Segunda-feira, 1 de Junho de 2009
Pormenores: Santo Anastácio, Coro da Igreja do Carmo, Convento Carmelita de São José, Guimarães
Santo Anastácio, ou Anastasius, o Persa, nasceu com o nome de Mangundat ou Macundat. Mago zoroastrista, acompanhou Cosroes II quando este, em 614, tomou Jerusalém e de lá removeu a Vera Cruz para a Pérsia Sassânida, acontecimento que o levou à conversão, não só por se convencer da verdade das palavras de Jesus da Nazaré, mas também graças à impressão que o sacro madeiro nele deixou, depois de o contemplar. Chegado à Pérsia, retirou-se para Hierápolis, onde, continuando o contacto com as chamas que antes adorava como substância divina, trabalhou como ferreiro para outro cristão. Daqui, mudou-se para Jerusalém, onde foi baptizado por Modestus, entrando para a vida monástica em 621.
Desde cedo que mostrou particular fervor entre os da sua comunidade, especialmente no que dizia respeito à sua devoção Eucarística Os seus sermões, movidos por uma fé onde transbordava o desejo ardente do martírio, levavam os ouvintes às mais compadecidas lágrimas de compaixão.
Sete anos depois, seguiu para Cesareia onde deveria pregar o Evangelho às tropas persas. Preso, foi açoitado e humilhado com trabalhos forçados. Por ordem de Marzabanes, governador de Cesareia, foi acorrentado a outro prisioneiro pelo pescoço e por um pé, e, assim, obrigado a carregar pedras numa pedreira. Sabendo destas provações, o seu abade enviou-lhe dois monges que com ele partiharam orações pela noite dentro, altura em que se via envolto em luzes brilhantes, acompanhado de anjos que igualmente o assistiam nas suas orações.
De acordo com ordens de Cosroes, executadas por Marzabanes, bastaria que Anastácio renegasse a Cristo em público, para poder voltar ao serviço militar ou, mesmo, voltar à sua crença, desde que a mantivesse a nível privado no mosteiro de onde tinha saído. Proposta que, obviamente, foi recusada. Torturado junto ao rio Eufrates, onde chegou acorrentado, foi açoitado com varas, durante três dias consecutivos, até ficar sem pele em grande parte do corpo, sem que se visse nele particular revolta em deocrrência do tormento físico.
Sendo o carcereiro cristão (!), teve liberdade de se mover entre os outros prisioneiros que, pasmados da força da sua determinação, começaram a converter-se aos magotes, ainda que movidos por baixos instintos religiosos que se manifestavam pela recolha de relíquias em vida. Alguns enceravam as correntes com cera de modo a ficarem, nelas, com a impressão dos seus dedos, o que era visivelmente do desagrado de Anastácio que reprovava tal fetichismo supersticioso, ainda que a sua própria conversão também se tenha devido, em grande parte, à transcendental acção de um instrumento de tortura transformado em objecto de desejo.
Foi estrangulado e decapitado junto ao Rio Eufrates, no lugar de Barsaloe, ou Bethsaloe, com outros sessenta e oito cristãos, e o seu corpo foi deixado exposto à fome dos cães e das aves de rapina que, sempre conhecedores do que é santo, ao contrário dos seres humanos, não lhe tocaram.
Enterrado no Mosteiro de São Sérgio, foi depois trasladado para Constantinopla e, finalmente, em 640, para Roma, onde jaz na Capela de Scalas Sanctus, perto da Basílica de São João de Latrão. A sua cabeça está em Roma, na igreja que dele recebeu o nome, e são-lhe reputados vários milagres aprovados pelo Vaticano. É santo patrono dos ferreiros e de todos os que trabalham com fogo e advogado das dores de cabeça.
