Quarta-feira, 28 de Janeiro de 2015
Educação do meu imbigo

Do ponto de vista da direita, os melhores professores estão na escola pública. São mais bem pagos (pelo menos se não tiverem tido as carreiras congeladas desde o tempo do Sócrates) e, por enquanto, são um pouco mais bem tratados que os dos privados que, se o patrão quiser, vão limpar sanitas. Nada contra limpar sanitas. Mas parece-me que não seja tarefa com mais valia pedagógica. 

Do ponto de vista da direita (PS, PSD e PP, caso não saibam distinguir), os melhores vão para onde o seu excelente desempenho é valorizado. Assim provo o que acima é sustentado.

Porém, para a direita, com os seus rankings e sistemas de avaliação de professores e de valorização do desempenho de escolas, as melhores escolas são do privado.

Partindo agora do princípio que boas escolas têm bons professores... está a falhar-me o silogismo...

...será preciso contratar os professores que escrevem com erros de ortografia.

Porra, o que é que está a falhar no meu raciocínio?

publicado por Manuel Anastácio às 22:26
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Sábado, 15 de Novembro de 2008
Professores V

Cena de "Voando sobre um ninho de cucos"

 

1. Antes de mais, peço desculpa à Gláucia. O meu comentário ao seu belíssimo livro "Bichos de Conchas" será em breve tratado por mim. Agora não estaria em condições de escrever algo que seja minimamente digno da obra.

 

2. Já aqui comecei uma série de textos sobre os professores que me marcaram. Hoje, decidi inserir na série alguns comentários sobre um professor, que sou eu, e sobre todos os professores que agora, em Portugal, são quase unanimemente enxovalhados. E incluo no enxovalho algumas "instrumentalizações" por parte de alguns partidos políticos que só estão contra esta Ministra e um ainda pior Primeiro Ministro por razões eleitoralistas. E note-se que o Sócrates, ao dizer que não verga porque não se dirige por motivos eleitoralistas está, de facto, a fazê-lo. Ele sabe bem (e António Costa ou não sabe ou é lerdo de todo ou está a dizer que o que está perdido, perdido está, e para isso não são necessários comentadores políticos) que vergar no assunto far-lhe-ia perder mais votos que mostrar alguma flexibilidade. E, por incrível que pareça, isto tem, intrinsecamente, muito a ver com a avaliação dos professores. Até porque Sócrates, como qualquer político hábil (e Sócrates é um político hábil - caso contrário, como é que alguém sensaborão como ele continua a ser considerado pela maioria dos portugueses como "o melhor que poderíamos ter"?) sabe que mais vale perder 140 mil votos de professores que 4 milhões de votos (mais coisa menos coisa) de todos aqueles que o elogiam. Um professor também é avaliado pelos alunos e pelos pais. E o que se aplica ao povo que vota também se aplica a estes, no contexto da escola.

 

3. Ontem cheguei a casa completamente desanimado e a caminho da depressão. Não por causa da Avaliação de Desempenho e afins (f***** sei eu que estou, dando por onde der, por isso, já estou resignado). Não porque me considere mau professor ou "joio" que vá ser espadeirado por este ou outro modelo de avaliação. A minha profissão será sempre 95% de desilusão e frustração e apenas 5% de realização pessoal. Mas, simplesmente, porque uma aula me correu mal. Muito mal. Pessimamente. Se o meu avaliador assistisse a esta aula, será que teria o discernimento necessário para compreender que até os "Excelentes" podem ter aulas como esta? Provavelmente teria, mas, com as quotas a apertar, eu seria relegado imediatamente para os "Bons" (porque "regular", meus amigos, é coisa que não sou).

 

4. O Alberto João Jardim decidiu classificar todos os professores como "Bons" e foi um Deus-me-acuda entre os defensores da Ministra... Estranho. Esses defensores da Sinistra saberão que a nota de "Bom" não é sujeita a quota???? Nada impede os avaliadores de darem "Bom" a todos os professores da escola, dando os poucos "Muito Bons" e "Excelentes" àqueles que aparentam estar na excelência. A medida do Alberto João é, em termos absolutos, lesiva para os professores da Madeira, já que todos são nivelados por baixo. Mas não sei de notícia de professores excelentes que tenham reclamado. Por uma razão (isto sou eu a pensar): por solidariedade para com os colegas que podem não ser excelentes como eles, mas que, provavelmente, são melhores professores que eles. E se há coisa que vejo entre todos os meus colegas é esta solidariedade e esta compreensão ecológica do ecossistema educativo.

