Sexta-feira, 3 de Outubro de 2008
Canja de porco

Trailer de "Ratatouille"

 

A canja de porco, ou sopa de ossos, é uma comida típica das matanças na minha terra natal, Carvalhal, Abrantes, e é servida no dia da desmancha do porco - isto é, no dia seguinte à matança, quando este é dividido, depois de se deixar, aberto, pendurado de pernas para o ar no chambaril, que é um pau curvo, parecido com um boomerang. A sopa é feita com os ossos frescos do porco (da cabeça), postos a ferver com presunto curado (do porco anterior). Quando o caldo está feito (com olhinhos de gordura a flutuar, como em qualquer canja), junta-se massa esparguete partida em pedaços de um centímetro, mais coisa menos coisa. A tradição, respeitada em casa do amigo Silvério Salgueiro, no entanto, manda que seja arroz (tal como na canja de galinha tradicional, onde as massas também já se impuseram).  O mais importante para mim, contudo, é lavar muitos raminhos de hortelã que são postos no prato na altura de servir. Tal como a canja de galinha, imputa-se a esta sopa propriedades medicinais, ainda que, em termos nutritivos seja obviamente pobre. Ouvi falar vagamente de uma lenda sobre alguém que a serviu a um rei, mas não sei precisar pormenores. Nunca dei muita importância a tal comezaina, mas a excentricidade da mesma merece referência. E, quer queira, quer não, faz parte dos cheiros e sabores da minha infância... E quem viu o "Ratatouille" sabe do que é que eu estou a falar...


Entretanto, tenho de pensar em escrever algo sobre o Kabra's. Ponham-me a falar de comida... 

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publicado por Manuel Anastácio às 19:03
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Segunda-feira, 5 de Fevereiro de 2007
Leite-creme-falso (dá mais trabalho que o verdadeiro)

Queimador de leite creme tradicional - Foto minha (incluindo o escurecimento natural do metal pelo uso), em Creative Commons

Li algures que um dos melhores blogues sobre cozinha em língua portuguesa é escrito por um embaixador que, para não manchar a sua imagem (com quê? nódoas de gordura?), o assina anonimamente - e faz-me isto lembrar o repúdio que se tem à Wikipédia porque é feita por anónimos... Mas hoje não me apetece falar da Wikipédia... O que quero dizer é que a cozinha é um dos locais da casa mais interessantes para qualquer arte narrativa, sequencial ou temporal. A música da cozinha, com baixo contínuo do exaustor, não deve ser desprezada - e há, de facto, algumas pérolas na música erudita - começando por Bach, passando pelo Quim Barreiros e terminando em Aaron Copland - que têm a cozinha como base de inspiração. A pintura flamenga, com as suas maravilhosas naturezas mortas, mostra bem o que existe de ritual trágico nos alimentos amontoados. O cinema, então, tem uma lista de obras primas onde a cozinha  se torna o centro do Universo, o recôndito lugar da primeira das artes - e creio que a Arquitectura apenas tomou posse deste título à conta da efemeridade da culinária. Mas é uma efemeridade falaciosa. Assim como a mesma peça musical nunca é ouvida da mesma forma, mesmo quando reproduzida mecânica ou digitalmente, mas mantém a sua identidade e integridade artística, uma mesma receita consegue, em geral, repetir sensações. Se assim não fosse, não repetiríamos a peregrinação aos pastéis sempre que vamos a Belém. Claro que a arte da comida depende de muitos factores, muitos dos quais não dependem do cozinheiro (como o sentiu na pele - e na vida - François Vatel, só porque um peixe chegou atrasado). É assim que o meu delicioso leite creme, cuja receita já foi pedida pela Ana Ramon, que não se queixou do arroz doce feito segundo as minhas indicações num post já antigo, teve um percalço há dias... Ficou todo grumoso - e só não me suicidei como o cozinheiro já mencionado, porque... porque... porque sim. Mas foi fácil identificar o erro. Tudo se deve à batota (sim: batota, nada de batata) que utilizo para que esta sobremesa me encante as papilas gustativas. Qual é a batota? Pois - é aquilo que eu designo como "segredo" apenas para não revelar - e vou revelar agora, por isso deixa de ser segredo - que recorro ao baixo expediente de misturar meia lata de leite condensado à preparação... Pronto, eu sei, não se faz... Leite creme digno desse nome não se socorre de produtos artificiais enlatados... Pronto, reconheço que o meu leite creme não é digno desse nome... Mas é digno de o continuar a fazer, lá isso é...

