Sábado, 31 de Maio de 2008
Disparates II

Pormenor de talha policroma, capela do Paço de Ançariz, Escudeiros, Braga. Foto minha em  Creative Commons

 

- Diga-me, conhece palavras de origem árabe?...

- Não, não estou a ver...

- E se eu lhe disser... Alentejo, Almodôvar...

- Ah sim, como Lisboa, que era Olissipo...

(Programa "Quem quer ser Milionário")

 

O comunicado termina positivista, com a crença de que os Jogos Olímpicos de Pequim serão um sucesso.

in Infordesporto, mas inspirado na fala de um jogador de futebol (que não sei identificar), hoje, também ele muito positivista.

 

O professor Manuel Anastácio (Carvalhal, Abrantes, 16 de Março de 1975 - ) é um intelectual português. Vive atualmente em Guimarães, no norte do país. Anastácio foi um dos iniciadores da wikipédia lusófona, quando esta tinha menos de 2 000 artigos e era, essencialmente, coordenada por Jorge Candeias. A sua ação na Wikipédia tem-se caracterizado pela criação e expansão de verbetes de altíssima qualidade, pela alimentação de polémicas estéreis e pela atribuição do prestigioso prémio internacional Medalha de Carrasca. Anastácio tem se distinguido também por uma intransigente, frequentemente agressiva, mas sempre coerente posição anti-fairuse.

 

O professor Anastácio foi galardoado com diversos prémios. Entre eles devem incluir-se a medalha de ouro no 3.º WikiConcurso, o Martelo Negro, o prémio ouro da WikiPrenda, e o primeiro lugar no 6.º Wikiconcurso. O professor Anastácio vai ser também agraciado com a chave de ouro da cidade onde nasceu: Carvalhal.

 

A dedicação do professor Anastácio à Wikipédia é internacionalmente reconhecida. Numa atitude coerente, já por mais de uma vez abandonou o projeto, mas sempre regressou dado o apelo das bases. O seu estatuto de administrador por vezes contestado nunca foi verdadeiramente posto em questão, e é agora um dos administradores com mais tarimba. Enquando administrador carateriza-se por uma atitude cordial em relação aos outros editores. Quando em algumas vezes se excedeu nos seus insultos, chegou a mesmo a pedir para o bloquearem, dando assim prova de imparcialidade e sensatez.

 

Manuel Anastácio anima o blogue Da Condição Humana, um blogue de pequena dimensão e diminuta audiência, caracterizado pela atenção dada à literatura.

Artigo "Manuel Anastácio", da Wikipédia, apagado após votação. O autor do arrazoado é um impagável JP. Só soube da existência do artigo depois de ele ter sido apagado. Mas, devido a privilégios de administrador, consegui recuperá-lo aqui para o blogue. Acompanhava o artigo uma fotografia minha com a legenda: "

 


Manuel Anastácio,

 

o verdadeiro e único,

nas suas próprias palavras

totalmente alienado,

numa fotografia que o beneficia.

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Sexta-feira, 30 de Maio de 2008
Vénus reflectindo sobre o que lê

Vénus reflectindo sobre o que lê. Escultura em granito, data desconhecida, Paço de Ançariz, Escudeiros, Braga. Foto minha em Creative Commons

 

 

É terreno privado. Pedras privadas. Interesse público. O lugar é o Paço de Ançariz, Angariz ou Ancariz, em Escudeiros, Braga, e que terá sido pertença do arcebispo Dom Diogo de Sousa, que o terá trocado pelo Campo da Vinha – conta a anfitriã que pouco sabe contar daquilo que vi. Como passava por lá frequentemente, e tendo eu manifestado interesse em conhecer os jardins e as pedras, conhecimentos houve que me abriram o portão ao lado da capela. Das pedras que vi, e das quais me falta bibliografia e palavra ajuizada para as compreender, restou-me o encanto e a revolta. Encanto, porque não há Miguel Ângelo nem Brancusi que me enterneça mais que os rudes talhadores de  granito das terras lusitanas. Não há igreja românica ou gótica que passe indiferente à minha vista. Cada rosa, signo-saimão, entrelaçado, flor-de-lis, carantonha, ave, monstro, sereia, esfinge ou pormenor pornográfico que se insinue na pedra medieval é por mim admirado à exaustão. Sou daqueles chatos que se demoram nas visitas em museus a olhar os pormenores que quase ninguém quer ver. Infelizmente, grassa a praga, nos museus, de se proibirem as fotografias (mesmo sem flash). Por isso, não são poucas as vezes em que gostaria aqui de falar de alguns desses pormenores, e não falo, porque me falha a pena, faltando-me a janela.