 

5. Enviaram-me, há dias, um mail daqueles meio melosos com sabor à Paulo Coelho, mas que me serviu de motivo de reflexão. Conta a história de uma velha chinesa que ia à fonte buscar água com um cântaro intacto equilibrado numa haste com outro cântaro rachado. O cântaro intacto chega a casa sempre cheio. O cântaro rachado, sempre meio, ou menos. O cântaro rachado lamenta-se. A velha acalma-o e diz: "Reparaste que lindas flores há no teu lado do caminho, somente no teu lado do caminho ? Eu sempre soube do teu defeito e portanto plantei sementes de flores na beira da estrada do teu lado. E todos os dias,
enquanto voltávamos do rio, tu regava-las. Foi assim que durante dois anos pude apanhar belas flores para enfeitar a mesa e alegrar o meu jantar. Se tu não fosses como és, eu
não teria tido aquelas maravilhas na minha casa!". Sorri, e pensei no que a Ministra, lacaios socialistóides e outros bem pensantes poderiam aprender com esta velha. Mas não aprenderão. Estamos numa era onde as metáforas à Paulo Coelho só servem para vender Best-sellers, não para se aplicar à realidade, que é dura e não se compadece de vasos rachados por causa de insignificâncias como flores. Vou dizer algo muito à direita; algo que o próprio Paulo Portas ou o tipo do PNR-ou-raio-que-o-parta poderia perfeitamente dizer: vivemos num país onde delinquentes e parasitas são gratificados com o Rendimento Mínimo Garantido, mas onde trabalhadores sérios, apenas por meia rachadura, poderão ver a sua vida destruída. Eu sei. É feio o que eu disse. Podem riscar, se quiserem. Eu podia fazer delete. Mas não faço.

 

6. Tive muitos professores que, sob um modelo de avaliação como o que vamos ter (a "simplificação" prometida pelo Sócrates não augura nada de bom) seriam considerados vasos rachados. Graças a eles, contudo, tenho muitas flores que, por vezes, só anos mais tarde vi a florescer. Professores que, quase de certeza, não faziam planificações de aulas formalmente e por escrito. Professores que davam imensas negativas. Professores que eram ou demasiado exigentes ou demasiado permissivos. Professores que não cumpririam metade dos níveis de excelência burocráticos e estatísticos definidos nas fichas de avaliação deste modelo. Professores que serão, para mim, os melhores professores que tive. Enquanto que tive professores muito organizadinhos, e que facilmente seriam classificados como excelentes por este método de avaliação e que eu tenho como sendo, não os piores professores que já tive, mas, simplesmente, as pessoas mais asquerosas que alguma vez me passaram à frente. Exemplos concretos (com nomes e tudo, seja o que Deus quiser) à frente.

 

7. Um dos meus mais queridos professores de sempre, farmacêutico na minha terra natal, o professor Baptista Rei, sempre foi o contrário de quase tudo o que é considerado excelente nas malfadadas grelhas de avaliação (ver ponto algures mais adiante). Um dia, estando eu a dar aulas nessa mesma escola, encontrei uma mesa vandalizada que me fez vir lágrimas aos olhos. No tampo liso estavam gravadas as iniciais M R e B R. M de Manuel, R de Rui e BR de Baptista Rei. Feitas com pólvora. Por mim, pelo meu querido colega Rui Navalho e pelo professor, depois de termos misturado salitre, flor de enxofre e carvão, com a paciência de alquimistas. Não sei o que pensaria a Ministra e os seus lacaios de tais experiências para-educativas não ortodoxas. Aquele pequeno vandalismo controlado foi uma das experiências que mais contribuiu para a minha felicidade como pessoa (e eu creio que a escola serve para nos tornar mais felizes, a nós, alunos). Provavelmente, não compreenderão. Provavelmente, chamarão ao incidente irresponsabilidade. Por mim, se fosse eu, hoje, a avaliar este meu professor, dar-lhe-ia a nota "Excelente". E as grelhas de avaliação que fossem dar uma volta ao bilhar grande.

