Sexta-feira, 13 de Fevereiro de 2009
Conformes à sua espécie

A elipse de "2001: Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick

Escrevia, ontem, um aluno meu, num teste, que a "famia e o macho [da ave-do-paraíso] têm dimorfismo sequessual." Não está mal do ponto de vista científico. Está pior do ponto de vista do desacordo ortográfico. Mas só me lembrei disto por causa de, hoje, só se falar de Darwin, enquanto por estas bandas se discute a bondade e a beleza da criação. Claro que Darwin nunca negou a intervenção divina na evolução das espécies. E qualquer pessoa religiosa com meio palmo de testa sabe que a evolução é um ponto assente. Muito se terá ainda a descobrir quanto aos mecanismos pela qual funciona, mas o essencial é claro como a água. As aves, os insetos, os moluscos e todos os animais que rastejam não foram criados conformes à sua espécie. O conceito de espécie é, aliás, espinhoso. Quando os meus alunos me fazem a clássica pergunta do "Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha", eu respondo, como professor de Ciências Naturais consciente da enormidade do criacionismo que, se ele quiser acreditar em certas correntes ideológicas não científicas (e perigosas), o que nasceu primeiro foi a galinha. Deus não ia criar um ovo sem que houvesse outra galinha a chocá-lo, e a ideia de usar uma chocadeira parece-me blasfema. Mas, de acordo com a Teoria da Evolução, é ponto assente que nasceu primeiro o ovo. E quem pôs o ovo? Um animal parecido com uma galinha, e que, eventualmente, até poderia ser confundido actualmente com uma galinha. Mas que não era uma galinha. Ou era uma galinha (porque provavelmente se poderia reproduzir com outra galinha - ou melhor, com um galo) mas com algumas características que não coincidiriam com a definição pormenorizada que hoje podemos ter de uma galinha, incluindo o retrato-tipo da sua informação genética. Claro que quando estou a tentar explicar esta última parte, já o aluno deve estar a pensar que eu não devo bater bem da bola. Por isso, deixo o aluno pensar, contente, num dinossauro a pôr um ovo de onde sai uma galinha. É uma elipse, algo semelhante à do 2001 Odisseia no Espaço, mas perfeitamente aceitável para um aluno que ainda nem sequer sabe o que é o núcleo de uma célula.

 

Ora, que nasceu primeiro: o ovo ou a ave-do-paraíso, a tal que tem um dimorfismo sequessual muito pronunciado? A resposta poderia ser semelhante à da galinha, mas eu prefiro perguntar quem é que apareceu primeiro: o macho da ave-do-paraíso, bicho vistoso e saltitão (e que provocou largas gargalhadas numa aula)(...)

Parada nupcial da ave-do-paraíso (BBC Channel Planet Earth).

 

(...) ou a mais discreta fêmea? Confesso que não sei a resposta. O macho é aquele que produz células que se movem; a fêmea é aquela que guarda as células que esperam pelas células que se movem. Depreendo que tudo tenha começado com células a fazerem troquinhas de material genético. Mas quando é que uma rebanhada de células começou a perseguir  uma outra, específica, tornada objecto de competição, é coisa para a qual não tenho os conhecimentos científicos necessários para levantar uma hipótese-para-aluno-ouvir minimamente digerível.

 

Quanto ao dimorfismo sequessual da ave-do-paraíso, lembrei-me dele por causa da maçã de Adão, objecto mitologico-alegórico transformado em caracter sexual secundário (as tais diferençazinhas entre macho e fêmea sem contar com as ditas cujas) da espécie humana. Maçã que não poderia ser o fruto proibido, se o fruto fosse, de facto, um fruto na acepção botânica actual. A maçã é um pseudo-fruto, ou pelo menos é assim designada a sua parte comestível (o fruto será o coração onde se encerram as sementes: aquele que, cortado transversalmente, dá a ver uma estrela nunca antes vista) já que não provém de nenhum tecido do ovário da planta. Ou seja, escolheu-se para fruto da tentação uma coisa que apenas aparenta ser o que é, mas não é. Um frutóide, diria o meu aluno. E eu aprovaria a criatividade vocabular.

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publicado por Manuel Anastácio às 01:21
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Quinta-feira, 12 de Fevereiro de 2009
Retalhos da vida de um professor de Ciências I

Ranúnculo-dos-prados e mosca Thricops semicinereus. Clicar na fotografia para os devidos créditos.

 

- Como são as asas dos insectos?

- Mebra... membrosas e com veias de quitina!

- Queres dizer "membranosas e com veios de quitina"?

- Sim, deve ser isso.

- Então, repete devagar... membranosas...

- Membrosas.

- Não, membranosas... vem de membrana... sabes o que é uma membrana?

- Não.

- É uma coisa assim tipo pele, mas que não é pele...

- Então devia-se chamar pelóide.

- Porquê?

- Então, os rizóides chamam-se rizóides porque são tipo raízes, mas não são raízes... Foi o que o professor disse: que os óides no fim das palavras eram para coisas que eram parecidas mas não eram... como nos espermatozóides...

 

E o espanto toma conta de mim.

 

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publicado por Manuel Anastácio às 02:52
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