Domingo, 26 de Abril de 2009
Os Anéis de Mercúrio III

Pormenor de "A Transfiguração", de Rafael, Pinacoteca Vaticana.

 

É um recanto forrado a azulejos verde-azulados, alguns deles estalados e, à altura do caixão, a mármore mal ajustado. Da parede pendem quadros com inscrições árabes emolduradas como compete às obras de arte visuais que a religião proíbe mas que o engenho transforma, hereticamente, em imagens tão obscenamente figurativas quanto uma qualquer caricatura sacrílega do Profeta. Ali se expõem as curvas pérfidas do corpo tentador de uma mulher ou o movimento ondulatório das serpentes, mas ninguém se incomoda. São letras. Não são imagens. Só por mera ilusão sensorial dos nossos fracos e limitados olhos poderíamos pensar que as letras fossem a imagem de um som. Ideia ridícula. Pior ainda, pensar que, juntas, fossem a imagem que os crentes não auditivos formam no seu cérebro ainda mais limitado. A. não sabe se o Corão, antes de ser revelado aos homens, através do Profeta, existia enquanto som ou enquanto imagem gráfica, porque a imagem gráfica do Corão é o próprio Corão, intraduzível e eterno. A forma indissolúvel do conteúdo.

 

A. traz ainda nas narinas o cheiro a peixe da aldeia de Sariyer, na margem europeia de Istambul e sente que não está devidamente purificado para se aproximar do túmulo do evliya Telli Baba, expressão que não quer dizer mais, em turco, que santo ancião dos fios de prata. Muitos dos visitantes (geralmente jovens e mulheres) arrancam, ao túmulo enovelado de fios de prata um ou dois fios e saem respeitosamente depois de feitas as preces. Se estas não forem respondidas com actos divinos tão urgentes como o casamento de uma qualquer jovem encalhada, os fios não voltarão. Mas o número de fios brilhantes não para de aumentar sobre os restos mortais daquele que, como uma noiva, também cobria o seu turbante com tais acessórios de luz refletida. E Deus, cuja luz se reflete naqueles fios, aceita melhor aqueles que assinalam a sua presença, tal como o noivo que se alegra de ver a noiva carregada com os seus presentes, sinais da sua riqueza.

 

Está A. a descer de novo em direção à aldeia de Sariyer quando se cruza com ele um grupo festivo de um casamento. A noiva vai devolver os fios que retirou à tumba do santo, juntando-lhe outros tantos, para sua maior glória.

 

A. é assaltado por um problema de matemática, que envolve algum cálculo de probabilidades: se cada crente leva dali um ou dois fios e só os devolve se as suas preces forem atendidas (admitamos que os devolvem com tantos fios atados quanto as preces atendidas), qual terá de ser o balanço mínimo entre as preces ignoradas e as atendidas, para que os fios não desapareçam por completo? Note-se que cada pessoa pode ter feito mais que um pedido ao santo. Note-se que, por vezes, o crente perde a fé (pouco frequente, por aqui, mas acontece) ou esquece-se de pagar a promessa, mas que, por outro lado, há crentes que pagam as promessas que fizeram mais aquelas que, não tendo sido feitas, foram, na mesma, atendidas, mais aquelas em que o santo, contra a nossa vontade, acabou por decidir de outro modo, e em que acabamos por lhe dar razão. São assim os santos, sabem mais de nós que nós mesmos pelo simples facto de não nos conhecerem de lado algum.

 

