Quinta-feira, 10 de Novembro de 2011
Das couves

Graças à Ana Ramon, que me mandou o artigo a que faço referência no post anterior, dei de caras com uma couve que me dizia alguma coisa. As couves têm, no Reino das Plantas, o desprezado lugar da burrice que, no Reino dos Animais, é reservado às galinhas. Diz-se de uma pessoa que está em coma que está como uma couve, ou que se reduz ao estado de uma couve. Poderia agora discorrer sobre a capacidade, comprovada cientificamente, de as couves, como outra planta qualquer, comunicar com outras plantas da mesma espécie. Não comprovado cientificamente, mas bem capaz de ser possível, será a sua capacidade de comunicar com outros seres vivos que com elas interajam interespecificamente (afídios, lagartas da borboleta-das-couves, moscas-brancas, ervas de toda a espécie e bactérias alojadas nas raízes, incluindo as que fazem o tão detestado "potro" que se manifesta com a formação de tubérculos nas raízes das mudas jovens de couve ratinha que os meus pais rejeitavam e que eu, caridosamente, plantava num canto da horta e, não raramente, davam boas folhas durante um ano ou dois). Também podia discorrer sobre a falsa burrice das galinhas, especialmente dos pintainhos que parecem ter capacidades paranormais, se for a acreditar nos livros da coleção "Labirinto" das Edições 70. Mas quando a Ana Ramon me enviou um mail sobre as virtudes nutritivas da couve-galega (que na minha terra é couve-ratinha), quando abri o link derramou-se sobre os meus olhos uma imagem familiar. A imagem não dizia: "foste tu que me fizeste". Tirar uma fotografia tem pouco de autoria, que me desculpem os fotógrafos. É apontar e disparar. Eu sei que o ângulo, a luz e tudo o resto conta e transfigura a realidade natural em objeto artístico, mas não é disso que agora quero falar. Aquela couve falava comigo por si mesmo. As suas folhas azuladas (eu sei que eram azuladas, mas a Gláucia alertou-me novamente, e de forma terna e cúmplice para esta peculiaridade), o fundo repleto de japoneiras (que é como aqui se chama àquilo que na minha terra natal apenas é designado de "camélias") e o muro com aspeto de muralha castreja dizia-me que, por alguma razão, estava no quintal dos meus sogros, de onde se vê Braga por um canudo. Era uma couve já de mais de dois anos ou perto disso, de onde já se tinha tirado muita folha para sopa, para galinhas e coelhos, sem falar nos "netos" que são os rebentos que vão crescendo ao longo do longo do caule e com os quais se fazem um belo e bracarense arroz de netos (ao modo das sensaboronas couves de bruxelas, mas sem formar bolinhas). Ao ler os comentários do artigo, contudo, descobri muita gente a dizer que a fotografia não era uma couve galega. E o meu sangue começa a ferver perante disparates, sejam eles do foro político, estético, filosófico ou botânico. Aquilo é e sempre foi uma couve galega. Mas havia gente a dizer... imagine-se o absurdo, que era uma couve-lombarda! Aí apeteceu-me rebentar. Até que, entre os comentadores, alguém que assinou por "Zé das Couves" disse: "será que sou o único aqui a saber o que é uma couve-galega? Aquilo é uma couve-galega!". Muito agradecido fiquei ao Zé por tão preclara sabedoria. Fiquei a saber, depois, que a minha amadora fotografia foi uma segunda escolha do pessoal do Público. Ao que parece, puseram lá, em primeiro lugar, antes das críticas da acéfala multidão da internet, uma couve-lombarda belissimamente fotografada por um fotógrafo que ganha algum a disparar flashes, o que não é o meu caso. As minhas fotografias, boas ou más, são de toda a gente e toda a gente as pode utilizar para o que bem quiser sem me dar um centavo (já que vamos voltar aos dracmas é melhor readaptar a linguagem). As dos fotógrafos profissionais são protegidas por direitos de autor.  Pois, a couve-lombarda podia ser muito bonita, mas não era uma couve-galega. Os jornalistas, coitados, lá tiveram de recorrer à Wikipedia e, não tendo melhor, porque os fotógrafos profissionais não gostam de couves-ratinhas, lá tiveram de utilizar a minha soberba couve-galega-ratinha do quintal dos meus sogros, soberba não à conta do meu mérito de fotógrafo, mas à conta do seu mérito de resistente exemplar de esguia generosidade. Mas continuo orgulhoso. Ser segunda escolha não é de desprezar, quando somos a escolha acertada.