 

8. Uma das professoras mais repugnantes que tive, de nome Filomena Baião (espero que ela um dia digite o seu nome no Google e encontre o recado), era exactamente o oposto. Metódica. Organizada. E permitiu, impávida, que eu fosse humilhado por um queridinho dela, de forma gratuita. Estarei a ser parcial na minha avaliação desta pessoa? Provavelmente estou. Um avaliador burocrata dar-lhe-ia excelente. Eu dar-lhe-ia um insuficiente. Por falta de compaixão.

 

9. Uma (excelente) professora minha, de nome Helena Bicho, ensinou-me, a mim e aos grunhos da minha terra, a reverenciar o nome dos grandes pensadores da História da Humanidade. Um aluno tinha escrito num teste: "O Platão dizia que..." e ela explicou que não era o Platão nem o Sócrates. Era Platão e Sócrates, sem artigo definido antes...

 

10. ... mas o Sócrates disse que, perante as queixas respeitantes aos aspectos burocráticos da avaliação, verificou a ficha de definição de objectivos individuais de algumas escolas e considerou que não eram nada de muito difícil de preencher. E assim passou um atestado de burrice aos professores portugueses em geral. Acontece que a Burocracia não está no preenchimento dessa ficha, mas nas algemas a que nos acorrentamos ao preenchê-la. E está nas grelhas de avaliação com que vamos ser avaliados. Talvez a Ministra não lhe tenha feito chegar às mãos as ditas. Ou talvez sim. Não sei.

 

11. Ontem cheguei a casa desanimado. Já o disse. Uma aula minha correu pessimamente, apesar de duas terem corrido de forma impecável e duas delas terem decorrido satisfatoriamente. Tudo porque um aluno não tomou a medicação. Medicação que não tomou porque a mãe ou não lha pôs na mochila (como ele costuma alegar - mas ele alega muita coisa) ou não lhe apeteceu ou, simplesmente, tomou-a e decidiu fingir que a não tomou.

 

12. Um dos filmes que me marcou, e que marcou a muita gente, foi o "Voando sobre um ninho de cucos". A moral é conhecida: seria um atentado à condição humana modificar comportamentos utilizando meios químicos. Seja. O certo é que se aquele aluno não tomar a medicação, começa a disparatar e a desobedecer da forma mais exuberante e alienadamente criativa que se possa imaginar. E ontem disse-me: "É o pior professor que eu tenho" e, ignorando qualquer esforço meu para que houvesse ordem, escreveu no quadro "O Setor Bouca emerda".

 

13. Hoje de manhã, sábado, fui com alunos a uma caminhada. Terminámos no parque da cidade. Falei com encarregados de educação que nos acompanharam. Jogámos ao mata. Os professores ganharam. Fizémos um piquenique. O sol de Outono passava entre as já meio despidas folhas das árvores junto ao ribeiro. Uma aluna, que toma a mesma medicação que o aluno atrás mencionado, conversou amenamente comigo. Foi bom. Senti-me um bom professor.

 

14. Estava no meu primeiro ano de professor. Em Mértola. "Não lhes mostres os dentes e nunca perdoes", diziam-me. E eu, crente na bondade das crianças, mostrei-os. Tive a devida paga com a indisciplina que cai sobre os ombros de quem se atreve a acreditar nos bons sentimentos dos outros. Um dia, depois de corrigir vinte e tal testes de Matemática com notas na sua maioria miseráveis, cheguei à sala e comecei a distribuí-los. Instala-se o burburinho típico do "quanto é que tiveste" e do "deixa ver o que é que respondeste a esta". Um aluno (do ensino especial) recebe o teste das minhas mãos, vê a nota e senta-se no chão a chorar. Tento falar com ele e dizer que o importante não é a nota do teste, mas o esforço e o empenho que ele me venha a demonstrar. Mas ele não é capaz de dizer palavra entre os soluços. Uma colega, que se pusera ao seu lado para o confortar, diz-me: "não é isso, professor, é a primeira vez que ele tem um Excelente".

