Segunda-feira, 17 de Outubro de 2011
Mário Elias (1934 - 11 de outubro de 2011)

 

Um copo vazio à espera

De lábios sedentos da carícia

de uma Primavera.

Uma qualquer, desde que cheire a poejos pisados

Sobre os calhaus rolados

Numa calçada de Mértola.

Nunca li um poema teu

Para além dos quadros com Alentejanos

e porcos, sempre os mesmos.

Óleo ou acrílico sobre fotocópia

Pouco importa.

Um copo vazio à espera

Com osgas e mosquitos à volta

E ninguém para cravar mais uma bebida.

Natureza morta.

Mértola já tinha morrido há muito

E agora...

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Terça-feira, 2 de Março de 2010
A Ópera dos Malandros I

Bryn Terfel com a The Orchestra of the Welsh National Opera, conduzido Gareth Jones. Cantor que tantas vezes lancei no éter de Mértola, numa altura em que ele cantava bem melhor que nesta relativamente fraquinha, mas bem humorada versão da "Madamina..."

 

Corria o ano de 1997 e era o primeiro ano em que iria trabalhar naquilo que julgava que seria um emprego minimamente conforme às minhas aspirações de intelectual de meia tijela. Menos de um mês antes de saber que tinha caído em Mértola, tinha comprado a "Grande Reportagem", na altura dirigida por este agora intragável Miguel Sousa Tavares, fruto degenerado de uma tão bela árvore... Minto... a reportagem desse senhor só veio mais tarde... o que eu tinha lido sobre a escola de Mértola estava algures numa página do "Jornal de Letras" onde, com orgulho, se expunha aos olhos incrédulos dos portugueses um improvável reconhecimento da OCDE em relação a uma escola num sítio onde Judas nem podia lavar o cu se não quisesse morrer de disenteria. Eu tinha acabado de tirar o curso e tive a felicidade de ser o penúltimo professor a ser colocado numa escola, na primeira fase dos concursos, o que era também algo improvável, mas que me aconteceu, para espanto da senhora da CAE que foi verificar se havia engano - que alguém como eu, com a cara roída de acne juvenil, não era pessoa para entrar na primeira fase.

 

O dia em que os meus pais encheram a carrinha com a tralha necessária para me instalar naquela terra de maravilhas e desenganos, no preciso instante em que Amélie Poulain  descobria uma caixa escondida numa parede, conhecia eu o Miguel Correia que, por qualquer improvável acaso, já tinha alugado um quarto num rés-do-chão, restando outro que foi por mim alugado ao chegar lá. O Miguel, a quem eu chamava e ainda chamo Nuno (o Nuno de Mértola, que agora é o Nuno do Porto - tal como eu, árvore meridional transplantada no coração de uma Valquíria nórdica) foi como um cometa de sabedoria e ponderação num ano breve mas tão cheio de tudo, numa terra onde não havia nada a não ser achados arqueológicos e lutas políticas acéfalas e incompreensíveis para o comum dos mortais.

 

Dois ou três anos depois de ter saído de Mértola, sem o ter visto depois de termos deixado aquele anel de rocha granítica e água estagnada, o Nuno convidou-me para o seu casamento. Eu, que me desfazia em disparates ao pegar num volante, nem pensei duas vezes e segui, para mal dos pecados do Nuno, que me teve de resgatar por interposta pessoa, perdido algures em Canelas na véspera do casamento, para o Porto onde, talvez na Igreja Matriz de Paranhos (seria? acho que nunca cheguei a saber em que igreja foi), ele fez-me ler uma das leituras da cerimónia do casamento, porque bem sabia como eu, agnóstico doente da alma, gostava daquelas palavras. Foi a primeira e última vez que fui chamado a ler durante uma missa. Mais tarde, quando me casei no Santuário do Bom Jesus do Monte (sem hipocrisias religiosas: o meu agnosticismo é muito católico), convidei o Nuno a ler a mesma passagem sagrada. E, enquanto o meu sogro se desfazia em lágrimas, e o Mau Ladrão, num dos cantos do altar, se furtava aos olhares dos crentes, acreditei que tudo neste mundo tem a secreta marca de água da bondade. E até os malandros têm direito à sua courela no Paraíso. Mesmo que tenham tido a infelicidade de dizer gravosos disparates sobre a Carmen de Bizet Fora de Mértola. Sem sair de Mértola...