 

Faz-me impressão a apropriação por privados daquilo que devia ser pertença de todos. Há em Campo Maior um menir que foi transformado em acessório de uma discoteca. Menos mau é o caso, que a reutilização da Arte não é mais que prolongar-lhe a vida. Pior é quando a arte cai nas mãos de quem a esconde aos olhos de quem a quer ver. Ainda mais quando essa arte é um testemunho histórico que a torna indubitavelmente pertença de todos, usufruída apenas por alguns. A minha conversa de esquerda enjoará a muitos, com certeza, numa época em que ninguém é de esquerda, incluindo os adversários do nosso socrático governo. Mas ninguém me tira da cabeça que há coisas que não podem ter dono, ou cuja posse deveria ser criteriosamente regulada por leis que permitissem o acesso de todos os cidadãos ao seu usufruto. Não proibiria simplesmente a posse desses tesouros da nossa história aos privados porque sei, simplesmente, que na mão das entidades públicas provavelmente ficariam em pior estado ou guardadas com o cadeado da arrogância institucional das nossas ipparescas vergonhas. A história da arte portuguesa há muito que se escoou por entre os dedos dos ladrões liberais anticlericais que despojaram os nossos mosteiros e, depois, entre as palmas apertadas de quem gosta de ter bibelôs de luxo, mesmo que os considere, apenas, pedras sem fala.

 

Ao ir-me embora daquele recinto, de que falarei mais vezes, em breve, vi ao cimo da dupla escada de granito, o corpo deitado dela. Julguei ser uma Senhora da Boa Morte, mas em boa hora me enganei. Não sei o que é. Faltam-me os pergaminhos e o olho clínico. Mas é figura pagã. Não sei o que tem entre as mãos, se é um frasco, se é o próprio coração. Por vezes, dá-me a sensação de que lê. Parece ser para um livro que o seu olhar seguia antes de o ter fechado (ao olhar), como quem reflecte. Pode não ser um livro. É provável que não seja. Para mim, é. Noto nos requintes do lavor de toda a parte superior da estátua, a testa alta, o cabelo voluptuosamente espalhado e… o sorriso. Digno de inveja por parte daquela outra que todos conhecem. Seria isto uma pedra tumular? Não compreendo a forma arcada e abatida do nicho. Não compreendo, sem sei se há quem compreenda. E vacilo entre a vontade de querer saber quem é aquela mulher (sim, estou a citar Buraka) e o desejo de ficar para sempre na ignorância. Mas a elas voltarei. À mulher. E à minha ignorância.

 

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Domingo, 25 de Maio de 2008
Eli Eli lama sabachthani?

Aqueduto de Pegões. Foto minha em Creative Commons

 

Promete não dizeres mais nada
Entre os arcos desenhados pela minha voz.
De nós, nada mais deve restar agora
Que os dois num só, a sós.
Promete não dizeres mais nada
Enquanto durar a nossa constelação.
Promete manter o céu em silêncio
Até que venha a hora
Em que peçam explicação,
E remoam o espanto
Perante o silêncio de água e sangue
Que escorre dos meus flancos
Depois de ter gritado a última acusação
Que ninguém compreenderá.
Porque, nessa hora, não me terás abandonado,
Mas aberto a porta
Para que, enfim, retorne, e entre de novo em mim.

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publicado por Manuel Anastácio às 20:52
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Segunda-feira, 19 de Maio de 2008
Lars and The Real Girl

Trailer de "Lars and the real girl" ("Lars e o Verdadeiro Amor" - titulo em Portugal, pouco fiel ao original, mas aceitável, tendo em conta a intraduzibilidade).