 

15. Não sei que avaliação vem aí depois das operações de cosmética simplificativa deste governo. Não sei. Eu avalio-me todos os dias. Sofro quase todos os dias com a minha própria avaliação. Sofro também com a avaliação dos outros. Mas para mim, Manuel Anastácio, o Setor Bouca não emerda. Nem que o meu avaliador tome a medicação direitinha todos os dias.

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Quinta-feira, 7 de Dezembro de 2006
Professores III


Lupinus luteus - Otto Wilhelm Thomé, in Flora von Deutschland, Österreich und der Schweiz - 1885

Na minha quarta classe, mudei para a escola "velha". O edifício caracterizava-se por um traço arquitectónico próprio do Estado Novo. A Senhora Professora, Josefina de seu nome, vinda do Sardoal, era dona de métodos antigos, mas eficazes. Na primeira aula, mostrou a régua descomunal, de madeira, antes de a fechar na gaveta da secretária. Claro que desconhecia as mais elementares leis da Física. Deveria saber que, quanto maior a régua, menos dói a reguada porque a mesma pressão é distribuída por uma área maior. Mas a força da imagem foi suficientemente localizada na retina para que, até ao final do ano não tugíssemos nem mugíssemos. Foi um ano de pura tranquilidade. A régua não saiu da gaveta, apesar de a senhora, já com uma certa idade, nos permitir circular pela sala quando entendêssemos, desde que fosse para aprender alguma coisa. Um jogo muito básico que os alunos acabaram por inventar consistia em especarmo-nos em frente a um mapa de Portugal - daqueles velhinhos, enrugados e com os caminhos de ferro a destacado. Um dizia uma terra, ao acaso, e os outros procuravam entre as letras minúsculas. Assim, quem sabe, li, provavelmente, pela primeira vez o nome de Mértola, do Gavião, de Joane, Aveiras de Cima, Alandroal, Monsaraz e outros locais que viriam a inscrever-se na rota da minha vida, de forma tão aleatória quanto a que usávamos para escolher localidades do Norte ou do Sul. Claro que a professora era muito nacionalista - não daquelas nacionalistas xenófobas, entenda-se, era mais uma nacionalista orgulhosa do passado que não tivémos,  ainda que não faça mal pensar que sim: graças a ela tive acesso à História de Portugal tal como era transmitida naqueless tempos gloriosos em que a História eram histórias . Enfim, mais mitologia que história. Mas diga-se, em abono da verdade, que era esta a história que gostávamos de ouvir. Era esta a história que levávamos ainda para os recreios, fingindo guerras e reconquistas, julgando cada um ser um D. Afonso Henriques gigantesco e com uma espada tão pesada que só ele conseguia levantar. Tretas. Mas belas tretas. Hoje, é só subir uma ladeira, a partir de minha casa, e depararo com a famosa estátua do nosso primeiro rei, concebida pelo Soares dos Reis e coberta de verdete e com a Igreja de São Miguel do Castelo ao fundo, onde, conta a lenda, teria sido baptizado. Fenomenal acontecimento esse, de se ser baptizado numa igreja que ainda não existia, pois remonta apenas ao século XIII. Ao lado da estátua, outro logro nacionalista: o Paço dos Duques, com as suas altaneiras chaminés e salões reinventados pelo arquitecto Rogério Azevedo, em 1937, ao gosto monumental do Presidente do Conselho, António Oliveira Salazar (que aí estabeleceu residência oficial, nas suas poucas viajens para estas bandas), e de acordo com o que teriam sido, talvez, muito talvez, os gostos dos dois primeiros Duques de Bragança. Mas, naquele ano, ainda acreditava que podia dizer (e pensar) que os portugueses  eram uma raça de heróis e que as pedras venerandas o atestavam. Hoje sei que somos da mesma massa que os outros.

Foi o ano em que o recreio da escola dava para um campo amarelo de lupino incandescente. O ano em que íamos apanhar girinos quando a professora faltava, chegando mais tarde a casa do que se tivesse havido aula. O ano em que, como Moisés no deserto, furei um muro com a ponta do guarda-chuva e começou a jorrar uma fonte de água que durou durante o ano todo (creio que, mais tarde, o dono entubou-a na direcção de um tanque). Foi um belo ano. Que durou mais que um dos anos de agora, nas contas de uma clepsidra infantil.