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publicado por Manuel Anastácio às 01:04
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Sábado, 23 de Junho de 2007
Ombra mai fu

O contratenor David Daniels, cantando "Ombra mai fu", da Ópera Xerxes, de Handel, conduzido por Julius Rudel. Nova Iorque, 1997
 
Estava eu a desligar a televisão quando começou um documentário-entrevista de uma série que se chama "O meu bairro". Parecia interessante, mas estava cheio de sono. Mas o sono passou quando vi que o "bairro" de que se iria falar era sobre o "bairro" de Cláudio Torres - ou, seja, Mértola. E, não sei por que razão - alguma característica vestigial-animal e irracional, por certo - tinha de ver aquilo que já conhecia. Acordei logo. Se fosse sobre outro sítio qualquer para mim desconhecido (isto é, se fosse um programa que me fosse ensinar alguma coisa de totalmente nova), teria apagado a televisão. Mas este gosto em rever as coisas, em saber notícias do torrão por nós já pisado é forte. Muito forte. Ainda mais quando o programa se chamava "O meu bairro" - ora, o bairro de alguém não se limita às ruas e às casas - às edificações - mas às gentes que o habitam. De facto, a minha perspectiva parece reflectir-se nas palavras de Jorge Wemans, director da RTP2 ao Jornal de Notícias:  "Pretendemos mostrar que existem espaços que não só lugares edificados mas são também pessoas e relações que se estabelecem". Ora, ainda há dias, a respeito do filme "Então é assim...", falei de Mértola em tons menos abonatórios (tudo o que não seja laudatório é, na blogosfera, considerado menos abonatório quando não mesmo ofensivo). E referi-me às gentes. Ora, lembro-me bem de alunos que eram excelentes pessoas, lembro-me de colegas de Mértola com quem fazia rádio pirata na escola, mesmo à noite,, com quem fazia gaspacho ao final do dia, antes de uma saída ao Bar Lancelote, lembro-me de alguns alunos de coração grande sem venenos de calculismo, lembro-me do café onde me convidavam para participar da açorda fervente e perfumada de poejos. Lembro-me dos dois alunos com síndrome de Down que não abandonavam a sala de professores - especilamente de um, que desconfiando que eu fosse extra-terrestre ou enviado do diabo, ainda assim me doutrinava sobre o demonismo, com um livro das Testemunhas de Jeová numa das mãos e o "Evangelho Segundo Jesus Cristo" do Saramago na outra. Lembro-me das vezes que tive de entrar na casa das vizinhas para expulsar as osgas. Lembro-me do Mário Elias a cravar copos de vinho aos visitantes e a demonstrar pela enésima vez que sabia o significado da palavra "polímato". Lembro-me do João - que, estando eu de visita a Mértola, na minha lua de mel, com a Carla, nos cantou, apenas para com os dois como espectadores, entre os arcos brancos da antiga mesquita, o "ombra mai fu" de Handel com uma voz de contralto contratenor1 que nos alagou os olhos. Para mim, o bairro Mértola estendia-se ainda à pizaria "A paragem", na minúscula aldeia de Corvos,  a uma dezena de quilómetros da vila, onde comíamos  massa italiana com nomes operáticos (Turandot,  Turiddu...) e pizas divinas mas, principalmente,  o alentejano cozido de grão, a punheta de bacalhau numa mesa cá fora, entre o horizonte de terra cansada e um céu paciente. Esse foi o meu bairro. Era a Mértola que valia a pena. Hoje, a terra está mais sofisticada, tem outras coisas que valem a pena: pedras, cacos, colunas, mosaicos, calçadas, muros, muralhas, alcachofras de pedra à Cutileiro - os núcleos museológicos são visitáveis (têm a porta aberta!!!...), mas já não é o meu bairro. Foi-o apenas por uma ano.

"O meu bairro", conduzido pela sempre simpática Ana Sousa Dias, guiada pela mão de Cláudio Torres, seguiu-se pelas ruas de Mértola. Qual é o bairro de Cláudio Torres, pelo que se percebeu por este documentário? As pedras. Incluindo a antiga mesquita, hoje igreja, onde ouvi o ombra mai fu. Pedras... Ainda se entreviu um restaurante (O Migas, provavelmente, mas sem certezas). Mas e as pessoas? Não há gente em Mértola? Fiquei apenas a saber que o Cláudio Torres foi lá aceite pelo pessoal (e aceite é a palavra) que via com benevolência aquela gente que em vez de ir para a praia (Vila Real de Santo António ali tão perto...) ia desenterrar cacos... Pouco mais se falou das gentes. Não se viu ninguém de Mértola. Vila vazia. Vila Museu, diz a entrada. Compreendi - ou serei muito mauzinho?... - que os habitantes de Mértola que enchem o bairro de Cláudio Torres são os fantasmas que residem entre o pó e a intersecção de ruínas do antigo gânglio linfático do Guadiana. Serei mauzinho? Talvez. Talvez não.

Um óptimo local para ouvir o ombra mai fu, sem dúvida.

Ombra mai fu
di vegetabile,
cara ed amabile,
soave più.

Jamais a sombra
Cara e amável
Dos vegetais
Foi tão suave.

1Contratenor, claro. Obrigado à Ana Ramon pelo aviso de tal disparate.
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publicado por Manuel Anastácio às 11:45
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