Terça-feira, 6 de Junho de 2006
Herbário I - Mentha spicata


No tempo em ninguém ouvia com reverência (fingida ou não) as minhas esclarecidas opiniões sobre tudo, era na escuridão que envolvia a casa que eu encontrava os ecos da minha solidão e me sentia parte do mundo. Ainda que não fosse capaz de entrar por um cemitério adentro durante a noite, era no ermo do pinhal, dos quintais ou sobre o terraço do barracão onde se guardava a lenha e a erva para as ovelhas que eu me sentava a olhar as estrelas frente à indiferença da lua. Os pinhais junto a minha casa eram, essencialmente, ladeiras cobertas de musgo, urze, carqueja e líquenes brancos a que chamávamos "estrelinhas". Era aí que o silêncio morto da natureza gotejava em paz sobre o meu sofrimento. Foi numa dessas ladeiras que dei o último afago a um cão amarelo, baixote e olhos cor de mel que se colava a mim sempre que me via a chorar e que compartilhava comigo o silêncio de existir. Foi aí que lhe tentei dar a última guloseima e ele a recusou, deitando-me um último olhar de tristeza. Foi entre as folhagens de sobreiros enegrecidos  pela noite que a morte o recolheu. Foi aí que lua, pela primeira vez, me cuspiu na cara toda a sua arrogância de luzeiro eterno.

Hoje, moro numa cidade, ainda que oiça grilos. Não há ladeiras desertas à noite. Não há barracão com erva para as ovelhas. As ávores, ali ao lado, têm holofotes pegados às raízes. Os choupos-negros, ainda assim, acariciam a minha varanda com sussuros do outro mundo - com toda a dor para a alma que isso implica. Por mais que sejam poéticas, as casas nos altos dos vendavais nascem já assombradas, mesmo sem passado a consagrar-lhes as fundações.

Como estorninhos, os amores fustigados pelo vento, são apenas sofrimento destilado, cujo brilho deriva apenas da sua pureza química:

E come li stornei ne portan l'ali
nel freddo tempo, a schiera larga e piena,
cosí quel fiato li spiriti mali
di qua, di là, di giú, di sú li mena;
nulla speranza li conforta mai,
non che di posa, ma di minor pena.

Hoje,  a lua desce o seu arco invisível sobre os prédios da frente. Quando olho as estrelas e a sua indiferença prateada, ou exponho-me a  supostos olhares indiscretos ou resguardo-me com as cortinas amarelas da cozinha enquanto  beberico vinho, guaraná ou mordisco silenciosamente uma peça de fruta. Bolachas, não, que quando as mastigo durante a noite, pareço um batalhão de soldados a marchar em cidade recentemente conquistada - a Casta Diva não é para mim sinal de vitórias, mas um simples afago que a natureza me dá com o seu desprezo.

Hoje, o meu amor deixou-me sozinho. Com a lua, gelado com uma folha de hortelã e uma lágrima a que não senti o sal.

Por mais poética que seja,
Uma lágrima será sempre uma lágrima.

Amo-te, C.C.
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publicado por Manuel Anastácio às 22:31
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De Maria Helena a 7 de Junho de 2006 às 02:19
Existe uma imensa beleza na tristeza.
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