Santo guerreiro, tal como o português de Aljubarrota, protetor dos salpicos de óleo quente, era esse Telli Baba, que ali se instalara, naquele mesmo local onde agora era venerado, com os seus efeminados fios de prata sobre o turbante, não porque fosse efeminado, mas como forma de humilhar o seu orgulho guerreiro à simples condição de escravo da vontade divina, como já o fez a Virgem, santa mãe daquele profeta que os russos, deste lado do Bósforo, têm a sua aproximação vigiada pelo santo, pintam em ícones blasfemos aureolados de rendilhados também prateados ou dourados. Toda a gente que se quer candidatar ao lugar de santo trata de dar algum lustro à cabeça, seja pela tonsura seja por acção divina direta, como aconteceu a Moisés que, na mão dos Cristãos, tendo facies coronata viu a sua imagem transfigurada em facies cornuta e a partir daí passou a ser representado com chifres, símbolo de poder, tal como já era feito a Alexandre o Grande, cuja fama também já chegou aos ouvidos de Telli Baba. É frequente esta troca, a da santidade pelo pelo poder, e A. quando chega à casinha de madeira de compridas janelas onde está hospedado pensa que bem poderá ser esse o significado do tão obscuro momento da transfiguração, em que o Cristo, o simples Filho do Homem é elevado ao nível dos profetas mortos arrebatados para a Glória de Deus. No momento em que se consuma a ascensão, quando do Cristo vemos apenas os pés abaixo do rebordo superior da moldura dos quadros, sabemos que aquele homem simples, que se sentava com as prostitutas e comia com os publicanos, não deixará o trono celestial. Assim se transfiguram as belas verdades humanas em símbolos justificadores da repressão e motivadores do ódio dos homens pelos homens. Assim se transfigura uma pobre donzela de Orleães numa assanhada guerreira devotada em decepar ingleses, assim se transfigura o monge Nuno Álvares Pereira, envergando a cota de malha debaixo do hábito, num decepador de espanhóis. Assim se transfigura a cruz, onde o Filho do Homem foi humilhado, no ceptro onde se apoiam os poderosos.

 

Quando A. se senta, sozinho, na casa de pescadores onde lhe servem o peixe fresco arrebatado às água chicoteadas por Xerxes, pensa que, de facto, só as águas se mantêm fiéis à sua liberdade. Feridas pelo chicote ou pela quiha dos navios, logo se fecham numa cicatriz de espuma que rapidamente desaparece. Ali, no Ponto, na margem para onde Zeus levou Europa às cavalitas, A. leva as mãos aos bolsos para se certificar que o fio prateado ainda lá está. Amanhã terá de partir. Mas promete a Telli Baba que voltará, com mais fios atados a este. 

Artigos da mesma série:
publicado por Manuel Anastácio às 11:12
link do post | Dizer de sua justiça | Adicionar aos favoritos
Terça-feira, 24 de Março de 2009
Os Anéis de Mercúrio II

Nymphalis urticae num girassol, em Agosto. Carregar na imagem para os devidos créditos.

 

A. salpicou de vinagre o esparregado que cantava num murmúrio de farinha frita e, sentindo que a acidez já se transtornara em éter sugado pelo exaustor da cozinha, puxou a travessa e chamou a mulher e os filhos para que se sentassem. B. demorou a chegar. Tinha um jogo para acabar no computador. Mas estava avisado. Ninguém era obrigado a sentar-se à mesa ao mesmo tempo que os outros, mas ninguém tinha, também, a obrigação de esperar por quem preferia terminar as suas devoções particulares antes da comunhão em família.

 

C. começou a tirar sopa para quem tinha chegado, enquanto A. abria uma garrafa de vinho que se esquecera de abrir antes. B., chegando mais tarde, teria de o fazer por si mesmo. Era obrigação de quem chegasse tarde não importunar com tarefas serviçais quem comparecera à hora da chamada. Mas seria obrigado a comer sopa. Era uma das muitas regras da família.

 

Havia um certo ar de obrigação religiosa na disposição dos talheres que se refle(c)tia na compostura neocalvinista do casal e dos dois filhos, D. e E. . Pareciam, ou eram, personagens de um romance mal inspirado na realidade. Eram como pontos singulares marcados numa grelha, unidos por diagonais formando uma estrela de cinco pontos inscrita num pentágono, ou assim se fez, quando B. chegou com ar contrafeito de quem não conseguira encontrar o comando certo para efectuar o salto que salvaria o Universo das mãos de um Bin Laden mal disfarçado em pixéis arrastados, e encheu a sua malga de sopa e sentou-se no seu lugar. A. dirigiu-se à filha mais nova:

 

-Então E., que coisa bonita tens para compartilhar connosco hoje? Hoje é a tua vez de começar.

