Terça-feira, 2 de Junho de 2009
Sem eira nem beira, Xutos & Pontapés

Vergonhoso, este post do Tomás Vasques. Deixem-nos, pois, escolher. Eu, por mim, escolho não voltar a ouvir rádio da Emissora Nacional enquanto este governo se mantiver no poder. Isso inclui a Antena 2.

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Quinta-feira, 1 de Janeiro de 2009
"O Assassino de Salazar", de Joel Costa

Kirsten Flagstad, "Ho jo To ho" de "A Valquíria" de Richard Wagner.

 

Já aqui falei de Joel Costa, o admirável locuautor do mais agradável programa radiofónico da Antena 2, "Questões de Moral". Acabei agora de ouvir, graças aos podcasts disponibilizados pela RTP, um programa intitulado Godot. Sobre a euforia da Reforma. Avé Reforma. Vade retro Reforma. Retréte. Como dizem os franceses e aparentados, e bem.

 

Acabei, também, de ler "O Assassino de Salazar". Comecei a ler este livro a caminho da maior manifestação de professores que houve em Portugal. Enquanto passavam por mim intermináveis autocarros cheios de perfeitas carradas de professores comungando da euforia que só o desalento colectivo pode dar, avancei algumas páginas desde a altura em que João Manuel Gouveia dos Santos Basílio chega do Ultramar com suspeitas de traição conjugal e muito tempo livre para gastar em leituras que se espalham por uma geografia pessoal lisboeta e algumas espreitadelas detetivescas (vamos lá pôr o acordo ortográfico a trabalhar) à rotina da sua mulher. No meio de uma convulsão satélite do Maio de 68 (na verdade, em Março de 1968), entra  em ação uma enigmática Sanseverina socialista, que lhe crava cem paus e, a páginas tantas, uma perua jeitosa amante de Bach e de lusos Adónis que sacrificam a coragem, que não o chega a ser, em nome de uma ideia, cada vez mais estranha e barroca a que se chama Pátria. A Pátria. É esse o tema fundamental deste livro. A Pátria nada mais é que as paredes, ora almofadadas a cetim, ora escorrendo salitre e podridão onde João Manuel Gouveia dos Santos Basílio se move, alterado, drogado, sublimado, enredado, como todos nós, numa matriz de fatos e ficções. O assassinato de Salazar lá aparece, mais para o fim, depois de Joel Costa nos fazer cirandar por estranhos castelos no interior do Alentejo e por entre as confusas memórias de um doloroso erotismo com pinceladas negras de um pouco de Joseph Conrad e um (mais sóbrio, ainda que menos convicto) não-sei-quê do Dan Brown e muito dos mestres do policial. Não sei se é um retrato de um qualquer Portugal que desconheço. Se é, é verdade que o desconheço. Mas os livros também servem para encontrarmos aquilo que ignoramos.

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publicado por Manuel Anastácio às 07:00
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Sexta-feira, 29 de Agosto de 2008
Joel Costa: Questões de Moral

Orson Welles, em "O Requeijão", de Pier Paolo Pasolini. Pelas afinidades óbvias, ou não, com o Joel Costa.

 

Há uns bons oito anos atrás, dormia eu junto à torre da igreja do Alandroal, onde era presenteado, toda a noite e de quarto em quarto de hora com as badaladas de um sino muito devoto à Virgem. E, de manhã, quando o cansaço de uma noite de vigília forçada já conseguiria fazer frente aos carrilhões de Mafra, tinha de aceitar a minha sina de assalariado com horário a cumprir. E lá me deslocava do cubículo traseiro do número um da Rua do Rodo para a exígua casa de banho onde ouvia, como sempre, na minha invariável monotonia, a Antena 2, na altura com um programa da manhã chamado "O Despertar dos Músicos" onde, entre algumas árias de ópera e alguns andamentos de concertos para piano, violino ou oboé, me chegava a voz de Joel Costa num pequeno apontamento matinal. Sempre fui de tomar o pequeno almoço em casa e não sou bebedor de café, mas o momento em que Joel Costa começava a falar, como quem ainda está com o humor negro da noite a fazer remelas com a insuportável luz da manhã, transfigurava por completo os minutos que faltavam até subir a estradita que dava à impressionante escadaria da Escola Dom Diogo Lopes de Sequeira. O cubículo, que fora o único sítio que conseguira alugar para aquele ano lectivo numa terra que lembrava o deserto, tornava-se, de súbito, num café de mesas limpas, chocalhar de chávenas e cheiro a pastéis e a pingos directos (esta dos pingos directos ainda não se dizia assim, em terras tão meridionais, mas agora soa-me bem).