 

Jesus resolveria os problemas com milagres. É a atitude infantil que espera resolver todos os problemas com um passe de magia. Jesus, no entanto, seria apenas bom. Faria, com certeza, o milagre, se o pudesse fazer. Mas a solidariedade é-o sempre. Milagre. Porque um milagre é um sorriso divino – sorriso, não: gargalhada! E a solidariedade? É dar as migalhas da mesa a Lázaro que sob ela se arrasta? Ou aceitar Lázaro à mesa? E quem aí o aceita? Poucos, de facto.

            “Lars e o Verdadeiro Amor” (“Lars and the Real Girl”), apresentado como uma comédia romântica é, no entanto, para mim, a mais simpática e saudável das alegorias cristãs que já vi até hoje. O filme não é sobre um tarado que julga que a sua “boneca insuflável” é um ser real e amável (sendo amável aquilo que é passivo de se amar). O subcontexto sexual do filme é apenas um acidente num quadro de pura moral e ternura comunitária cristã. É uma história de amor na acepção exposta por São Paulo no seu célebre capítulo 13 da Primeira Epístola aos Coríntios. Fosse eu professor de Educação Moral e Religiosa ou catequista, e mostraria o filme sem quaisquer pruridos na consciência aos alunos, como exemplo do que deveria ser a vida cristã. Como deveria ser, não como é.

            “Lars”, sem ser uma obra prima, é um bom exemplo de que como o cinema não vive apenas de devorar as misérias humanas, podendo mesmo ascender ao mais cândido dos optimismos sem que tenha, por isso, de alienar por completo o espectador num mundo de maravilhas que mantenha em coma o seu sentido crítico. Não precisa de envolver as personagens numa via sacra para justificar a redenção final. Um percurso de placidez e sorrisos pode dar origem a um filme tão apaixonante como outro em que as personagens são obrigadas a enfrentar as próprias tripas.

            A argumentista, Nancy Oliver, que já tinha participado na série “Six feet under” não procura a clássica fórmula que passa por angustiar o espectador para tudo redimir com uma resolução benévola no final. Todo o filme é imerecidamente benévolo para seres humanos que improvavelmente aceitariam o desafio de acolher no seu seio um corpo cuja alma reside no seu exterior – o desafio de compartilhar a loucura por um bem maior. A alma desta boneca anatomicamente correcta encomendada pela Internet, apresentada por Lars como sua namorada, nasce, não apenas  da imaginação iludida de Lars, mas também da aceitação incondicional daqueles que conferem à ilusão a força da necessidade. A boneca não aparece naquela comunidade apenas como meio para a resolução das angústias de Lars, mas como meio de justificação e laço de união comunitário. Não é uma mascote. É uma extensão de alma de um dos seus membros, tornados ainda mais queridos porque extraviados da senda mental por onde quase todos seguem. Uma extensão de alma que pede urgentemente para se libertar, de modo a permitir à alma que lhe deu origem um regresso a casa. Não se esqueçam que a Ética é, segundo Heidegger, a habitação do homem nos deuses. Lars, sem morada, regressa a casa pela mão daquela comunidade cristã que não o repudia nem dele se enoja e que mesmo dele se rindo, o faz com a compaixão de quem não fere nem com palavras. Da mesma forma, a própria boneca, Bianca, não sendo, também regressa a casa, sendo.

            O filme não é uma obra prima. Mas não me lembro de melhor prova – não da existência de Deus mas, pelo menos, da sua dolorosa necessidade. Talvez Deus seja uma ilusão. Bianca é uma ilusão. Logo, talvez Bianca seja Deus. A lógica não é perfeita. Mas a conclusão, sofisma ou não, ajusta-se às mil maravilhas. Colocaria este filme na lista dos dez melhores filmes de sempre sobre Deus… Hum… isso dava um post… :)

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publicado por Manuel Anastácio às 22:46
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Sábado, 10 de Maio de 2008
Voca me

Confutatis e Lacrimosa, do Requiem de Mozart, John Eliot Gardiner conduzindo os English Baroque Soloists e o Coro Monteverd, Palau de la Musica Catalana, Barcelona, Dezembro de 1991.