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publicado por Manuel Anastácio às 19:31
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Sábado, 2 de Dezembro de 2006
Professores II


Erica tetralix
e Erica cinerea (urze), por Johann Georg Sturm e Jacob Sturm - Deutschlands Flora in Abbildungen (1796)


A minha terceira classe tinha, ainda, como porteira, a acácia debruçada sobre a entrada. Numa altura em que não existiam professores, mas só professoras, foi novidade espectacular na terra a vinda de um professor. Causava espanto, mormente, o facto de ter menos de trinta anos. Ao que parece, a sua vocação virava-se mesmo para o ensino especial, mas foi com um carinho e dedicação invulgar que foi professor naquela aldeola onde a fama da criançada não era das melhores. Ainda hoje se transmite a ideia de que na minha terra as crianças são, digamos, assim como que diferentes. A freguesia de Carvalhal é o beco sem saída do Concelho de Abrantes. Claro que Souto e Fontes serão ainda mais - mas como esbarram com o rio Zêzere, têm outro aspecto - principalmente devido às casas de luxo de políticos e grandes empresários que passam pelas estraditas de Carvalhal apenas para transportar as suas lanchas poluidoras a caminho dos muitos recantos da Barragem de Castelo de Bode - de onde se escoa a água para a capital. Carvalhal tem a mesma fama que as aldeolas de Trás-os-Montes: os professores são advertidos de que as crianças vão bêbedas para as aulas e que não há gente mais piolhosa em todas as redondezas. Posso testemunhar, contudo, que se isso é verdade para Carvalhal, também o é para todas as redondezas, incluindo os hipocentros da infâmia (designadamente Sardoal e acólitos). Não sei se tinha colegas bêbedos. Com piolhos tinha, com certeza. Mas, como dizia o farmacêutico da minha terra, o professor Baptista Reis (que merecerá um artigo daqui a uns dias), em Carvalhal, tudo acontece depressa. As pessoas crescem depressa, casam-se depressa, têm filhos depressa. Constroem depressa, destroem depressa. Morrem depressa. Eu, depressa fugi de lá. Mas creio que nunca lá vivi. O meu Carvalhal, da minha infância, era aquele se estendia para lá das "fazendas", na altura repletas de frutos tentadores e de vales encantados com castanheiros, sobreiros, medronheiros e um vale sombrio e estéril onde apenas vingava um cancro amarelo de acácias, estas sim, porteiras apenas da desolação. Era a altura em que levava as ovelhas dos meus pais a pastar enquanto tentava decifrar livros que ainda não eram nem para a minha idade nem para a minha real capacidade de leitura - mas dou graças por, desde sempre, andar às voltas com livros que não entendo; só assim os entenderei algum dia. Bucólico espectáculo de que só eu era testemunha. Os habitantes de Carvalhal só se apresentavam na pequena amostra de algum  "fazendeiro" que passasse naqueles caminhos estreitos que agora já não existem, cicatrizados com alcatrão. E enquanto algum carneiro brincalhão tentava mordiscar-me as páginas do livro e dava pinotes de contentamento quando eu me desequilibrava com as suas marradas, lá tentava eu entender coisas que agora me parecem tão simples. Os carneiros são animais muito estranhos - o meu pai teve um, que morreu há coisa de um ano (rebentou-se-lhe as tripas, dizem) e que vinha ter com ele, à estrada, como um cão. Comigo, eram especialmente brincalhões e avessos à minha sede de leitura. Não foram poucas as vezes em que, perante o meu desatino, os tenha visto a rirem-se literalmente na minha cara: abriam os beiços como macacos e mostravam os dentes em ar de troça! Já contei isto muitas vezes e ninguém acredita... Há quem julgue que o riso é privilégio do ser humano. Não é, tal como o choro.

