Quinta-feira, 27 de Agosto de 2009
As flores como símbolo sexual

Lírios-do-vale e rosas amarelas, em "A Idade da Inocência", de Martin Scorcese.

 

Não cheguei a referir por aqui a volta da mais bela criação blogosférica portuguesa que é, sem dúvida, o "Dias com árvores". Foi lá que encontrei esta lindíssima citação de Lineu a respeito das flores ou, mais especificamente, a respeito de um dos seus acessórios de sedução: "as actuais pétalas de uma flor em nada contribuem para a sua geração, servindo apenas como tálamo nupcial que o Grande Criador tão gloriosamente preparou, adornado com cortinados de grande preciosidade e perfumes de muitas suaves fragrâncias, de modo a permitir ao noivo e à noiva celebrar aí as suas núpcias com a maior solenidade". Solenidade é palavra que pouco diria a uma flor se usasse o nosso vocabulário; nada há de solene numa flor, a não ser que a linguagem do desejo, liberta no abandono dos sentidos a si mesmos, seja em si mesmo solenidade. É certo que Lineu falava de solenidade porque sempre pareceria mais legítimo e moral que falar da pura luxúria hormonal que uma flor encerra nas suas pétalas que, mais que órgãos de protecção, são, geralmente, insidiosos convites à penetração orgíaca dos insectos que nelas realizam, insuspeitadamente, a tarefa de cumprir a ânsia de existir e se prolongar que caracteriza a vida. As flores sempre foram motivo de celebração do sexo e, mesmo, da negação do mesmo. É assim que o lírio branco envergado pelo Arcanjo Gabriel rivaliza com a branca açucena na mão de São José ou com as hipócritas florzinhas de laranjeira com que se disfarçam os desejos já consumados de muitas noivas. É óbvia a contradição, esta de se representar a virgindade com flores quando estas são apenas símbolos da mais descarada voluptuosidade. Claro que a rosa é já, não um símbolo de feminilidade, mas um símbolo de reverência para com o sexo feminino. Reverência essa que pode bem variar do mais extremado e lúbrico apetite à platónica satisfação de uma ascesce celibatária ou, quiçá, temerosa misoginia - é aí que entra a castradora imagem da rosa mística que não mais é que a negação da mulher ao seu próprio sexo para se submeter à insuficiência de uma certa ideia de masculinidade enformada pela religião. Em "A Idade da Inocência", Edith Wharton contrapõe aos lírios-do-vale, mensageiros de um regresso inevitável e natural, como a Primavera, oferecidos pelo protagonista à sua prometida, as rosas amarelas oferecidas à Condessa Olenska, personificação de uma atracção fatal e escandalosa. Rosas amarelas que simbolizam sempre algo de doentio, seja o ciúme, seja o amor que se esmorece, seja a traição ou o abandono. Mas se me lembrei de falar disto, foi por causa de um recente texto onde uma pila bem falante e prolífica bloguista se recusa a aceitar o adjectivo murcho, dizendo que quem murcha são as rosas... Ora, estando esta pila específica entre as rosas da coluna à direita, pensei em fazer uma nova subdivisão nas minhas categorias de blogues, onde a incluiria entre flores mais erectas. Há algo disso nos gladíolos, mas são flores demasiado emproadas e avessas a qualquer aproximação. Erecção por erecção, que seja a das flores do verde pinho, ou os duros aloendros da imagética erótica da Natália Correia. Mas não. Fica ali, entre os odores púbicos das rosas. Porque não há flor mais versátil no simbolismo que a rosa. Do mais extremado e lúbrico apetite à platónica satisfação de uma ascesce celibatária ou, quiçá, temerosa misoginia. Já o tinha dito.

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publicado por Manuel Anastácio às 15:24
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De shark a 27 de Agosto de 2009 às 16:35
Que delícia de post, pá. E inspirado no que foi, ainda tem mais valor para este insuspeito leitor.

(Abraço, MA, e que algum deus ilumine sempre os teus passos)
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