Os estandartes vermelhos da penumbra
segredam promessas de bom tempo a quem conta ficar
mais um dia ao teu lado. E o calor que se escapa das pedras
passa por mim sem resistência. Não há, em ser, coerência
para mais um dia. Nem ciência que me cure desta invernia
em que entro, em pleno estio.
Tenho frio.
As muralhas cinzentas da manhã não terão já sentinelas
nem os meus passos encontrarão nelas o rasto dos teus.
A fome que tinha de ti, gravada em fotografia digital,
por ninguém será resgatada da cache universal
onde depositámos os nossos segredos,
esquecidos que estávamos da quarta parede.
Tenho sede.
O abismo gélido do meio dia será repasto de aves de rapina
com olhos de angélica virgem com pestanas de vadia.
Ter-me-ás abandonado.
Terei deixado as palavras e nem os sonhos nos ligarão.
Seremos talvez os sonhos.
Seremos talvez
As formas que as nuvens tomam quando não as vemos.
Seremos talvez isso.
O corpo morto sobre o qual se oficia o feitiço
Nada faz. Mas traz
de volta
a quarta parede
virada para uma plateia vazia
O abismo gélido do meio dia.
As coisas belas duram o instante em que são belas
E nelas há a eternidade do instante
e a permanência do que é distante
E daquilo que nelas, em luz floresce.
E quando as coisas belas perdem as graças
que as fizeram belas,
têm, ainda nelas, a graça daquele instante
em que nelas se acolheram
todas as estrelas.
Podem as coisas belas deixarem de ser belas
mas há sempre nelas um instante
de eternidade, e a gratidão de quem a elas não foi distante
verá, sempre, nelas, que são belas
porque se acolheram nas estrelas
do céu distante, no olhar terno de quem delas
foi,
desde esse instante.
Transforma-se o amor em universo
E o desejo num lugar pequeno
Ou no inverso, o antídoto em veneno.
Transforma-se o sangue em rio
E o rio, enquanto rio, em oceano.
(cai o pano.)
Ela citava Foucault
"Escrevo para ser amado".
E dizia como quem diz
"Minto para ser adorado"
E forjava céus de cristal
Sobre mares de cobre isentos de sal.
Nuvens de marfim.
Eu minto porque só na mentira que me preside
Reside o receptáculo da gratidão.
Basta uma verdade fugir-me da boca, uma que seja,
E desfaz-se o céu em liquefeito alcatrão
Escorrendo, negro, dos lábios fétidos da multidão.
Porque a verdade é uma prostituta envergonhada.
Calo-me, então, para que seja desejada
A minha crisóstoma abertura,
Mas além da ranhura, nem um gato se acocora
Na vaga espera de uma mosca que o mantenha acordado.
Mentes mas não és, mesmo agora, adorado.
A tua carne não apodrece, não te traga a terra
E os devotos não te santificam em uso de preceitos
Que fazem residir a santidade na carne seca.
Nem carne, nem palavra.
Não escrevas para ser amado.
Escreve apenas porque amas.
Resigna-te também nisso.
Filhos da opressão e do silêncio
Filhos da ingratidão
Geramos, adoramos com incenso
A imensidão,
Perversa mansidão
De inerme inconsciência.
Um lenço
Cai,
Como a Inocência,
Das mãos de uma criança,
E penso:
Cai,
Primeiro passo de dança.
E vai, tens de apanhar o lenço antes do outro,
Vai.
Avança
Joga. Humilha. Apanha o lenço imenso
Que cai das mãos dessa criança.
Vai. Avança. Enquanto todo o sonho contido no sorriso que vos unia antes do jogo
Se esvai.
Cai.
Vai.
Avança.
Não penses. É apenas um lenço que cai
Das mãos de uma criança.