Passemos, pois, aos procedimentos bioquímicos que resultarão num leite-creme-falso digno de rematar um excessivo e minhoto jantar de papas de sarrabulho com rojões, farinhotes, grelos salteados e belouro (excesso mesmo, mas é como a minha sogra faz - e faz muito bem - fica a promessa da receita desse excesso para outra altura). Primeiro, pega-se num litro de leite gordo e ferve-se com uma casca de limão, cortada larga e sem a parte branca, e umas folhinhas e caules de erva cidreira seca. É logo aqui que vem a batota: deita-se o leite condensado e deixa-se o leite aquecer, mexendo sempre, para que o leite condensado não faça caramelos espanhóis no fundo do tacho. Quando ameaçar ferver, apaga-se o lume e passamos ao ovos: 10 gemas, no mínimo, 13 no máximo. Ponha, entretanto, umas duas ou três folhas de gelatina em água fria. Batem-se as gemas com 150 gramas de açúcar (se decidir-se pela batota - sem batota, convém pôr um pouco mais de açúcar) e duas colheres de sopa de farinha de trigo sem fermento, rasas - nada de farinha maizena, a não ser que goste de papa para bebés. Vai-se batendo e quando começar a esbranquiçar, volta-se a acender o lume para que o leite fique bem quente. Deita-se, depois, o leite quente sobre a gemada com a ajuda de uma concha de sopa, pouco a pouco e mexendo imediatamente, para que os ovos não coagulem. Assim que tiver misturado todo o leite, volta ao lume, não muito quente, mexendo até engrossar - não é preciso que fique muito espesso, mas convém que o amido da farinha fique devidamente cozido. Junta, então, as folhas de gelatina, depois de escorridas, que derretem imediatamente assim que são postas no tacho, mexendo-se devidamente. A seguir, deita-se numa travessa ou pratinhos individuais... E deixe arrefecer - se não estiver ainda muito espesso, a gelatina faz o resto.

...Ah: convém ter um queimador de leite creme... nada de polvilhar com canela. Se for para polvilhar com canela, mais vale comprar meia dúzia de pastéis de nata. Leite creme, falso ou não, tem de ser queimado. O queimador pode ser como o da figura, ou dos eléctricos. Se for dos antigos, ponha sobre um bico do fogão até ficar em brasa - mas mesmo, mesmo, em brasa, quando for para servir, e só nessa altura. Só o cheiro do açúcar queimado já vale a pena. Polvilha-se o leite creme com açúcar e pousa-se o queimador sobre o açúcar, sem demorar muito tempo, para que o queimador não arrefeça antes de queimar a superfície toda. Se começar a arrefecer, terá de continuar apenas depois de voltar a aquecer o queimador (depois de lavado), o que é uma chatice...

Depois, é só quebrar a superfície do leite creme e apreciar. Se não gostarem, o estabelecimento tem livro de reclamações (é aqui em baixo, onde diz "dizer de sua justiça").

E pronto, por hoje chega... Ainda não fiz o meu artigo diário na Wikipédia. As mirtáceas (que raio de família botânica - com tantos géneros quanto as suas suas flores têm estames) exigem a minha presença... Até quando der...
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publicado por Manuel Anastácio às 19:30
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Quarta-feira, 26 de Julho de 2006
Mexilhões de cebolada


Pois bem. O mexilhão. Molusco de aspecto obscenamente sugestivo, efemeramente imortalizado (passe a antítese) pela música pimba ("mexe, mexe, mexe... Mexe, mexe, ó mexilhão... Tu gostavas tanto, não queiras dizer que não!..." - interessante a alternância entre versos de cinco e de sete sílabas métricas ) e pela grande poesia ("O mar bate na rocha... O mar bate na rocha... O mar bate na rocha... E quem se f*** é o mexilhão"). Coitado do bicho. Não tem culpa do cacofónico nome que tem na língua de Camões nem dos tristes usos de que é alvo. Depois, é petisco que nem sempre é devidamente servido. Quando comprado congelado, sem concha, tem tendência a ficar emborrachado e seco... Quando comprado vivo, tem uma triste aparência, coberto de estruturas calcárias segregadas por estranhos vermes marítimos e cracas-ou-lá-o-que-é, que, com certeza, constituirão belas composições para quem as procura entre a praia do forte e a praia de mil regos, na Ericeira, mas que seriam simplesmente abjectas num prato.