Se a minha sala de estar e escritório era todo o vale a Norte de Carvalhal, com o meu professor da terceira classe, tive o privilégio de estender a sala de aulas para os montes a sul. Nos dias claros, quando a urze e o tojo salpicavam as sombras dos pinhais com manchas de roxo e amarelo, seguíamos em fila cantando canções tolas sobre sapatos velhos e sapatos novos, enquanto espreitávamos, com a curiosidade mórbida das crianças, os montes de lixo que por vezes ladeavam aqui e ali os caminhos. Chegados a um local limpo e com caruma suficiente para fazermos pequenos puffs avant la lettre, assentávamos e abríamos as sacolas de onde tirávamos os cadernos, e os exercícios que tínhamos passado do quadro antes de sair da sala. O professor podia, então, tirar dúvidas, individualmente, enquanto os mais irrequietos e desinteressados corriam entre as árvores até se cansarem e, finalmente, ofegantes, se renderem à obrigação das contas de multiplicar e dividir. Sem gritos, sem ameaças. Todas as salas de aula, com bom tempo, deviam ser assim - grandes como o mundo e com árvores como companheiras. O tempo de recreio misturava-se negligentemente com o tempo de trabalho e saltávamos da matemática para a língua portuguesa como insectos irrequietos, enquanto o professor aproveitava cada gafanhoto, cada teia de aranha ou cada planta para nos iniciar nos mais básicos mistérios da Natureza. Chego a duvidar da existência desses dias. Era numa altura em que o professor não tinha medo de sair com vinte e muitas crianças, de duas classes diferentes (na mesma sala, metade dos alunos terminava a quarta classe com o mesmo professor, no mesmo horário que nós), para um vale isolado. Hoje, temem-se poços, cobras, pedras, ladeiras e processos judiciais. O medo da acusação de negligência tem empurrado os professores para os tugúrios deprimentes das salas de aula. Ninguém sai - ninguém deve falar alto, e, à conta disso todos berram. Lá fora reina o medo e, paradoxalmente, traz-se o medo para dentro de quatro paredes onde todos se atropelam e têm vontade de explodir. Reprime-se a vontade de correr das crianças com processos disciplinares, enquanto estas, munidas até aos dentes com os seus "direitos" negligenciam a possibilidade de alguma vez amarem a escola que são obrigados a frequentar. A escola agoniza.

Este professor foi, talvez, o melhor professor que tive. Um professor que, hoje, esteja onde estiver, não poderá fazer o mesmo que fez com essas duas turmas de há vinte e tal anos atrás. Estará, como todos, preso a quatro paredes. A sua natural bondade já não será reconhecida pelos alunos, porque professor bondoso é professor trouxa. Só uma vez o vi a recorrer à violência física - e acreditem que foi violento!! Uma cana verde a trabalhar nas costas de dois alunos que furaram com um alfinete todos os pacotes do leite escolar não é coisa bonita de se ver. Mas ninguém reclamou. Até os alunos que devem ter ficado marcados nas costas não reclamaram. Sabiam que as vergastadas eram justas e que tinham, com o seu gesto ingrato, traído a confiança do único professor de que alguma vez viriam a gostar no seu percurso escolar. Com aquelas marcas nas costas dos alunos, hoje, o professor teria ido para a prisão. Os alunos não o defenderiam.

Foi, provavelmente, o melhor professor que tive. Não me lembro do nome dele.

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publicado por Manuel Anastácio às 14:20
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Sexta-feira, 24 de Novembro de 2006
Professores I

Pormenor de "As Tentações de Santo Antão" de Hieronymus Bosch (1450 – 1516) - Museu Nacional de Arte Antiga