 

A menina sorriu. Gostava daquela oração de graças agnóstica que se tornara hábito à hora de jantar.

 

-Queria mostrar uma flor que apanhei junto à escola! - apalpou os bolsos e tirou de lá uma haste murcha com uma pétala que já fora branca. O sucesso da sua coisa-bonita-do-dia fora-se. Os olhos começaram-lhe a enevoar-se de lágrimas. C. passou-lhe as mãos  pela cabeça e, beijando-lhe a nuca, confortou-a:

 

-Tenho a certeza de que seria uma flor muito bonita. Parece que tinha uma amêndoa verde debaixo das pétalas.

 

- Sim, e essa amêndoa fazia "ploc" quando apertávamos. Eu queria mostrar.

 

D. fez um ar de mau e atirou:

 

- O pai não gosta que estraguem flores. Se andavas a fazer ploc, estavas a estragar as flores...

 

A. repreendeu D. com o olhar. Ninguém tinha o direito de dizer que a coisa-bonita-do-dia de alguém era má. Não naquele momento. As críticas poderiam vir, mas depois.

 

- E tu, D.? Que tens para partilhar connosco?

 

- Hum... Uma canção.

 

- Sim? Que canção?

 

- Uma em que os tipos cantam assim "Billy the kid did what he did and he died..." assim, várias vezes. Mas diz outras coisas

 

- É rap? - perguntou C., que não gostava de rap e de coisas violentas

 

- Mais ou menos. É Hip Hop. Ou Indie, não sei bem. É dum grupo chamado "Why?"

 

- Dá para ouvirmos logo? Como se chama o disco?

 

- Aloupicia.

 

- Alopécia? - perguntou A. - Sabes o que isso é?

 

- Acho que é uma doença em que as pessoas ficam carecas.

 

- E já sabias isso ou ficaste a saber depois de ouvir esse grupo?

 

- Fiquei a saber ontem. Fui ao Google.

 

- E tu, B.?

 

- Nada.

 

- Nada? Nada de bonito?

 

- Já não sei o que inventar.

 

- Ninguém te pede para inventar nada.

 

-Está bem. Uma coisa bonita. O cu da minha colega da frente. Hoje via-se as cuecas e tudo quando estava virada a fazer o teste de História.

 

C. franziu o sobrolho. A. levou uma colher de sopa à boca.

 

- Pronto. É uma coisa bonita. Quem somos nós para dizer que é feia? - disse C. olhando apreensiva para o marido.

 

- Eu não disse nada. Se há críticas a fazer, que se façam mais tarde. E a minha amada C., qual é a coisa bonita que tens para partilhar?

 

- Um poema...

 

- Para variar. - disse B.

 

- Críticas mais tarde, B.

 

- Para variar.

 

C. sorriu:

 

- Se tens o direito de compartilhar o rabo...

 

- Cu!

 

E. fez um ar escandalizado e tapando a cara riu do pecado que o irmão insistia em dizer.

 

- ... rabo da tua colega, creio que eu também tenho o direito de partilhar um poema.

 

- Que poema, C.?

 

- Rainer Maria Rilke, de "As Elegias de Duína e Sonetos a Orfeu"

 

Quem, se eu gritasse, me ouviria entre as ordens dos anjos?

E mesmo que um deles me apertasse de repente contra o seu peito,

Seria consumido pelo assombro da sua presença,

Pois o belo não é mais que o começo do terror, que ainda mal conseguimos suportar

E que nos espanta por, em sereno desdém, não nos aniquilar.

É terrível, cada anjo...

 

- Não rima. - disse E.

 

B. fez um ar sério e terrível e, olhando a irmã nos olhos, desferiu:

 

- Críticas mais tarde, E.

Artigos da mesma série:
publicado por Manuel Anastácio às 23:32
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (3) | Adicionar aos favoritos
Segunda-feira, 23 de Março de 2009
Os Anéis de Mercúrio I

"A Última Ceia", de Leonardo da Vinci. Clicar na imagem para os devidos créditos.

 

Qual foi o filme que mais te emocionou?

 

O Mundo, de Carl Theodor Dreyer.

