Terça-feira, 6 de Novembro de 2007
Curta 38: A casa da Ti Geéda e um poema de e. e. cummings

O tempo não me permite fazer rendilhados de palavras nem pinturas com conceitos, mas sinto-me na obrigação de falar de dois comentários: um do meu conterrâneo Pedro Santos (que nem mail deixou no comentário...) e outro da Gerana, com um desafio que, provavelmente está longe das minhas capacidades, mas a que tentarei responder com o escasso tempo que me resta das tarefas do(c)entes.

O Pedro Santos diz aqui: "a casa da Ti Geéda era de facto interessante, ao ponto de eu, na altura com 5 anos, o meu irmão e um vizinho, atraídos pela curiosidade , termos lá entrado pouco tempo depois de ter ficado desabitada. Entrámos pelo telhado entretanto desabado, e algo não correu bem. Caí pelo vão das escadas e hoje trago comigo uma grande cicatriz no queixo."... Para contextualizar, a casa da Ti Geéda está numa rua que entronca com a rua fundada pela minha avó (ou que por ela foi baptizada, já que é a "Rua da Glória" à conta da minha avó se chamar Aurora da Glória e não por qualquer outra razão), rua essa onde eu nasci e onde fui criado até ao momento em que a "carreira" de professor me foi levando para outras paragens. É nestes momentos que sinto que o tão difamado meio internetiano de comunicar não é tão desumano como o querem descolorar...  Já disse aqui algo semelhante a respeito da Wikipédia. Pode ser que o Pedro Santos tenha compreendido mal alguma coisa e tenha confundido a casa da Ti Geéda com uma das casas em ruínas da Ribeira da Brunheta - uma das quais tem uma história que também merecerá um post à parte, se tiver tempo de vida para alguma vez a chegar a escrever...  Estas linhas desencontradas que se encontram no éter são, deveras, e. e. cummingianas... Ainda mais quando o Pedro traz no queixo a marca de uma casa deveras furiosa para quem nela quer entrar sem fazer as devidas vénias. Se se vingou do desacato de alguém entrar pelo telhado, conta-se que a mesma casa quebrou um cântaro de barro cheio de água sobre a cabeça da Ti Geéda quando esta, uma noite, chegava carregada da fonte, durante uma das suas manifestações de sonambulismo da senhora. Nos sonhos, a entrada de casa era mais alta e não exigia uma penosa flexão das pernas. É assim que aprendemos as diferenças entre o mundo dos sonhos e o da realidade (é fácil: o da realidade é aquele onde estamos e, em regra, é mais desagradável). E se acho isto cummingiano é, talvez, devido ao cruzamento deste admirável mundo novo onde o ondequando se confunde nas cicatrizes que carregamos.

E o desafio da Gerana é, exactamente, o de traduzir um poema de e. e. cummings. Note-se que já não é a primeira vez que este poeta deambula por estas redondezas. Já fiz a minha adulteração do "pity this  busy monster, manunkind" e tenho um poema-anedótico-narrativo baseado noutro poema do mesmo autor (ou, pelo menos, as primeiras linhas foram nele inspiradas). Mas fica prometido que vou tentar dar a minha interpretação possível, no possível rendilhado permitido pela língua portuguesa. É que a nossa língua, qual flor do Lácio, qual qualquer flor, prima pelo acessório e pelo engodo. Se as flores nos atraem não é pela sua concisão, mas pelas redundâncias, extravagâncias e pormenores (aparentemente) funcionalmente dispensáveis - mas que são exactamente os que entontecem os insectos polinizadores, por vezes fatalmente. A língua portuguesa exige sílabas a mais para conteúdo material a menos, pelo que as mais simples melodias não se encaixam nas mais simples ideias poéticas. Tenho tido esse problema (excruciante) com a tradução do Cristo no Monte das Oliveiras de Nerval. E o último soneto, então, foi uma dor de alma: é impossível escrever em 14 versos decassílabos o calhamaço metafísico que se concentra nas palavras de Nerval. Mas persisto na tarefa... Há vários tipos de masoquismo...


Fica aqui a proposta da Gerana, de um poema lindíssimo, impossível de traduzir, com uma musicalidade avessa a qualquer transcrição instrumental (e, ainda mais, sendo eu o artífice e compositor). Mas vou tentar o sacrilégio. Noutra altura. Não sei quando. Haja vida para isso

i carry your heart with me (i carry it in
my heart) i am never without it (anywhere
i go you go, my dear; and whatever is done
by only me is your doing, my darling) i fear

no fate (for you are my fate, my sweet) i want
no world (for beautiful you are my world, my true)
and it's you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you

here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life; which grows
higher than soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart

i carry your heart (i carry it in my heart)    (Tradução aqui)

publicado por Manuel Anastácio às 21:30
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De Gerana Damulakis a 7 de Novembro de 2007 às 01:10
Valeu a atenção, acredito mesmo que você irá conseguir. A tradução, embora ato "masoquista", é sedutora. E nós temos uma língua belíssima, ainda mais se comparada com o inglês, que é uma língua sincopada demais, telegráfica demais. Na literatura, porém, há belos poemas que acabam sendo aliciadores para quem gosta de trazer tudo para a "última flor do Lácio, inculta e bela,/ És, a um tempo, esplendor e sepultura". Muitas vezes me fico queimando as pestanas para achar um modo de escaparmos de tanto inglês no dia-a-dia. Por exemplo: no Burger King, as pessoas podem, sozinhas, servir-se de mais refrigerante. Bem grandão está escrito em cima da máquina: Free Recall. Eu me dano com isto. Por que não colocar: livre reposição, reposição livre, sirva-se quantas vezes quiser? Realmente, reconheço, a chamada vai ficando grande. Nós precisamos de muitas palavras porque nós gostamos da comunicação verbal.
Bom, já estou usando palavras demais. Fiz traduções de Konstantinos Kaváfis, do grego para o português. Como já escrevi em outro comentário neste blog, sou de família paterna grega e família materna portuguesa (orgulhosamente uma mistura de Homero e Camões, que maravilha!); enfim, como toda brasileira, uma salada! Mas não me atrevo a botar a mão no poema de e.e.cummings e, é verdade, não achei nenhuma tradução boa aqui no Brasil. Confiarei em receber a sua. Que soprem em seus ouvidos: Pessoa e Mário de Sá-Carneiro ( dois gigantes), Bandeira e Drummond (outros dois). Mais: seu próprio talento, bastante evidente nos textos aqui postados. E disto tudo apareça o esplendoroso poema na mais bela língua do planeta!
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