Lembro-me (aqui vem a "madalena" do post de hoje, em sentido próprio) de comer, com a Carla Cristiana, uns deliciosos mexilhões de cebolada, de entrada, no restaurante do Monte da Madalena, em Ponte de Lima. Um restaurante lindo, entre árvores ainda mais bonitas, onde o Alvarinho rimava com carinho, mas que tinha uma sobremesa simplesmente pavorosa com chila, leite creme e passas de uvas, numa mistela absolutamente imperdoável para a conta servida no final. Chamava-se "Delícia Madalena", a pouco deliciosa mistela. Mas os mexilhões ficaram na memória. O Alvarinho não. Ficou apenas a nublar a memória. Era a sua função. A minha irmã bem o sabia quando namorava com o meu cunhado. Sabe-se lá o que as videiras da tia Augusta teriam aprendido em conversa com as garrafas que os dois para lá atiravam. Desculpem-me a piada privada. Privada mesmo, que a minha irmã não deve ler o meu blog, penso eu de que...

Pois bem. O grande problema dos mexilhões é mesmo deixá-los com uma aparência aceitável. Dois quilos de mexilhões é muita concha a raspar (com facas duras, que devem arrancar a bicharada de raiz). É preciso lavá-los insistentemente e ir cortando as suas barbas verdes e fibrosas que, se não saírem, dão, também, mau aspecto.  Depois, vai um copinho de vinho branco para um tacho, com umas três colheres de sopa de azeite, uma pitada de sal e piri-piri. Quando ferver, os pobres dos mexilhões rapidamente descobrirão que o tormento do mar a bater na rocha era apenas o seu paraíso. O que vale é que o sofrimento não dura muito. Enquanto eles agonizam, salpicam-se com pimenta. Há medida que os pobres univalves se vão rendendo à sua sorte, abrem as conchas e são colocados retirados do tacho. Os mexilhões já abertos, antes de entrar no tacho, também já não devem nele entrar. Mexilhão cru, aberto, é mexilhão morto. E mexilhão morto, só se estiver cozido mesmo... Mas não muito, senão fica seco. Depois, colocam-se três cebolas, três tomates e três dentes de alho, tudo em rodelas, no molho deixado pelo último suspiro dos mexilhões. Tapa-se o tacho e deixa-se cozer lentamente... De vez em quando, abana-se o tacho. Enquanto isso, tiramos uma concha a cada um dos mexilhões. Quando a cebolada começar a apurar, prova-se e rectificam-se os temperos. Em geral, é necessário pôr um bocadinho mais de sal (esperemos que não seja necessário um pouco menos) e, talvez, um salpico mínimo de açúcar para dar cabo da forte acidez do tomate. Quando tudo estiver no ponto, pumba com os mexilhões de volta para o tacho, só para ganharem um pouco de vida...

E servem-se, com vinho verde branco gelado, claro. Se for Alvarinho, melhor... Mas a Retoma ainda não bateu à minha porta. É que Alvarinho rima, mesmo, com carinho...
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publicado por Manuel Anastácio às 23:48
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Terça-feira, 25 de Julho de 2006
Arroz-doce