Terça-feira, 24 de Outubro de 2006
Pormenores - Mosteiro dos Jerónimos II
Ainda com os monstros e as flores dos Jerónimos na retina (e abençoada seja a máquina digital que revela pormenores na pedra lavrada que os olhos ainda ofuscados da luz exterior não conseguem discernir na escuridão da igreja), descubro que fui inscrito entre as retortas alquímicas de um
blog de poesia que me impressionou pelos seus pormenores preciosos feitos de referências de pura e perfeita escuridão. Porque é a escuridão que define a luz, como bem ilustrou o
Paulo Brabo no seu espantoso conto,
Sesulis - como é hábito, a dar uma piscadela de olho a Jorge Luís Borges.
E tudo isto quando estava a ganhar coragem para pegar, finalmente, nas obras de Fulcanelli. Eu sou, de facto, um adepto da alquimia. Não da Alquimia folclórica, mas aquela que procura a pureza da verdade através dos sinais obscuros que nos raptam em direcção à transcendência. Não sei se pareço demasiado pretensioso com esta treta toda, mas não o consigo dizer de outra forma. Como o autor deste monstro, agachado num canto, na Igreja do Mosteiro dos Jerónimos, olhando com ar fero, mas também assustado, para o túmulo de Camões, há coisas que não conseguiremos dizer a não ser pela expressão dos monstros, por vezes belos, que nos velam o sono, os sonhos e o acordar de cada metamorfose.
Segunda-feira, 23 de Outubro de 2006
Pormenores: Mosteiro dos Jerónimos I
Cercadura de porta na Igreja do Mosteiro dos Jerónimos, numa foto de Carla Cristiana Carvalho (1982 - )
Num passeio breve por Lisboa, num roteiro que se centrava basicamente nos espaços devolutos das margens do Mar da Palha, consegui, ainda assim, ler as pedras, os rostos, as carantonhas, as folhas e as flores de pedra do Mosteiro dos Jerónimos1. Em volta das portas do lado esquerdo da Igreja, deixei os olhos deslizar pelas curvas macias de heras, vides, acantos e... no meio destes pormenores vegetalistas todos, encontro esta cercadura de rostos totémicos que parecem saídos directamente da adaptação cinematográfica de "O Senhor dos Anéis"... Desde reis com ar sábio e proverbial, a demónios do Novo Mundo. Para além da personagem feminina no fundo numa posição erótica e exibicionista própria de uma pin up.
Não há, de facto, conceito algum que um só mármore não contenha. Basta que o mármore tome a forma da poesia.
Cercadura da mesma porta, do lado esquerdo de quem contempla
Domingo, 8 de Outubro de 2006
Pormenores: o Barbadão (Solar dos Pinheiros - Barcelos)
Imagem esculpida entre os despojos de antigas remodelações da Igreja Matriz de Barcelos, actualmente no museu de arqueologia da mesma cidade.Dizem os roteiros turísticos que na fachada sul do "Solar dos Pinheiros", mandado construír por Pedro Esteves, em 1448, em Barcelos, junto à Igreja Matriz, se pode ver a imagem esculpida de um homem de grandes barbas, chamado de "Barbadão". Confesso que me foi difícil descobri-lo, logo abaixo da cornija do telhado. No fundo, é apenas uma cara, com uma barba não propriamente descomunal, que é cofiada (ou agarrada como quem a quer arrancar, como depreende o povo) pelo braço direito. Vários relatos populares tentam explicar a simbologia da pequena escultura. Em termos gerais, é identificado com Tristão Gomes Pinheiro, fidalgo que mantinha más relações de vizinhança com os senhores do Paço dos Duques de Bragança, um pouquinho mais acima. As razões da inimizade dever-se-iam, talvez, ao facto de D. Afonso de Bragança não lhe permitir a construção do solar como pretendia, com torres mais altas, que facilmente devassariam o interior do Paço, ou, como prefere a maioria da população, refere-se a um protesto do mesmo fidalgo contra um Cavaleiro da estirpe dos Braganças, que teria desonrado a sua filha. Outras fontes referem que a figura representa não mais que o avô materno do primeiro duque de Bragança - o que não confere com a versão de Damião de Góis, segundo o qual seria Mem da Guarda, judeu converso de Castela que se teria fixado na Guarda, onde exercera o ofício de sapateiro, sendo conhecido, pelas gerações futuras dos Pinheiros, como "Borboleta" (em jeito depreciativo, como é típico das famílias que se envergonham dos seus antepassados plebeus) e que, para aumentar a confusão, é considerado o pai de uma tal de Inês Peres, Inês Fernandes ou Inês Pires Esteves (variantes que correspondem a outras tantas filiações) que, depois de andar enrolada com o Mestre de Aviz terá dado à luz o primeiro Duque de Bragança, D. Afonso. Se alguém conseguir desenvencilhar estas obscuras raízes de famílias que tanto as prezam, agradeço qualquer comentário.