 

Gosto de Dreyer. A Paixão de Joana D'Arc é fantástico. Falei dele uma vez aos meus alunos, para ilustrar um ponto qualquer do que estava a ser falado. Expliquei que não era filme que eles adorassem particularmente ver, mas que, quem sabe, um dia poderiam vir a gostar e, quem sabe, a gostar tanto dele quanto eu. Expliquei que era um filme mudo. Que era lento. Que não tinha "a(c)ção" na ideia de a(c)ção deles. Que era feito de rostos, de dúvidas, de sofrimento, como retratos numa galeria.


É professor em que universidade?

 

Na universidade do Mundo. Tento licenciar miúdos com o canudo da Esperança.


Mais que a Esperança, há a Caridade.

 

...o Amor?...

 

A Caridade.

 

Caridade parece tão... paternalista. Parece estar a defender a esmola, em vez do sentimento maior que chega a definir Deus: o Amor.


Não sei que Bíblia lês. Eu leio a católica, e lá diz: Caridade, maior que que a Fé e que a Caridade.

 

Não existe nenhuma Bíblia Católica...

 

Claro que existe! A que se lê na missa.

 

Em que missa?

 

A missa é só uma!

 

É? Talvez seja. Foi uma só. Desde lá para cá que andamos todos a tentar imitá-la, em sua memória. Sem que o consigamos.

 

Não te entendo.

 

Nem eu a ti.

 

Participamos de missas diferentes, apesar de a hóstia ser a mesma.

 

Duvido... Quando recebo a hóstia, sinto naquele pedaço de farinha prensada a substância divina, o corpo de Deus, porque sei que ao tomá-la, com a minha fé, estou a transportar-me ao momento da despedida. Nessa altura, a farinha toma a substância real do corpo daquele que se deu em sacrifício por nós. Sinto naquele pedaço de farinha o Amor a tomar conta de cada átomo, porque passo a comungar daquele amor em que tenho Fé e em que se baseia toda a minha esperança.

 

Falas demasiado sobre as coisas sagradas. Arriscas-te a pecar contra o Espírito Santo.

 

Todos nós nos arriscamos a pecar contra o Espírito Santo. Basta não sabermos no que consiste esse pecado. Mas penso que basta não querermos pecar contra Ele, para que tal mal não nos afe(c)te.

 

Pensas demasiado, falas demasiado. Tens por acaso curso em Teologia?

 

Cristo não tinha.

 

E comparas-te a Cristo.

 

Sim. É o meu modelo de vida.

 

Fazia-te bem pensares como São Pedro, que morreu de pernas para o ar porque se julgava indigno de imitar o Mestre.

 

Duvido que Pedro tivesse tal morte...


Pensas muito. Falas demasiado. Por isso, duvidas.

 

Não duvido do Amor...

 

Ah... Mas duvidas da Fé?

 

Sempre. A Fé é mais difícil que o Amor, ainda que o Amor seja maior que a Fé. Cristo disse, aliás, que o seu fardo era leve. Creio que era a isso que se referia: ao fa(c)to de que é mais fácil abraçar o Amor, que é Maior, do que a Fé, que é Menor, ainda que seja ela a que consegue mover montanhas.


Ai, se ainda existisse o Santo Ofício...

 

... Estaria pronto para o enfrentar. Como a Joana D'Arc de Dreyer. Creio eu. Ou talvez não. Tavez fosse cobarde e aceitasse abjurar o meu Amor em troca de uma Fé emprestada.

 

A tua arrogância não tem limites.

 

... Vejo que tens aí a lista dos dez filmes recomendados pelo Vaticano...

 

Sim.

 

Posso ver?...

Olha! Dreyer!... Duas vezes! Olha aparece aqui o filme de que falaste, "O Mundo"... Não conheço... Isto deve ser erro... Não será "A  Palavra"? Repara, pegaram no título do filme em inglês e acrescentaram por gralha um L...

 

...

 

...olha, o que é que se passa mesmo com o Sporting?...

 

 

Artigos da mesma série: ,
publicado por Manuel Anastácio às 23:09
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (2) | Adicionar aos favoritos
.pesquisar