Se o João Sebastião não mereceu, da minha parte, sequer um post (recebeu, isso sim, uma curta), dei comigo a pensar: está mal que ele tenha uma referência neste meu "diário" enquanto que os outros professores não têm direito, sequer, a uma leve menção. Ora comecemos pela primeira e segunda classe. A minha professora era a senhora Maria José, de Abrantes. Muito gorducha, era conhecida como "saco de batatas". Mas a alcunha maldosa era devida, essencialmente, ao facto de ser reputadamente muito severa. Apesar do 25 de Abril já ter passado há muito, ainda era frequente que os professores da primária da minha aldeia agissem com a ajuda de uma régua de madeira lascada. E ninguém reclamava. Ou melhor, reclamava, mas os professores faziam orelhas moucas e davam outra reguada. E mais nada. Ponto final... Pum. Uma vez, estava ela a passar do lado direito da minha fila (sem que eu o supusesse sequer, já que a sala estava num silêncio sepulcral, deviamente coroado, literalmente, com um crucifixo partido e abananado sobre o quadro preto de ardósia estalada no canto) quando deixei cair a minha preciosa colecção de lápis de cor da Viarco (ou lá o que era, que o dinheiro não dava para Caran d'Ache) e me debrucei para os apanhar. Claro que não sabia, enquanto os meus colegas continuavam a pintar ovinhos, com a língua meio de fora, com o cuidado de não passar do risco, que a professora estava atrás de mim. Debrucei-me para apanhar os lápis e, como na anedota do Taveira, fiquei de rabo para o ar. A professora não gostou do meu gesto indecoroso e puxou-me firmemente a orelha até ter ficado, de novo, sentado no lugar. Maleável e impiedosamente, em segundos, a sala manteve a sua dignidade de Estado Novo, ainda que os lápis se mantivessem pelo chão e as minhas bochechas redondas parecessem explodir de calor, humilhação e uma vontade de dizer que aquele puxão de orelhas era injusto!!! E era! Mas não fiquei traumatizado, descansem. Um puxão de orelhas não traumatiza ninguém, ao contrário do que sustenta a pedagogia oficial em voga. Noutra altura, no entanto, fiquei aliviado com o sentido de injustiça da professora Maria José. Alguém decidiu ficar demasiado tempo na casa de banho depois do recreio  (onde também se guardava, curiosamente, a bandeira nacional, ao lado do papel higiénico - honra seja feita a todos os que fizeram as suas necessidades em frente ao símbolo pátrio sem nunca lhes ter ocorrido qualquer ideia menos patriótica, como aconteceu a todos nós que ali compartilhávamos com as quinas imaculadas as nossas infantis diarreias). Ora, a fila para aquela pequena repartição privativa começou a aumentar e, não sei por que razão, estava tudo apertado. A professora Maria José irritou-se com a demora e mandou toda a gente sentar-se no seu lugar. Eu ficava na fila mais à direita, em frente ao quadro, na terceira fila de trás. Ao lado de uma grande janela onde, um dia, vinda de detrás da grande figueira que dava para o alpendre lateral, bateu uma andorinha que não sabia que existia um material chamado vidro, transparente. Foi ali que vi a primeira imagem do que fosse um campo de concentração. A professora começou no primeiro aluno da fila da esquerda, à frente e foi continuando a distribuir reguadas a todos os alunos. Nunca tinha recebido uma reguada. E aquele silêncio apenas cortado pelo estalar da madeira contra a pele só foi igualado num sonho em que me imaginava num autocarro, com todos os lugares ocupados, que era lentamente devorado por um mecanismo que ia esmagando lugares após lugares sem que os seus ocupantes reclamassem ou tentassem fugir, enquanto que eu esperava, no banco de trás. Lembro-me, no sonho, de uma mulher com uma criança ao colo e que, perante a morte iminente, apenas dizia "ai... ai...". A professora Maria José, depois de duas filas  longitudinais de alunos apavorados ou com as mãos já a arder, cansou-se. Olhou para a terceira fila, onde estava eu, e disse: "amanhã continuo". Não continuou. E foi assim que nunca levei uma reguada.

Pouco mais me lembro da professora Maria José. Mas, curiosamente, não a detesto. Aprendi a ler em dois anos de uma forma eficiente e limpinha. Isso valeu o clima de terror? Para os meus colegas, não sei, não posso falar por eles. Eu, por mim, não me queixo, nem me arrepio quando passo junto ao edifício quadrado e caiado, hoje ocupado por um jardim de infância. Só fico triste quando vejo que a velha acácia, junto à porta, já não existe. Foi cortada porque empatava o trânsito, dizem. Tretas. Sei que as acácias são invasivas e más para as outras plantinhas mas... aquela acácia era boazinha. Não havia o direito. Durante muito tempo era o único sorriso que tinha à entrada da escola. E, por acaso, até era um sorriso amarelo. Maravilhosamente amarelo e com um cheiro que me fez sorrir quando li, em Proust, o episódio de Odette de Crécy na Avenida das Acácias. Por alguma razão se pode aguentar o peso excessivo da escrita de Proust - de facto, creio que gostamos mais de Proust depois de o ter lido, mas depois de gostarmos, ai de quem disser mal!... Sem a professora Maria José não me teria sido possível gostar de Proust. Por isso, obrigado.

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publicado por Manuel Anastácio às 22:48
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