Segunda-feira, 16 de Abril de 2007
Paraíso Tropical

"Boys in red" - crianças à saída de uma fábrica de tinta, no Bangladesh. Foto de Mak em GFDL.

Escrevo este post com apenas uma mão. A outra está ocupada a refrescar o dedo anelar num copo de gelo porque me queimei ao grelhar a gigantesca posta do acém que me serviu de jantar. Sim, não sou vegetariano. A minha tendência para o politicamente correcto ainda não chegou aí. Sempre que reflicto no acto bárbaro que é comer carne, o meu lado egoísta anestesia uma certa parte do cérebro, ao mesmo tempo que as minhas glândulas salivares decidem dar razão a Pavlov e ao canito que todos os estudantes de psicologia conhecem, sem saber o seu nome, ao contrário dos cães nos romances do Saramago, sempre presentes, sempre Constantes. Com C maiúsculo. Acto bárbaro, o de se falar de um cão sem o chamar pelo nome (ou, pior ainda, chamá-lo pelo nome do dono ou de um gajo que fazia experiências com ele).

Serve isto de intróito para falar de uma telenovela. Yep - sim. De uma telenovela. Não sou, actualmente, grande apreciador do género. Gostei muito do "Roque Santeiro"  e de "A Sucessora". E lembro-me de, em pequeno, vítima do "horrível" trabalho infantil  (é-me permitida a ironia, já que a partir  dos meus 11 anos, até à altura em que ingressei na classe privilegiada dos professores, passei 70% dos meus fins de semana, feriados e férias a trabalhar nas obras), ter conseguido escapulir-me de uma montanha de cofragens sujas com pregos para limpar para ver um pouco do compacto de episódios de uma novela cómica que tanto se poderia chamar de "Cambalacho" como "A Rainha da Sucata" (maravilhoso exercício cinéfilo que, felizmente, já conseguia decifrar nos seus muitos níveis de leitura) ou mesmo "Sassaricando" (mas creio que esta é muito anterior ao episódio que vou contar)... Quando consegui, enfim, um momento para entrar num café onde estava a passar a novela, a poucos passos da obra, na árida paisagem do Entroncamento, que na altura era um paraíso para a construção civil desenfreada, sorri durante alguns minutos para a sucessão de cenas cómicas e de sonho que me permitiriam, depois, perante a massa desconjunta de madeira impregnada de cimento e ferrugem, imaginar que também a vida teria um final feliz. Por alguma razão, revelo agora, incluí na minha lista dos 100 filmes, a "Rosa Púrpura do Cairo" de Woody Allen e "A Quimera do Riso" de Preston Sturges. Porque fazer os desgraçados sorrir e sonhar não é uma arte. É um imperativo ético.

Na altura em que comecei a escrever isto, estava a começar uma telenovela na SIC. O título, sensaborão, é "Paraíso Tropical". Mas, como em outras novelas de Gilberto Braga, tem Caetano por fundo. Teve, hoje, um maravilhoso travelling espácio-temporal do interior selvagem do Rio de Janeiro, de dia, até Copacabana à noite. Teve uma sequência deslubrante (vista deslumbrante) e maravilhamente artificial - quase arcaica, como no "Niagara" com a Marilyn - de uma tempestade no mar e uma quase morte por afogamento. Tem uma casa de meninas e uma posição politicamente correcta sobre o assunto. Tem uma fotografia fria (ao contrário dos enjoativos tons pastel e abuso de filtros pelas outra novelas da Globo) a fazer lembrar um filme de Ken Loach (autor de outro filme que faz parte da minha lista: "Kes"). Não digo que vá seguir a novela com muita atenção. Não tenho tempo para fidelidades televisivas (excepto para o "Lost").

Mas, com isto, esqueci-me de contar o episódio daquela vez em que entrei num café, no Entroncamento, para ver um pouco da novela. O empregado de balcão, vendo-me interessado na mesma, e estando eu, um miúdo com 12 ou 13 anos, sujo das obras, mudou de canal para que eu saísse.

Talvez isso explique muitas coisas. Por exemplo, a lágrima que reprimi, por ser piegas, quando li aquele momento de "Coração" de Edmondo de Amicis, em que o rapazinho rico, indignado, quer limpar o sofá sujo pelo colega que acaba de chegar do trabalho e que pelo seu excesso de zelo doméstico recebe apenas, e justamente, um raspanete do pai que lhe explica que a sujidade do trabalho não é sujidade. É honra. E pronto. Lá vem a lágrima piegas, de novo, a querer insinuar-se.
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publicado por Manuel Anastácio às 22:17
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De Artur a 19 de Abril de 2007 às 19:01
Só mesmo tu é que tens a erudição para ver o microscópico que pode haver de bom numa telenovela...
De Gerana Damulakis a 27 de Agosto de 2007 às 03:00
De Gerana sobre o texto de Anastácio:
excelente seu texto, seja pela velocidade, seja pelo próprio desenvolvimento de tantos tópicos interessantes, saindo uns dos outros tais como aquelas bonecas russas chamadas de matrióskas (creio que assim são chamadas). É isso: apenas para parabenizá-lo.
geranadamulakis@yahoo.com.br
De Manuel Anastácio a 7 de Setembro de 2007 às 17:00
Olá, Gerana.

Obrigado pelas palavras. Seja sempre bem vinda a este cantinho.
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