  

A mãe sentava-se no canto. Aborrecido com o seu silêncio acusador, fazia-lhe uma careta, acendia a televisão, aborrecia-se ainda mais, levantava-se e saía. Sem dizer nada. Seguia ao longo da estrada, atravessava os campos sem prestar atenção à erva ou à terra que calcava, ao rio escondido entre salgueiros e choupos ou às torres de tijolo abandonadas, e espreitava o local onde, por vezes, as prostitutas esperavam a paragem de um carro que justificasse a espera. Passava rente a elas, à espera de um comentário ou mesmo de uma proposta. Às vezes acontecia, não a proposta, que não havia tempo para diversões gratuitas, mas a frase solta de quem se esconde atrás de um falso descaramento. Ou de um verdadeiro, se este for a acção de perder a cara, de diluir a face numa vergonha misturada de coragem, desespero e fraqueza. Mas, isso, ele não entendia. Tinha alguma pena delas, mas não o bastante para as olhar como seres humanos, como, de facto, não se olhava a si mesmo. Ele era o que passava, o que agora desejava. O que fazia.

            Não queria saber de futuros nem do bem que todos lhe diziam querer. Preferia fugir pela cidade e chegar tarde a casa. A mãe, sempre no canto, não lhe fazia perguntas. Por onde andaste, que fizeste, nada. O pai chegava mais tarde ainda. Com ele falava. Pouco, mas falava, de raparigas, do futebol e, infelizmente, por vezes, da escola, a que faltava invariavelmente. Tal como, por vezes, lhe oferecia a tareia que, na escola, se dizia não receber. Mas preferia a mão pesada do pai ao silêncio acocorado da mãe.

            O pai seguia em primeiro lugar para o quarto, cansado, enquanto a mãe parecia de volta ao canto depois de nem ter sido possível reparar que de lá tivesse saído.

            Ele também não ia logo para a cama. A vida de mandriice trazia-lhe a leve sensação de que o tédio era o maior dos prazeres porque exigia a procura de entretenimento, o que era a melhor forma de se entreter, já que chegando o divertimento, de novo se instalava o tédio. Mas era tudo uma sensação. Não se julgue que pensava nisso – e muito menos por estas palavras. Até porque conhecia poucas palavras, incluindo tédio. Entretenimento, saberia vagamente o que queria dizer. Até porque os dias eram uma fiada de horas que convinha encher de tudo, menos de palavras. Na escola, tudo eram palavras. E tédio, vontade de expandir aquelas paredes brancas sujas com becos de aventuras estranhas e olhares sedutores como o da morte. A escola parecia tão suja como os caminhos que o chamavam, mas sem os recantos onde anichava o seu desejo de ócio orgânico. De um tipo de sono acordado que queriam constantemente perturbar com palavras, imagens e raciocínios que só se tornavam vagamente interessantes quando reduzidos a anedota e ao ridículo da sua pomposidade e inutilidade exposta. Ao exercício do descaramento.

            Não ia logo para a cama. Olhava para a mãe, no canto. Sempre acusando-o com o olhar, apenas com o olhar, que não lhe levantava a mão. Já o fizera e arrependera-se. Tiveram de correr com os irmãos mais pequenos para casa da avó, que se recusou à troca inversa. A mãe passou a recolher-se ainda mais para o canto até à altura em que a forçaram a fazer qualquer coisa, a castigá-lo de alguma forma, para que não se tornasse no gandulo que todos pressagiavam que viria a ser. Castigou-o fechando à chave todas as pequenas coisas a que teria alguma afeição. Alguma, pouca. Bater-lhe, nem se atrevia, nem ninguém a tal a aconselhava. Ele ignorou o acidente: as ruas não se fechavam a cadeado. Um dia, quando voltou, estava a mãe deitada no chão, a gemer e a apontar na direcção do armário onde tinha o medicamento que a deveria socorrer. Ele puxou um banco e ficou a olhar para ela, silenciosa, no chão, de olhos cada vez mais vidrados, respirando a custo, talvez suplicando, ou não, até que começou a esboçar o sorriso plácido da paz que nunca tivera. Ele deixou-se ficar, até que o pai chegou. Vieram os bombeiros buscar-lhe o corpo. Seguiram-se dias de silêncio sem tédio e sem procura, até que tudo voltou ao mesmo, sempre ao mesmo, com ela sempre ao canto. Presente ali só para o castigar com o silêncio, ao canto, dizendo-lhe que também ela não faria nada para o salvar.

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publicado por Manuel Anastácio às 17:57
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