Artigos da mesma série: , , , ,
publicado por Manuel Anastácio às 21:32
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (2) | Adicionar aos favoritos
Quarta-feira, 22 de Setembro de 2010
Enciclopédia Íntima: Marcela

Com um pouco de esforço, tudo se encontra. Até o nome científico de uma planta que desde a minha infância me incenseia os sonhos e floresce na eternidade dos cestos de vime pelos cantos da casa onde nasci. Em Carvalhal chamam-lhe marcela. E, sendo um belo nome, talvez dada a etimologia bélica que se adivinha nas suas sílabas, facilmente cairão os botânicos amadores em querelas e escaramuças quanto à propriedade do nome. Dá-se o nome de marcela, em Portugal, no Brasil (como me informaram a Gláucia e a Gerana, a respeito dos travesseiros de marcela da Bahia, de que não me chega qualquer imagem pelo sacrossanto Google) e, provavelmente noutros países de expressão portuguesa, a qualquer tipo de asterácea amarelo esbranquiçada, incluindo os vulgares malmequeres que, também eles, pouco vulgares são quanto à sua interminável e intrincada árvore genealógica, incluindo parentes legítimos e bastardos. Ainda me deu para enviar a fotografia que consegui captar com a minha já muito safada máquina fotográfica para o Paulo Araújo, do Dias com Árvores, mas a fotografia não era suficientemente explícita, o que, aliado à confusão taxonómica inerente a todas as asteráceas (se uma asterácea fosse, que às vezes as aparências enganam), não lhe permitiu chegar a uma conclusão. Ainda pensou numa Senecio. Hipótese, essa, possível apenas graças à péssima fotografia onde, além de apenas se centrar a imagem nas inflorescências, se esquecia o pormenor importante das folhas, que a máquina fotográfica teimava apenas em transformar em borrões prateados. Os espanhóis chamam-lhe pluma-de-príncipe ou sempre-viva-dos-montes. Os alemães chamam-lhe flor-de-palha-da-areia. Os anglófonos, sempre-viva-anã ou "Immortelle". Na minha terra natal, é marcela. É queimada nas fogueiras dos santos populares juntamente com rosmaninho, para curar (ou prevenir) a rabugem das crianças que, depois de defumadas terão, supostamente, um ano de pura bonomia. Confesso que, comigo, nunca deu muito resultado. Sempre fui rabugento. Ponto final.

 

O seu nome científico é Helichrysum arenarium. Dourada como o sol, sobre a areia. Nem um sinal de rabugem no horizonte.

 

Artigos da mesma série:
publicado por Manuel Anastácio às 15:40
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (6) | Adicionar aos favoritos
Quinta-feira, 27 de Agosto de 2009
As flores como símbolo sexual

Lírios-do-vale e rosas amarelas, em "A Idade da Inocência", de Martin Scorcese.

 

