Quinta-feira, 27 de Maio de 2010
Cristo no Monte das Oliveiras - Gérard de Nerval - "As Quimeras"

Deus está morto ! o céu está vazio...

Chorai ! crianças, que não tendes pai!

Jean-Paul

I
O Senhor, de magros braços em riste
Sob árvores sagradas, como os poetas,
Perdido, por longo, em dores secretas,
De confiar nos amigos desiste.

Dirige-se ao grupo que em baixo insiste
Sonhando serem reis, sábios, profetas,
Com almas apenas ao sono afectas,
A eles grita: “Não, Deus não existe!”

“Preferis ignorar a novidade?
Defrontei a cúpula: eternidade.
Aos dias, minhas chagas oficiam...”

“Enganei-vos! Ao abismo atirado
Falta Deus onde serei imolado:
Nem é nem será!”. Mas eles dormiam.

II
Recomeçou: “Fui pela láctea estrada
E tudo encontrei morto p´los seus mundos
Longe como a vida, em veios fecundos,
Ouro em pó indo em onda prateada.

Tudo é secura de ondas ladeada,
Confuso vórtice em oceanos fundos,
Um suspiro move astros vagabundos,
Não, porém, Espírito nesta morada.

Em vez do olhar de Deus, uma só órbita:
Vasta negrura onde a noite habita,
Escura dispersão que, adensando, assombra.

Em torno, um arco-íris em compasso
Devorando em espiral o tempo e o espaço
Para o velho Caos de que o Nada é sombra.”

III
“Destino imóvel, muda sentinela,
Fria Necessidade! Azar que arranca
P’lo deserto, que eterno gelo vela
O Todo em gradual algidez branca.

“Saberás o que a prima Causa anela,
Crerás que um sopro eterno se destranca
P’ra sóis defuntos em mútua querela,
Do que morre para o que novo arranca?...

“Meu Pai! És mesmo tu que sinto em mim?
Vencerás tu a morte para que eu viva
Ou cederás à final tentativa

“Do nocturno anátema querubim?...
Sinto-me só, em pranto e a sofrer,
Se morro é porque tudo irá morrer!”

IV
Sem gemidos, o eterno penitente
Abrindo em vão seu coração ao mundo;
Mas sucumbindo a cansaço profundo,
Ao único em Solima consciente:

"Judas! Do meu valor estás bem ciente:
Vende-me, não esperes mais um segundo.
Agonizo, amigo, e no chão me afundo...
Tu, ao menos, p'lo crime estás presente!"

Mas Judas, longe, ansioso e pensativo,
Manipulado, em remorso agressivo,
Lê nos muros seus negrumes gravados.

Por fim, Pilatos, de César vigia,
Em vaga piedade se alivia:
"Buscai o doido!", diz ele aos criados.

V
Ele, esse doido, sublime insensato,
Ícaro esquecido aos céus retornado,
Fáeton em divo raio olvidado,
Átis belo por Cibele de novo nato.

O áugure lê o flanco do maltrato,
Ébria a terra deste sangue adorado...
Universo nos eixos abalado,
Inferno, do Olimpo, inquilinato.

César, a Júpiter-Ámon invade:
"Que novo deus faz ora o seu império?
É talvez demónio, se não deidade..."

Pende a resposta na eternidade,
E só um pode explicar o mistério:
- Quem deu alma aos filhos da sujidade.

 

(Versão de Manuel Anastácio)

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publicado por Manuel Anastácio às 23:46
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Segunda-feira, 24 de Maio de 2010
Cristo no Monte das Oliveiras, de "As Quimeras" de Gérard de Nerval

Parte I

Parte II

Parte III

 


Não gemeu o eterno penitente
Abrindo em vão seu coração ao mundo;
Mas sucumbindo a cansaço profundo,
Ao único, em Solima,  consciente:

"Judas!  Do meu valor estás bem ciente:
Vende-me, não esperes mais um segundo.
Agonizo, amigo, e no chão me afundo...
Tu, ao menos, p'lo crime estás presente!"

