Terça-feira, 10 de Outubro de 2006
Pormenores: Cruz, Paixão e Morte, Barcelos

"Cruz, Paixão e Morte", Conceição Sapateiro

Caldas da Rainha e Barcelos são duas cidades que têm em comum uma produção cerâmica tradicional de excepção. Infelizmente, a maioria das pessoas só pensa nos falos das Caldas (desculpem-me o pudor de dizer "falos" em vez de outra coisa) e nos galos de Barcelos. De Barcelos, contudo, tenho uma preferência especial pela sua arte sacra popular com aspecto caricatural. A religiosidade nortenha não se escandaliza, em nada, em representar os santos - e até Jesus Cristo - com orelhas de abano, olhos esbugalhados, ar invariantemente sorridente e proporções corporais copiadas aos bebés. Ceramistas como Rosa e Júlia Côta ou Conceição Sapateiro transformam o barro num arraial minhoto de cores e brilhos que ofuscam qualquer galo de Barcelos. De Conceição Sapateiro (autora de uma série de figuras alegóricas sobre os sete pecados capitais, de que ressalto a obscenidade recatada da luxúria - que pode ser apreciada no Museu de Cerâmica de Barcelos) é esta belíssima cruz exposta num nicho da fachada ocidental da Câmara Municipal de Barcelos, com a representação dos momentos chave da Paixão de Cristo. Apesar, contudo, da ressurreição coroar o conjunto, é interessante que o título da obra limita-se a numerar a ideia do sacrifício: "Cruz, Paixão e Morte".

Vale a pena ver a sério. Mas a Câmara já podia ter mandado alguém limpar o vidro que protege o nicho...
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publicado por Manuel Anastácio às 19:57
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Quinta-feira, 5 de Outubro de 2006
Kitsch I

Negativo de foto do lago do Bom Jesus, inspirado nas fotos "kitsch" da Helena

Sendo uma das palavras mais difíceis de definir e, mais ainda, de traduzir aproximadamente, o que é "kitsch", ao certo? Pedro Almodóvar é Kitsch. O Galo de Barcelos é Kitsch. Os restaurantes chineses (incluindo os que não fecharam depois das inspecções sanitárias) são Kitsch. O Bom Jesus de Braga é Kitsch. O seu lago, cheio de turistas a remar em barquinhos como se fossem carrinhos de choque é extremamente Kitsch, com as suas cercas de betão a imitar pequenos troncos de árvores. Uma foto de um local Kitsch não é, contudo, logicamente Kitsch. Desde que haja um pouco de presunção artística, o Kitsch torna-se Arte. Nisso, sou irredutível. Sem presunção, não há Arte. Mas há quem defina o Kitsch, exactamente, como um produto do mau gosto. Eu não concordo, em absoluto. O Kitsch é, antes, a interpretação colectiva que o grosso da sociedade faz da noção de beleza. É a estética das multidões, directamente influenciada pelo gosto das elites, do qual são apropriadas as características consideradas, de facto, belas. O operário que trabalha na construção de um palácio compreende como ninguém a estrutura banal do ambiente luxuoso; o espectador do São Carlos que espreita como pode os espectáculos de trás da coroa que cobre o grande brasão no fundo da sala, vê que, por detrás da talha dourada e  pormenores finamente esculpidos, há apenas toscos travejamentos de madeira (pelo menos é o que conta o Saramago nos seus Cadernos). Estes dois exemplos, que remetem para os sepulcros caiados - não serão os cemitérios o cúmulo de todo o Kitsch? - demonstram que, se formos a ver, pouco haverá no mundo que não seja Kitsch. A palavra Kitsch foi inventada pelas classes altas e adoptada por alguns artistas que necessitam dessas mesmas classes como de pão para a boca para designar toda a tentativa frustada (pelo menos a seus olhos) de fazer arte ou de praticar o "bom gosto", por parte das classes inferiores - ou seja, por parte das massas, de onde emergem os "novos ricos". Mas aqui, deparo com um dos problemas mais espinhosos: os novos ricos gostam do que é falsamente luxuoso (mármores fingidos, por exemplo)? Não! Antes pelo contrário! São os primeiros a exigir torneiras de ouro. Como sabem o que se esconde nos bastidores das salas de luxo, porque neles trabalharam, exigem, ao máximo, a integridade dos materiais (desde que essa integridade seja, de alguma forma, explícita - de nada vale ter torneiras de ouro, se os visitantes pensarem que é cromado amarelo). A não ser que, sabendo dos artifícios praticados desde  sempre pelos Grandes Senhores, prefiram facilitar as coisas...

O Kitsch não é mais, a meu ver, que a interface estética do fosso entre ricos e pobres. Posso estar enganado. Mas voltarei ao assunto.
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publicado por Manuel Anastácio às 15:23
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