Não cheguei a referir por aqui a volta da mais bela criação blogosférica portuguesa que é, sem dúvida, o "Dias com árvores". Foi lá que encontrei esta lindíssima citação de Lineu a respeito das flores ou, mais especificamente, a respeito de um dos seus acessórios de sedução: "as actuais pétalas de uma flor em nada contribuem para a sua geração, servindo apenas como tálamo nupcial que o Grande Criador tão gloriosamente preparou, adornado com cortinados de grande preciosidade e perfumes de muitas suaves fragrâncias, de modo a permitir ao noivo e à noiva celebrar aí as suas núpcias com a maior solenidade". Solenidade é palavra que pouco diria a uma flor se usasse o nosso vocabulário; nada há de solene numa flor, a não ser que a linguagem do desejo, liberta no abandono dos sentidos a si mesmos, seja em si mesmo solenidade. É certo que Lineu falava de solenidade porque sempre pareceria mais legítimo e moral que falar da pura luxúria hormonal que uma flor encerra nas suas pétalas que, mais que órgãos de protecção, são, geralmente, insidiosos convites à penetração orgíaca dos insectos que nelas realizam, insuspeitadamente, a tarefa de cumprir a ânsia de existir e se prolongar que caracteriza a vida. As flores sempre foram motivo de celebração do sexo e, mesmo, da negação do mesmo. É assim que o lírio branco envergado pelo Arcanjo Gabriel rivaliza com a branca açucena na mão de São José ou com as hipócritas florzinhas de laranjeira com que se disfarçam os desejos já consumados de muitas noivas. É óbvia a contradição, esta de se representar a virgindade com flores quando estas são apenas símbolos da mais descarada voluptuosidade. Claro que a rosa é já, não um símbolo de feminilidade, mas um símbolo de reverência para com o sexo feminino. Reverência essa que pode bem variar do mais extremado e lúbrico apetite à platónica satisfação de uma ascesce celibatária ou, quiçá, temerosa misoginia - é aí que entra a castradora imagem da rosa mística que não mais é que a negação da mulher ao seu próprio sexo para se submeter à insuficiência de uma certa ideia de masculinidade enformada pela religião. Em "A Idade da Inocência", Edith Wharton contrapõe aos lírios-do-vale, mensageiros de um regresso inevitável e natural, como a Primavera, oferecidos pelo protagonista à sua prometida, as rosas amarelas oferecidas à Condessa Olenska, personificação de uma atracção fatal e escandalosa. Rosas amarelas que simbolizam sempre algo de doentio, seja o ciúme, seja o amor que se esmorece, seja a traição ou o abandono. Mas se me lembrei de falar disto, foi por causa de um recente texto onde uma pila bem falante e prolífica bloguista se recusa a aceitar o adjectivo murcho, dizendo que quem murcha são as rosas... Ora, estando esta pila específica entre as rosas da coluna à direita, pensei em fazer uma nova subdivisão nas minhas categorias de blogues, onde a incluiria entre flores mais erectas. Há algo disso nos gladíolos, mas são flores demasiado emproadas e avessas a qualquer aproximação. Erecção por erecção, que seja a das flores do verde pinho, ou os duros aloendros da imagética erótica da Natália Correia. Mas não. Fica ali, entre os odores púbicos das rosas. Porque não há flor mais versátil no simbolismo que a rosa. Do mais extremado e lúbrico apetite à platónica satisfação de uma ascesce celibatária ou, quiçá, temerosa misoginia. Já o tinha dito.

Artigos da mesma série: ,
publicado por Manuel Anastácio às 15:24
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (12) | Adicionar aos favoritos
Sexta-feira, 1 de Maio de 2009
Os amentilhos dos choupos-negros de Guimarães II

Fragmentos de primavera que, ao som de Bach e de Rostropovitch parecem, de facto, como alguém disse, lágrimas vagarosas e espessas.

 

Agora, num vídeo mais elaborado, num parque ao pé de mim. A primeira árvore a aparecer é o choupo que quase toca na minha varanda... Espero que o vídeo não tenha perdido a leveza pueril do primeiro.

Artigos da mesma série: , ,
publicado por Manuel Anastácio às 02:38
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (4) | Adicionar aos favoritos
Segunda-feira, 27 de Abril de 2009
Os amentilhos dos choupos-negros

Há quem queira ver os choupos-negros de Guimarães erradicados por causa do algodão que libertam dos seus amentilhos nesta época do ano. Sempre por causa das alergias. Eu não tenho alergia a qualquer fragmento de Primavera, mas se tivesse, não me julgaria no direito de de privar os outros de contemplar o espectáculo vital do curso das estações . São apenas alguns dias em que volta a nevar em Guimarães e, especialmente, em Azurém, onde o choupo que quase toca a minha varanda explode numa nuvem de sementes que voam e se acumulam em todos os recantos e germinam em cada poça de água.  Este pequeno filme, o primeiro que publico no Youtube, foi filmado no parque da cidade. Não está grande coisa, eu sei. Estou ainda a aprender.

Artigos da mesma série: ,
publicado por Manuel Anastácio às 12:00
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (8) | Adicionar aos favoritos
.pesquisar