural: a cabeça de cada um.
Tirei estas fotografias de manhãzinha, pouco depois de o sol nascer, na estrada que vai de São Torcato a Garfe, numa laica peregrinação ao São Bentinho. Devo dizer que o dito santo não é das minhas preferências. Mas a manhã húmida do Minho, acompanhada das páginas de "A Cidade e as Serras", que ia lendo ao longo da estrada, merece destas caminhadas sem sentido de sacrifício, ainda que no dia seguinte não conseguisse dar um passo direito. Ao virar de um curva, ou de uma página do Eça, vai dar ao mesmo, encontrei esta casa (na verdade, o corpo central indiferenciado de um bloco de maiores dimensões) de gosto duvidoso, de blocos de granito com juntas de cimento, uma porta de madeira podre em cuja laje nascem polipódios separada de outras duas, de alumínio pintado de verde e dois registos de vidro nos dois terços superiores. Entre a primeira porta e as segundas, um banco de lajes de granito.
A casa tem uma varanda disposta num segundo socalco de cimento armado, mais largo em relação ao chão de terra batida onde já poderia ter existido um jardim de pequenas dimensões, antes do passeio, agora de cimento, marcado transversalmente a ferros, para cortar a monotonia cinzenta. Frente às portas, três cadeiras ferrugentas. No centro do pátio, o simulacro do que poderia ser uma árvore, mas que nunca o chegará a ser, envasada, porque o dono gostará de árvores pequenas, sem raízes que destruam a bela fachada do seu palácio. Junto ao passeio, três plintos de granito encimados por cubos do mesmo material assentes num dos vértices. No puxador da porta, o saco deixado pelo padeiro com os trigos da aurora. No murete que separa o pátio do jardim do vizinho, cuja casa mantém o mesmo registo de fachada, mais três plintos - os das pontas, junto à parede e junto ao passeio, com esferas, o do centro com uma pequena laje facetada em pirâmide atarracada.
Resgardada, em relação ao passeio por estas peças de evidente significado alquímico, logo depois do primeiro socalco de quem vem de São Torcato pelo lado metafórico de Giães, deparamo-nos com uma face grosseira de granito com alguns remendos de cimento.
O remendo parece dar-lhe alguma antiguidade, mas as feições, ainda de arestas puras na zona da boca deixa lugar à dúvida. Aquele pequeno moai deslocado parece ter saído de alguma cachorrada, de alguma igreja ou capela. Quem encontrou o modilhão teve, ao menos, a decência de, ao integrá-la no seu sistema estético neo-cubista, deixá-lo serenamente a vigiar os passos dos peregrinos. Nada mais sei desta personagem. Um dia destes saio de novo ao caminho, em direcção ao vinho verde tinto de São Torcato e pegarei conversa com os frequentadores das cadeiras ferrugentas. Um dia destes.
Sobre a experiência que Nick Pittsinger decidiu fazer, ao tocar 800% mais lento uma canção pop fraquinha de um miúdo com voz de gaja chamado Justin Bieber, e que é o ídolo das meninas pré-adolescentes, já muito se escreveu na Internet. Que é parecido a Sigur Ros ou a música ambiente ou New Age (eu prefiro a primeira das hipóteses, ainda que sem grande intenção de a defender). As ideias mais tolas, desde que minimamente divertidas ou extravagantes, têm a capacidade de se disseminar neste meio como o vírus da gripe A jamais conseguiu e, no íntimo da sua cápsula proteica, gostaria de ter feito. Acontece que este fenómeno é particularmente interessante do ponto de vista estético. A obra musical deste fedelho, ao ser deturpada, tem um valor artístico superior ao da peça original. Se considerarmos que essa obra derivada continua a ser uma obra de arte. Ora, se o é, é apenas indirecta e involuntariamente. É o dilema clássico do lenhador que, inadvertidamente, esculpe uma vaca num lenho: a obra do acaso poderá ser uma obra de arte? A Arte Pop e o Dadaísmo deram pistas para a resolução do problema. É arte aquilo que considerarmos arte - inclusive aquilo que foi feito sem intervenção humana mas que, ao ser observado ou escolhido passa a ser objecto de intervenção e eleição por parte do Homem. Esse carácter electivo é, de facto, a característica principal da Arte. A vaca esculpida pelo lenhador, ao ser queimada, caso não tenha sido identificada a imagem, nunca chega a ser obra de arte, mas se for posta a enfeitar a casa do lenhador, já o passa a ser, ainda que, eventualmente, um crítico de arte a venha a considerar mero artesanato. O problema da música esticada de Bieber (que é arte acústica de maior valor que muita feita intencionalmente) prende-se com a autoria. Nick Pittsinger não aceita ser o autor, já que se limitou a distender o tempo de execução de uma gravação de forma mecânica. Mas não se pode imputar a autoria a Bieber porque este não escolheu tocar assim nem cantar assim (e se tivesse escolhido não teria a fama que tem entre as meninas da mesma idade). A alteração mecânica simples da obra de outra pessoa, ao tornar irreconhecível o material original, não pode, do meu ponto de vista, ser considerado, sequer, obra derivada. É uma obra original, que deve a Justin Bieber tanto quanto o escultor de madeira deve à árvore abatida. E o seu autor é, sem dúvida, colectivo. Começa em Pittsinger e continua rede fora, mails fora, viralmente, sempre que alguém a ouve e se questiona quanto ao seu valor íntimo, espiritual, estético e filosófico.