Sábado, 3 de Dezembro de 2011
Fausto I
Começa por F como o fado. Mas não canta fado, pelo menos que eu saiba. Até porque Fausto, o do imaginário pensado e parafraseado por Goethe, tal como este, não se conformou com a limitada existência que as normas lhe ofereciam, vendeu a alma ao diabo e soube, depois, ficar com o melhor de dois mundos. Fausto, acendendo uma vela ao inimigo e voltando como filho pródigo ao redil de deus, é a personificação da tese, da antítese e da síntese num contexto teológico. Volta a deus, enriquecido pela experiência de ter convivido com diabo. O nosso Fausto, que eu saiba, não é dado a religiões. É dado a ideologias, e isso hoje cai mal a certos estômagos. A palavra ideologia vive hoje num recanto algo empoeirado e confunde-se com doutrina. E quem defende doutrinas vem pregar contra as ideologias como se fossem algemas. Noto isso em muita gente de bem. Muita gente de bem prefere o martírio por deus ao martírio pelos homens. E compreende-se. A ideia de deus é mais reconfortante. Os seres humanos são bichos pouco simpáticos e de carne indigesta, ao contrário do corpo de deus, dado à transubstanciação de todos os desejos. As ideologias deveriam trazer em si as sementes da sua própria transformação, deveriam ser críticas como Fausto, vender-se ao diabo como Fausto mas, depois, recusarem-se a pagar a dívida como fez Fausto, e fez muito bem. As doutrinas essas, são quistos. E por vezes infetam. O nosso Fausto é um artista de longa data e, na sua discografia, há de tudo. Por vezes, as suas canções estão tingidas pela cor datada de uma época. É com pena que reconheço que algumas das suas canções mais políticas já não convencem ninguém, por maiores que sejam as verdades que vomitam. Trazem consigo o cheiro de uma época, e o cheiro, na arte, nem sempre é o dos lilazes, das tílias em flor ou dos limoeiros, por vezes é também do sangue, do suor, do vómito e das fezes prematuramente despejadas sob o efeito de laxantes chamados medo, miséria, cólera, dor e fome. E em Fausto, tanto temos o cheiro das pitangas saborosas como da escassa sardinha sobre a broa rústica. Por vezes, o seu estilo musical faz certos desvios por sonoridades que custam hoje a ouvir, ainda que a poesia seja sempre de um depurado lirismo não sujeito a regras. Um exemplo central desta evolução é aquela peça, tão exótica quanto a realidade que evoca, do "era no tempo dos tamarinos": o coro feminino é simplesmente intragável, ainda que a música em si não seja má, e a letra, fértil em imagens nostágicas, seja das mais líricas e das menos dadas ao panfletarismo político, ainda que já lá esteja tudo, nos gestos e ademanes de uma era colonial dona de uma ordem de respeitinho e perfumes de hipocrisia. Quando o Silvério Salgueiro me pediu para comentar Fausto tive de ouvir a sua extensa discografia para poder dizer alguma coisa que não fosse apenas as generalidades que se poderiam dizer da música chamada de intervenção com raiz na verdadeira música popular portuguesa, mas confesso que quanto mais ouço, menos consigo estabelecer uma descrição. Cada canção é um passo para um diálogo, como se ao nosso lado se sentasse o povo com palavras de ordem que por vezes não compreende porque, da mesma maneira que sente com o pulmão esquerdo, se insensibiliza com o pulmão da direita. Há sopros de tuberculose em cada movimento respiratório da nossa gente. Posso pegar numa das música mais políticas e mais panfletárias de Fausto. "Uns vão bem e outros mal". O convite é feito: Senhoras e meus senhores, façam roda por favor. O ritmo, de pura dança de arraial, acompanha um poema de uma perfeição invejável tendo em conta que não se esconde em metáforas nem noutros subterfúgios com que os poetas enganam a sua dificuldade em se exprimir. Limita-se a usar a clássica cassete comunista que de tanto ser ouvida perdeu significado para quem apenas balança a cabeça ao som da música. Avante: aqui não há desamores, se é tudo trabalhador o baile vai começar. Se é tudo trabalhador. Repare-se na condição: se é tudo trabalhador. Só para que conste, que há quem julgue que nestas ideologias o que se defende é a preguiça. Que a esquerda é pelos feriados e pelos subsídios. Ora batam certos os pézinhos, como bate este tambor. Não queremos cá opressores, pois não, se estivermos bem juntinhos, vai-se embora o mandador. Novamente o condicional se. Se estivermos bem juntinhos. Coisa utópica, que isso de dançarmos juntinhos só conta mesmo para a dança, não para a contradança. É que eu não quero o que tu queres, que eu sou doutra condição. Está cá tudo, afinal: juntinhos não. Mas a verdade, venha em cassete, venha em panfleto, não deixa de ser verdade, mesmo que contra tudo haja argumentos (ao contrário do que é dito num bem sucedido momento de propaganda estatal ao cargo de uma senhora que tinha em melhor conta, chamada Alberta Marques Fernandes, mas a culpa não é dela, que ela, como os outros, faz o trabalho que lhe encomendam e não estamos em tempo de recusar trabalho, mesmo que seja a abrir a cova onde nos hão de enterrar). Segue a canção dizendo, em puro jeito didático, que "De velhas casas vazias, palácios abandonados, os pobres fizeram lares, mas agora todos os dias, os polícias bem armados desocupam os andares". Há nesta frase alguns equívocos para quem a ouça. As pessoas preferem polícias bem armados, até porque se os criminosos andam armados, a polícia não pode andar de mãos a abanar. A questão é espinhosa, até porque custa a distinguir entre criminosos e pobres ocupantes de palácios abandonados. Mas a propriedade é mais importante que a vida, por isso, o povo dança e vai caindo como folhas secas. Para que servem essas casas, a não ser para o senhorio viver da especulação? Pergunta o cantor e falha a intervenção. Aqui falha, porque o povo não sabe o que é isso da especulação, e a informação que é dada, isto é, de que os palácios abandonados afinal servem para alguma coisa, acaba por legitimar a intervenção da polícia bem armada que, afinal, está apenas a proteger o ganha-pão dos ricos que, como sabemos, são ricos por alguma razão. É difícil explicar estas coisas de que a propriedade nem sempre é fruto do trabalho. Ou melhor: que nunca é fruto do trabalho. Vá-se lá explicar que os ricos são ricos não porque possuem ou criem riqueza mas porque possuem dívidas e calotes que fazem render. Não. É mais fácil explicar ao povo as medidas de austeridade. É preciso explicar, explicar, explicar tudo para que ninguém saiba nada e tudo aceite. Quem governa faz tábua rasa, mas lamenta com fastio a crise... Está tudo aqui. O Fausto diz tudo. Mas o povo português não o merece. O povo português não merece um fado numa taberna rasca. Eu não quero o que tu queres, que eu sou doutra condição. Eu sou doutra condição. Não sou gente, não sou nada. Sou vómito, folha apodrecida à beira da estrada. Cágado de pernas viradas. Bago de uva esmagada. Gota de vinho que não sabe a nada.</p>
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publicado por Manuel Anastácio às 15:00
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L