Cem gramas de arroz carolino. Não pode ser agulha, nem vaporizado, nem Basmati nem outra modernice do género. Quando era pequenino, na minha terra, os casamentos não eram festejados em restaurantes nem em quintas (muito menos em solares, palácios ou outras extravagâncias que a Retoma Financeira permite a quem nela acredita). Era tudo muito caseiro. E não se resumia a um dia, mas a uma semana. As mulheres reuniam-se para fazer o inventário das louças, copos e talheres. Por alguma razão todos os serviços de louça da terra tinham pequenas marcas de tinta no fundo, para que, no final, cada um voltasse a casa com os seus próprios pratos, frequentemente lascados nas bordas devido ao tilintar dos beijos pedidos - para os noivos, para os pais dos noivos, para os avós, para os padrinhos, para tudo o que fosse casal (menos para casais de namorados porque as raparigas solteiras não se sentavam durante todas as refeições - eram elas que carregavam a sopa, o primeiro e o segundo prato, os petiscos finais, como a mistela de sangue e fressura a que se chamava "verde", sem que o fosse, e, claro, as sobremesas). Os homens tratavam de armar uma tenda de grandes dimensões, com telhado de rama de eucalipto, chão de junco e postes enfeitados com hera. Ao longo da tenda, mesas corridas, feitas sobre estacas levantadas do chão, ladeadas por bancos compridos. A comida era feita por um conjunto de "cozinheiras" designadas na primeira reunião das mulheres. Os doces eram feitos na semana antes do casamento, proporcionando ocasião para vários jantares comunitários enquanto ainda houvesse preparativos pendentes. O arroz-doce era branco, não levava praticamente nem leite nem ovos e era toscamente bordado com canela por mulheres apressadas que se limitavam a fazer losangos e arabescos esborratados sobre uma superfície que, chegado o dia do casamento, apresentava rasgos como a terra em tempo de seca. Eu, diga-se de passagem, nunca fui grande apreciador do arroz-doce da minha terra, ainda que agradeça o gesto das vizinhas que ainda vão levando um pratinho dele a casa dos meus pais quando por lá paro. Claro que prefiro quando trazem pão caseiro ou as broas das festas, quentinhas, acabadas de sair do forno a lenha. Mas gosto do meu arroz doce, desenraizado, mas com laivos de leite-creme. Não o leite creme daqui do Minho, que parece papa de farinha Maizena... mas o leite creme fica para depois. Gosto do meu arroz doce. Feito com cem gramas de arroz carolino. Ponho o arroz com uma colher de sopa de manteiga, um pau de canela e uma casca de limão (cortada sem a parte branca do limão) a ferver em água medida pelo triplo do volume do arroz. Quando tenho certeza de que o arroz está cozido, junto meio litro de leite quente, devagarinho. Faz espuma a cada adição, e vai-se formando um creme esbranquiçado a envolver os grãos. A cozinha começa a cheirar a canela e a limão - se não tiverem limão, usem erva-cidreira, e verão o efeito que tem... Lembro-me então, da Salammbô, do Gustave Flaubert, e dos cheiros cartagineses, não sei por que razão (de facto, sei, mas não digo). Depois de achar que o creme está a meu gosto, isto é, depois de penar longos minutos a mexer o arroz que demora a absorver o meio litro de leite, junto quatro (ou cinco) gemas de ovos, caseiros claro... Sim, daquelas galinhas que depenicam as suas próprias fezes... não daquelas que se vêm privadas do fruto da sua própria cloaca. Cada animal é como é e a galinha é assim. E os ovos são mais bonitos e amarelinhos se assim forem... E, graças a Deus, já não há notícias de salmonelas há muitos anos. Junto as gemas depois de as misturar com algumas conchas do arroz cozido, para que não coagule logo, claro. Quando sinto a mistura já suficientemente quente - isto é, se não coagulou, também já não coagula, tumba tudo para o tacho e mexe-se. Logo a seguir, 125 gramas (mais coisa menos coisa - se for menos, tudo bem) de açúcar e mexe-se. Põe-se na travessa e mexe-se para ficar tudo niveladinho. Depois, chama-se a Carla para bordar o arroz. Com as suas mãos de anjo (se não tiverem mãos de anjo, também não posso dar a receita) a canela desliza-lhe entre os dedos e reflecte as bordaduras da travessa. O arroz doce deixa então de ser uma sobremesa. Passa a ser uma pequena gravura ovo-láctea de efémero destino. Nenhum arqueólogo lutará pela sua submersão... Ainda bem.
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publicado por Manuel Anastácio às 01:27
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