 

Joel Costa é um escritor e leitor de primeira água - quero eu dizer: de primeira bica. Com cafeína suficiente para abrir os olhos a uma preguiça da Amazónia. Isto digo eu (como diria o Joel), que nunca li nenhum livro dele (mas que lerei, de certeza, não venha a tipa da foice romba mais lesta que o tempo que tenho para ler). "Balada para Sergio Varella Cid" e "O Assassino de Salazar" estão já na lista de livros que  terei de ler. Por que? Por causa da força torrencial do seu discurso, simples, directo, coloquial, variando, segundo a real gana do autor, do bom ao mau humor. Torrencial como a água revolta que arrasta consigo os pedregulhos do alto para o raso chão aluvial do quotidiano. E digo isto sem o ter lido. Assim é, por causa dos programas que sigo religiosamente, na minha monótona e monolítica sintonia radiofónica na Antena 2. Joel Costa é autor de um programa chamado "Questões de Moral". E acabo de ouvir um certo Elogio ao gordo (ouvir aqui ou aqui, se entretanto os links não não passarem de validade) que me deixou, primeiro, com vontade de o plagiar, depois, com vontade de o citar (mas como, se a torrente é toda ela una e se ao pegar num pedregulho do alto, logo pede o Caos de blocos para cair todo por ali abaixo?). Entretanto, descubro esta biografia, não assinada, mas onde o estilo do Joel (ele que me perdoe o tutear) se derrama com toda a sua força revolucionária disfarçada de reacção:


Joel Costa, personagem atípica e polidisciplinar, nasceu em Lisboa e não tem a mínima formação universitária.


Foi exercendo na vida e nas circunstâncias intersticiais do tempo, o inteiro e o parcial, diversas e quase disparatadas actividades: paquete, bancário, empregado de escritório, contraguerrilheiro forçado, contabilista incompetente, dactilógrafo temporário, auxiliar de cartografias, cantor lírico, sindicalista, actor de cinema, novelista de gaveta, dramaturgo de cesto de papéis, conferencista de pequeno (e por vezes mau) porte, assessor político, classificador de espectáculos e ghost writer – embora, como grande admirador de romancistas americanos, também gostasse de ter sido marinheiro, publicitário, porteiro da noite, alcoólico, piloto aviador na II Guerra, estucador, jornalista e pastor evangélico.
Em 1994, por um acaso, inicia a inesperada actividade de autor radiofónico. Colabora com a RDP-Antena 2 e é autor de trabalhos que têm merecido o reconhecimento do público e da crítica: Questões de Família e Questões de Moral - actualmente no ar –, além de outras colaborações avulsas. Em 2003, o grupo de teatro Intervalo levou à cena a sua comédia Isto é a Gente a Falar.

 

Quem quiser continuar a sorrir disparatadamente com toda a seriedade destas crónicas de pura excelência literária, ainda por cima com o excelso suporte de escolhas musicais da mais pura melomania, é só aceder aos podcasts dispensados pela RTP. É. A RTP também faz coisas boas...

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publicado por Manuel Anastácio às 15:15
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Terça-feira, 1 de Abril de 2008
O Véu Diáfano

"zeroPoints"
, de Peter Eötvös
. Orquestra de São Paulo dirigida por Pedro Amaral.

“Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia” –  estas as palavras inscritas por Eça, em jeito de epígrafe, no frontispício do romance “A Relíquia”. Pedro Amaral, um dos compositores portugueses contemporâneos que melhor consegue criar poesia com a inquietantemente incómoda atmosfera das novas sonoridades, decidiu pegar no mote, adaptando a frase à filosofia hindu. Esta, de facto, numa sobreposição geometricamente diáfana, quase faz coincidir os conceitos ao descrever a realidade como um substrato onde se estende o véu de Maya, que nada mais é que a fantasia. Pedro Amaral, que já produziu vários programas para a Antena 2, começou, no início do mês passado, uma série de programas “para uma história temática da música europeia”. Esta epígrafe ao título do programa, “O Véu Diáfano”, resume a intenção tácita do seu autor: não fazer uma história temática da música, mas contribuir de algum modo para que esta se faça. Quando o autor deste blogue decidiu, sem escrúpulos, baptizar estas raras elocubrações de “Da Condição Humana”, estava, mais que a roubar um título que jamais poderá ser seu, a exprimir a impossibilidade inscrita sobre o pórtico do inferno, segundo Dante: a esperança é negada a quem o transpõe. Assim é para quem se atreve a desvelar o véu de Maya – a tarefa é impossível. Os cientistas bem que tentam cingir-se aos factos, mas quem conhece a história da Ciência bem sabe como as intuições segredadas pela fantasia cobrem e recobrem todo o edifício da objectividade. Mas, se sabemos que conhecer um único objecto é sumamente impossível (que dizer então da condição humana... ou mesmo de algo mais comezinho como uma história temática da música europeia…) em termos puramente objectivos, podemos conjecturar, ou convencionar, que esse conhecimento, em teoria, não seria mais que a soma de todos os pontos de vista, possíveis ou imaginários. Só conheceríamos uma coisa, verdadeiramente, realmente, objectivamente, enquanto coisa que é, se a víssemos de todos os ângulos, à luz de todos os conceitos e preconceitos, mas também quando essa coisa aparece parcial ou totalmente obscurecida pela nossa ignorância. Até na opacidade está subentendida a translucidez da fantasia. Uma criança que brinca com um objecto e não o procura assim que este é tapado porque a sua percepção lhe passa a recusar a possibilidade de existência, tem uma forma de conhecimento puramente pragmático sobre esse objecto, sabe que ele pode ser abanado e levado à boca, mas não teoriza sobre a sua existência quando deixa de ser percepcionado. Será, decerto, abuso meu dizer que passamos a teorizar sobre a existência dos objectos que não vemos quando, com alguns meses de vida, já sabemos que podemos procurar (e eventualmente encontrar) o objecto que há pouco tocávamos e que os nossos pais, com artes mágicas, fizeram desaparecer cobrindo-o com uma camada opaca de realidade. Abuso ou não, é a partir desse momento que começamos a crer em alguma coisa. Passamos a crer que a nossa demanda em busca de algo pode ter um fim concreto que nos satisfaça. Passamos, na minha visão parcial das coisas, a ingressar na condição humana.

 

“O Véu Diáfano”, de Pedro Amaral é um dos programas radiofónicos mais fascinantes que alguma vez tive a oportunidade de ouvir. Graças aos podcasts disponibilizados pela RTP, os meus leitores poderão aferir, devidamente cingidos pela sua fracção de véu de Maya, quanto ao meu julgamento. Os programas deste mês são “apenas” um prólogo onde são propostas caminhadas por entre a paisagem da arte e, em particular, por entre alguns recantos da literatura, do cinema e da arquitectura. Pedro Amaral, senhor da arte de transfigurar o véu que treme à passagem dos sons que compõe, não pretende desvelar os segredos da arte – seria isso roubar à arte a dignidade que reside na sua pátina dourada, leve superfície de ilusão que modifica em profundidade o objecto observado, transformando-o em objecto artístico, ao dotá-lo de níveis sucessivos que requerem modalidades diversas de contemplação e que agem em quem observa de diferente modo, consoante o nível, camada ou véu que o nosso olhar foca, de modo semelhante ao procedimento de quem manuseia um microscópio óptico. Daqui vem, com certeza, a expressão vulgar que classifica como “profunda” qualquer actividade discursiva (e, por extensão, artística). Profunda porque consegue atingir a verdade que reside abaixo da superfície da aparência? Sim, e paradoxalmente, não. Porque nada há que mais viva da aparência e da superfície que a Arte. A Arte apenas procura a perfeição das coisas ao convocar essa perfeição para o palco dos nossos sentidos, mas o objecto artístico é, em si mesmo, tão terreno e vulgar quanto uma pedra do caminho ou um excremento. É a ordem que é colocada nesse objecto, tendo em mente a sua percepção por quem vai usufruir da obra de arte que o transfigura. Os pigmentos usados na elaboração de um quadro continuarão a ser restos moídos de insectos e outros materiais que de outro modo nos causariam repugnância, mas ao serem utilizados segundo uma determinada intenção e procurando um determinado efeito, esses materiais, continuando a ser o que são, impregnam-se de significados múltiplos que tendem à infinidade consoante os níveis apercebidos pelas diversas subjectividades que os irão ler e sentir. Pedro Amaral aceita aqui, de forma digna, posicionar o seu discurso num ponto de vista subjectivo que vai despontando com referências pessoais, quase íntimas, que adoçam o rigor discursivo, um pouco ao estilo de Umberto Eco, abrindo a obra de Arte a véus que iluminam mais que obscurecem a eternidade do imperativo de dizer aquilo que as palavras não conseguem exprimir.

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publicado por Manuel Anastácio às 23:38
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