"O fado é talvez a mais significativa forma de expressão artística em Portugal (...) e aquela que melhor define a alma do nosso povo”,  afirmou o nosso chefe de Estado, sua excelência Aníbal Cavaco Silva. É verdade, até a pessoa mais bacoca e insensível, como é o caso do nosso presidente é capaz de dizer coisas acertadas. O Fado é a expressão artística que melhor define a alma portuguesa. Um enorme lamento uivado e resignado.

Cavaco Silva lembrou os tempos em que o fado não era ainda “reconhecido e estimado” pelos portugueses: “Tempos houve em que o fado era apenas associado a uma vida boémia que continha em si retratos de uma Lisboa pouco recomendável”. Tempos em que o fado continha em si germes de revolta, e por isso tão pouco recomendável para o nosso presidente, ou tempos em que o fado era apenas uma forma autocomplacente das classes miseráveis transformarem em beleza a exordície em que viviam? Fica a questão.  Assim, ao longo de décadas, acrescentou, o fado “resistiu às modas e ao tempo”. Apesar de não ser verdade. O próprio presidente o afirma antes, ao recordar a origem boémia e pouco recomendável do fado, para não falar de todas as renovações que os grandes nomes do estilo sempre foram acrescentando, seja o Alfredo, a Amália, a Maria Teresa e que continua, com diferentes roupagens, hoje em dia. Mas o conservadorismo do senhor presidente faz-lhe ver resistências ao tempo em tudo. Só é pena que não a veja num pacote de leite azedo. Continua o senhor presidente a sua preleção dizendo que nas décadas de 70 e 80, o público acabou por se afastar um pouco do fado “por razões mais ou menos ideológicas”. A ideologia não deveria interferir com qualquer forma de expressão artística, como penso que é óbvio, mas é provável que não fosse a ideologia a afastar o fado mas o fado que, ao transmitir geneticamente uma ideologia de resignação, não soubesse lá muito bem, no seu travo rançoso, aos palatos de quem bebia pela primeira vez o néctar inebriante da liberdade. Inebriante porque deu em ressaca. E com a ressaca voltou o gosto pela choraminguice uivada. “Felizmente, os tempos de hoje são bem diferentes", diz o presidente. E diz muito bem, felizmente para ele e para todos os que espezinham a gentalha pouco recomendável mas devidamente resignada e grata pelos açoites que leva nos lombos. “Lembra-nos sobretudo que a crise não se vence apenas com a economia, vence-se também com a cultura, criatividade e alma”. Nesta frase outras questões se levantam: a crise vence-se? O presidente quer vencer a crise? Defina crise. Crise para quem? Criatividade? Criatividade de quem? Alma? Alma de quê? O senhor presidente não saberá que a alma foi sempre coisa negada aos escravos? Os escravos são objetos manipuláveis de acordo com os interesses dos seus amos. Não precisam de alma para nada... Ou talvez não. A existência da alma, imortal, sff, é a única esperança de quem é transformado em mero resíduo ou excremento de uma sociedade que prega moral enquanto semeia a imoralidade, que vangloria a arte e a criatividade e instaura a censura através da pauperização mental das massas.

