Excerto da minissérie "Capitu", de Luís Fernando Carvalho. Absolutamente indispensável que uma televisão portuguesa a adquira e exiba. E já. [Ou talvez não... Ver comentários.]
Já foram muitas as vezes que entraram neste blogue à procura dos olhos de ressaca de Capitu, do romance "Dom Casmurro", de Machado de Assis. Creio que Assis não pretendia dar qualquer ambiguidade à expressão. Hoje em dia, o leitor médio, pouco habituado ao vocabulário marítimo, desconhece o que seja ressaca. Pensará, porventura, que aquela mulher tinha os olhos cansados de quem abusou do álcool na noite anterior, o que poderá, de certa forma, coadunar-se com o que é dito, também, a respeito do seu modo de ser oblíquo e dissimulado. Mas não. A palavra ressaca resulta da anteposição da partícula "re" ao verbo sacar. Trata-se, portanto, do acto de sacar algo de forma repetida. A expressão "saca e ressaca" aplica-se ao fluxo e refluxo das ondas do mar, e que tem como resultado a sucção, por vezes fatal, de objetos para o abismo das profundezas aquáticas. Hoje em dia, Machado de Assis bem poderia dizer que os olhos de Capitu eram como buracos negros, mas duvido que a imagem fosse tão eficaz. Os buracos negros podem ser mais fortes que o movimento das marés, mas pertencem aos conceitos que, ainda que se refiram a realidades factuais, não pertencem à esfera da experiência sensível de quem quer que seja. As imagens, na literatura, têm, geralmente, de apelar à realidade sensível, a não ser que se trate de literatura com pretensões metafísicas. E mesmo essa costuma necessitar de uma certa tradução sensorial.
Diz Machado de Assis:
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.
Assis faz uso de uma interessante apóstrofe ao evocar a Retórica dos namorados. E a Musa inspira-o com uma expressão de pura força física que, ainda por cima, se consegue traduzir de forma quase automática na linguagem obscura, mas tão recorrente, das "energias" e dos "fluidos misteriosos". O narrador não circunscreve o efeito do olhar de Capitu à atração física que provoca. A utilização da expressão é também utilizada, de forma magistral, como premonição de uma morte que se concretiza, literalmente, graças à ressaca marítima, ao mesmo tempo que funciona como leitmotiv mais ou menos explícito em todas as situações ambíguas que, em constante fluxo e refluxo, cobrem e descobrem a personagem de Capitu, até ao inevitável encerramento enigmático no abismo da eterna dúvida.