Tive a honra de participar como delegado na última Convenção do Bloco de Esquerda, onde se definiriam as orientações políticas do partido. Muita gente, ao saber desta Convenção pelas notícias, regalou-se com as cisões ideológicas entre alas mais "Louçã" (as minhas) e outras alas, simpáticas umas (como a antitotalitária) e a extremista (que, entretanto, debandou para outras freguesias). Para mim, foi o revelar de um partido feito de partidos, feito de opiniões e de gente que não canta a mesma cartilha como se fosse a tabuada na escola. Estava entre gente que pensava por si, entre ovelhas negras, azuis e de todas as cores, não dispostas a seguir o rebanho, mas a decidir em conjunto o caminho a seguir pelo rebanho. À entrada, ativistas dos direitos dos animais pediam para votarmos a favor da inclusão de uma adenda que colocasse o Bloco de Esquerda como defensor implacável dos direitos destes animais nobres e criados na natureza como soberbos na sua herbívora dignidade. Detesto o taticismo político. Sei que o há também no Bloco de Esquerda, como em qualquer partido. Sou por princípios. E o princípio de que tourada na arena é barbárie e na cama é coisa boa, é daquelas coisas que gostaria de ver ser considerada pelos meus camaradas como coisa unânime, fossem eles marxistas, leninistas, maoístas, estalinistas ou que bem lhes apetecer na carola. Não era contra os bifes que se insurgiam os ativistas - e bem podiam. Custa-me admitir, mas é verdade que eu como e gosto de carne, mesmo reconhecendo a violência implícita no ato. Mas há uma diferença entre matar um animal para comer (como acontece, violentamente, na Natureza desde que há animais) e matar para divertimento e prazer estético. Talvez um dia me torne vegetariano, mas essa é outra conversa, embora me custe deixar a posta mirandesa (sinto-me como um canibal com peso na consciência). Não tive dúvidas de que deveria votar a favor de um partido absolutamente antitourada. E foi assim que votei, tal como a maioria dos delegados. Mas dos outros que votaram contra, curiosamente, ninguém era a favor das touradas. E eu não compreendo isso, nem no Bloco nem na Santa Madre Igreja. Princípios são princípios. Vão contra um gosto enraizado de um povo embrutecido, que se diverte a passar coelhos e sapos a ferro na estrada, e a ver sangue a jorrar e vísceras a latejar em corpos de belos animais esventrados. Há gostos para tudo, dizem. Pois há, mas nesse caso também deveríamos legalizar a pedofilia, são gostos, não é assim? Que gostos não se discutem. Parvoíce, extrema, que os gostos são a coisa mais discutível do mundo e por isso mesmo são o melhor tema de conversa entre gente que se conhece há pouco tempo. Nesse dia, o Bloco de Esquerda passou a ser, contra a tradição grunha portuguesa, contra as touradas. E eu fiquei mais orgulhoso do meu partido do que nunca, pela coragem tomada. Há dias, à conta de uma fotografia falsa que anda pela Internet, deparei-me novamente com uma coisa que me incomoda deveras - quando aqueles que estão supostamente do meu lado tentam convencer os outros usando da mentira. Quando Saramago ou Miguel Torga descreveram o sofrimento do animal sob o seu ponto de vista fictício, usaram de uma mentira benigna e nobre. Mas quando se apresentam fotografias de um suposto acontecimento que, se alguma vez ocorreu, não foi fotografado, aí, quem se indigna sou eu. A mentira descarada nunca poderá servir de alicerce à mudança das consciências. Ou a verdade fala por si, ou a luta é contaminada pelos mesmos vícios daqueles que já mandam nos destinos do mundo. A fotografia mostra um toureiro sentado em posição de desânimo, como se tivesse sido atacado por um qualquer achaque físico ou psicológico perante um touro, sangrando no dorso, numa atitude não ofensiva. Descobri que a fotografia foi sendo interpretada e reinterpretada por muitos, a ponto de se identificar o toureiro com o colombiano Álvaro Múnera, que se dedica atualmente à defesa dos direitos dos animais e das pessoas incapacitadas, depois de ter sido colhido quase fatalmente na arena, pouco antes de outro amigo seu, também toureiro, ter morrido em situação semelhante. Na verdade, Múnera confessou numa entrevista que por várias vezes tinha ponderado deixar a arte de matar em público. Depois de matar uma novilha grávida e ver o feto morto, vomitou,mas foi convencido de que nojos desses eram para maricas. Foi preciso que a força torturada de um animal o convencesse. A sua história é mais bela e convincente que uma fotografia falsa. Mas uma imagem, mesmo falsa, vende melhor uma ideia; um texto é sempre difícil e ninguém está para isso. É verdade que uma imagem diz mais que mil palavras. Mas cuidado. Pode dizer também aquilo que nunca foi. E, aí, só as palavras resgatam a imagem daquilo que ela não diz.