Mas Judas, longe, ansioso e pensativo,
Manipulado, em remorso agressivo,
Lê nos muros seus negrumes gravados.

Por fim, Pilatos, de César vigia,
De vaga piedade se atavia:
"Buscai o doido!", diz ele aos criados.

 

 

(Versão de Manuel Anastácio)

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publicado por Manuel Anastácio às 23:52
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Domingo, 4 de Novembro de 2007
Cristo no Monte das Oliveiras III, de As Quimeras" de Gérard de Nerval

Nebulosa de Caranguejo


Parte I


Parte II

 

“Destino imóvel, muda sentinela,

Fria Necessidade! Azar que arranca

P’lo deserto, que eterno gelo vela

O Todo em gradual algidez branca.

 

“Saberás o que a prima Causa anela,

Crerás que um sopro eterno se destranca

P’ra sóis defuntos em mútua querela,

Do que morre para o que novo arranca?...

 

“Meu Pai! És mesmo tu que sinto em mim?

Vencerás tu a morte para que eu viva

Ou cederás à final tentativa

 

“Do nocturno anátema querubim?...

Sinto-me só, em pranto e a sofrer,

Se morro é porque tudo irá morrer!”

 

 

(Versão de Manuel Anastácio)

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publicado por Manuel Anastácio às 19:37
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Quarta-feira, 2 de Agosto de 2006
Cristo no Monte das Oliveiras II, de "As Quimeras" de Gérard de Nerval


"Cristo no Monte das Oliveiras" - Paul Delaroche (1797-1856)

II

Recomeçou: “Fui pela láctea estrada

E tudo encontrei morto p´los seus mundos

Longe como a vida, em veios fecundos,

Ouro em pó indo em onda prateada.

 

Tudo é secura de ondas ladeada,

Confuso vórtice em oceanos fundos,

Um suspiro move astros vagabundos,

Porém, não há Espírito nesta morada.

 

Em vez do olhar de Deus, uma só órbita:

Vasta negrura onde a noite habita,

Escura dispersão que, adensando, assombra.

 

Em torno, um arco-íris em compasso

Devorando em espiral o tempo e o espaço

Para o velho Caos de que o Nada é sombra.”


(Versão de Manuel Anastácio)

Nota: Quando me lembo de alguns defensores do ocultismo obscuro de autores tão anódinos como
Helena Petrovna Blavatsky, que supostamente teria "antevisto" fenómenos que a Ciência só posteriormente viria a descrever, mais esta parte do poema de Cristo no Monte das Oliveiras me parece investido de verdadeira profecia. Porque, ao contrário de Blavatsky, Nerval faz algo mais que descrever cosmogonias ou escatologias, mas, a partir do vazio, cria o mundo no seu todo. Incluindo buracos negros.

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publicado por Manuel Anastácio às 22:49
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Terça-feira, 1 de Agosto de 2006
Cristo no Monte das Oliveiras I, de "As Quimeras" de Gérard de Nerval


Jesus no Monte das Oliveiras, fresco de Jacopo Pontormo (1494 - 1557),
na Cartuxa de Galluzzo (Florença)

I

O Senhor, de magros braços em riste

Sob árvores sagradas, como os poetas,

Perdido, por longo, em dores secretas,

Da confiança nos amigos desiste.

 

Dirige-se ao grupo que em baixo insiste

Sonhando serem reis, sábios, profetas,

Com as almas apenas ao sono afectas,

A eles grita: “Não, Deus não existe!”

 

“Preferis ignorar a novidade?

Defrontei o arco da eternidade.

Aos dias, minhas chagas oficiam...”

 

“Enganei-vos! Ao abismo atirado

Falta Deus onde serei imolado:

Nem é nem será!”. Mas eles dormiam.

(Versão de Manuel Anastácio)

Ver parte II deste poema

(Volto, assim, às Quimeras de Gèrard de Nerval, para pesar dos leitores que pensam que a poesia deve ser ministrada a conta-gotas, para que não perca o impacte. Se assim fosse, também a música deveria racionada, penso eu, claro...)

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publicado por Manuel Anastácio às 23:33
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