Contudo, ao passear entre as ruínas dos Paços Ducais, transformadas hoje em dia em museu arqueológico ao ar livre, encontrei, entre velhos despojos da Igreja Matriz, outro Barbadão, tal e qual. Muito espantado estou por não encontrar qualquer referência, em lado algum, a esta personagem duplicada que é, provavelmente, irmã gémea da outra ou, pelo menos, irmã mais velha. O Barbadão do Solar dos Pinheiros resultou, quanto a mim, apenas da apropriação privada dos materiais rejeitados numa qualquer remodelação da Igreja Matriz, coisa que é, de facto, muito comum em Portugal. Os solares portugueses são, quase sempre, edificados com os despojos dos conventos, igrejas e palácios que a nossa proverbial burrice permitia cair em abandono. A cobiça da arte é mais frequente entre a lusa fidalguia do que o gosto pela mesma... Nem vou falar do que os nossos republicanozinhos da primeira república também fizeram com os conventos que mandaram fechar, na sua sanha anticlerical, para imediatamente sangrar para as suas bacias de barbeiro transmudadas em elmos de Mambrino. O mal é pátrio, e não de classe. E não se trata de gosto Kitsch nem Camp... Trata-se apenas de roubalheira por unhas abençoadas de quem nasceu com o rabo virado para a lua.
Sexta-feira, 25 de Agosto de 2006
Pormenores - Pia Baptismal da Sé de Braga
Logo à esquerda de quem entra pela fachada norte da Sé de Braga, está a sua pia baptismal, de estilo manuelino. A sua base tétrica assenta em cabeças toscas de leões a devorarem corpos humanos e a concha está coberta de "putti" entrelaçados com ramos de carvalho carregados de bolotas. Mas o pormenor que mais me intriga é o desta pequena composição, desgarrada do resto pela erosão do tempo. Não sei se fará referência ao martírio, como a ensanguentada base, se ao terno acto da amamentação, se, apenas, e obviamente, ao baptismo. A primeira vez, pareceu-me uma
pietá - a cabeça do corpo deitado cai para o lado, como sem vida, mas isso é desmentido pela mão que agarra o ombro da personagem de cabelo comprido. Perante a indefinição, rendi-me ao óbvio. A personagem do ápice estaria simplesmente a preparar a debaixo, de contornos perfeitamente infantis, para o sacramento do baptismo - forçando a cabeça a inclinar-se, enquanto o corpo da criança, surpreso, recusa separar-se do colo supostamente protector (da mãe? do sacerdote?). A mísula que lhes serve de base seria, pois, a pia baptismal. Mas fico decepcionado com a explicação. Até que volto a olhar para os leões da base e para os membros que se contorcem debaixo das suas patas e bocas bestiais e penso em Abraão com Isaque pronto a ser imolado. Penso na criança a debater-se e a recusar ocupar o lugar da rês sacrificial. E penso na bestialidade de um pai que, tendo fé em vozes ou visões, se prepara para derramar o sangue do filho sobre o altar. E a pura água corrente do baptismo parece macular-se, então, como fonte nascida na base de um matadouro.