 

Em termos musicais, a existência de estilos musicais é coisa que a mim pouco interessa. A música é boa ou é má. Se é fado ou não é fado, tanto me faz - reconheço a qualidade artística e poética de uma peça musical independentemente dos valores mais progressistas ou mais retrógrados que o vulgo associa a cada estilo ou género. Mas calha bem ver o Fado reconhecido como Património Mundial nos dias que correm, em que os salazares se multiplicam em cada esquina. Agora, só falta canonizar os pastorinhos, e teremos a díade da resignação e do sacrifício estúpido a guiar os passos da felicidade choramingona que, dizem eles, e muito bem, nos define. Enquanto vamos à bola, claro.

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publicado por Manuel Anastácio às 10:11
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Sábado, 12 de Março de 2011
Como vais?

 

Michel Gondry tem neste vídeo das Living Sisters uma atitude poética nihilista que funciona bem com o dia de hoje. Chove e há meninos mimados na rua que não querem sujar as mãos com política, mas que querem ser tratados como bebés que são.

 

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publicado por Manuel Anastácio às 12:27
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Sábado, 5 de Fevereiro de 2011
Multiculturalismo

David Cameron, segundo o Público, "denuncia" o fracasso de décadas de multiculturalismo. Por partes: o verbo denunciar é usado com fins políticos e pressente-se a concordância entre o responsável pelo título e a "denúncia" efectuada. Só denunciamos o que é mau. E se David Cameron denunciou o multiculturalismo, então o multiculturalismo é uma coisa má. O pior, neste caso, é que David Cameron usou mal a palavra multiculturalismo, não da mesma forma que a coisa deplorável chamada Merkel também usou, há tempos atrás, quando disse estas palavras: "a perspectiva de que poderíamos construir uma sociedade multicultural, vivendo lado a lado e gozando da companhia uns dos outros, falhou. Falhou completamente". David Cameron chama multiculturalismo à prática de aceitar a diferença sem a integrar no país de acolhimento. Esse é, de facto, um problema e resulta da xenofobia de quem entra e de quem vê entrar. E Cameron acerta ao dizer que o Estado só pode apoiar organizações que prossigam os princípios sustentados na Carta dos Direitos Humanos. O Estado não deve apoiar organizações que discriminem as mulheres, por exemplo. Isso é puro bom senso. O discurso de Cameron não é, à partida, racista, ao contrário do discurso de Merkel. Mas basta ver a caixa de comentários desta notícia para ver como a cultura do ler por alto ajuda a alimentar o racismo e a xenofobia. As pessoas aplaudem, pensando que Cameron defendeu a expulsão daqueles que são diferentes - e Cameron, talvez já esperando a vaga de apoio (sem que se possa dizer que tenha sido racista), aproveitará, então, para, em nome do Estado, esquecer os princípios da Carta dos Direitos Humanos e tratar aqueles que são diferentes como seres não classificáveis como humanos. As pessoas... Talvez Merkel tenha razão. Não podemos, simplesmente, viver ao lado uns dos outros. O ser humano é apenas um bicho estúpido e tonto destinado à breve e inexorável extinção. Não por razões externas, como no caso dos dinossauros, mas devido ao desejo endógeno da sua própria destruição. O suicídio, comportamento até agora individual, é já a manifestação biológica a distinguir a nossa espécie das outras. Envergonho-me da espécie a que pertenço.

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publicado por Manuel Anastácio às 15:36
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Domingo, 23 de Janeiro de 2011
Sadomasoquismo

O meu primo Batata deve estar orgulhoso. O graffiti revelho do armazém do Adelino mantém-se actual. As pessoas continuam a votar Cavco. É bonito. É uma relação de amor.

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publicado por Manuel Anastácio às 20:06
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