Manguais. Museu Municipal de Oliveira de Frades. Foto minha em Creative Commons
Amarga-me o sabor da hipocrisia disfarçada em diplomacia. Sou pelos ministros que fazem chifres. Enquanto os fazem, sabemos que neles existe sangue e fogo e não apenas uma enorme boca de fantoche por onde espreitam os vermes da corrupção. Eu sou pelos que destilam a raiva em baba, desde que nela não afoguem ninguém. Sou pelos que gritam e que se inflamam e defendem aquilo em que acreditam como se fossem loucos varridos. Não sou pelos que, mantendo a pose marcial e a paz olímpica do rosto, sopram o fogo sob o corpo subjugado e atado ao pelourinho daqueles que se atrevem a ser e os expõem como troféus do seu poder. A agressividade existe no ser humano de forma natural; arde nele como a própria vida. A cada um cabe transformar os gestos de violência em palavras e em formas, mas jamais calá-los em sorrisos de chumbo. Não é pelas palavras, nem pelo tom, nem pela cor da face, nem pelo fogo insano dos olhos que seremos julgados quando postos frente a nós mesmos, mas pelos actos e intenções (sim, também essas contam, embora digam que o Inferno delas está cheio). Não gosto de pazes podres. Sinto-me como um fogo-fátuo, inflamado e horroroso, pairando sobre a branca desaprovação das lápides, nascido embora da mesma sensata e correcta podridão. Mas o dia nasce, o sol levanta-se, e com ele empalideço. E, lentamente, me apago.
Excerto de "Sonata de Outono", de Ingmar Bergman.
Quando era pequeno (e ainda sou pequeno) desenvolvi a teoria de que as pessoas choravam para que o mundo aparecesse desfocado. Enquanto chorava, as lágrimas transformavam a realidade cúbica do mundo numa confusão de círculos de luz. E isso era belo. Era o mundo desfigurado onde preferia viver. As linhas rectas pertenciam à estrutura de toscos do edifício onde tinha nascido. Um mundo de sarrafos sujos e onde tudo tinha a utilidade sórdida da economia que não me permitia simplesmente ficar a ler à sombra dos pinheiros que agora já não existem, substituídos que foram pelos eucaliptos que tomaram conta da paisagem da minha infância. No saco onde levava a bucha para os dias de trabalho, levava sempre um livro. Sujo de cimento, li Saramago e Homero. Sujo de cimento, não podia ver os filmes da época áurea do cinema que passavam à tarde na televisão pública e que, ainda assim, e afortunadamente, conseguia gravar num VHS (que ainda funciona), usando o temporizador. Por vezes, os filmes ficavam incompletos. E, por um minuto que faltasse, não os via. Tinha de os ver desde o primeiro ao último fotograma. Quando chorava, o mundo era belo. Os meus olhos tornavam-se câmaras que distorciam a dor de viver e a transformavam na suportável experiência de assistir à dor. O cinema era uma forma de chorar através dos olhos dos outros. De manhã, entre as escoras das cofragens que me cabia a mim desmontar e transformar em pilhas de madeira ordenada e limpa de pregos, imaginava planos que captassem a beleza dos pingentes de argamassa que se formavam entre as juntas das tábuas e a beleza das escoras, primeiro de troncos de eucalipto jovem, mais tarde de extensores de metal, que se iam sobrepondo, tapando e revelando como colunas de uma fria arquitectura imitando grades, em profundidade, frente ao céu rosa das manhãs que se estendiam sobre os baldios à espera de mais construções à moda ortogonal da Maison-Domino de um Le Corbusier que eu desconhecia, quando já discorria, no silêncio do meu cérebro rejeitado, sobre Aristófanes e John Ford. Nessa altura, não gostava de arquitectura. Era a arte perversa de me roubar a infância.
Quando era pequeno (e ainda sou pequeno) chorava todos os dias. Era a minha forma de escrever o mundo.
"Fairytale" ("Shrek"), música de Harry Gregson-Williams, interpretada por Joseph M. Rozell.
A escrita para crianças deve focar, a nível da sua construção narrativa, as questões mais difíceis de entender ou de explicar por parte dos adultos. E deve fazer isso usando imagens que, por vezes, são particularmente cruéis, outras vezes oniricamente falsas e, muitas vezes assentes nos mais básicos estereótipos que, aqui, servem de símbolos a que não se deve retirar a sua força, a pretexto de não querer traumatizar os meninos. De nada nos serve querermos inculcar nas crianças mais jovens valores de tolerância relativista. O quadro mental inicial de uma criança é puramente maniqueísta e resume-se ao que é bom e ao que é mau. A pedagogia que subjaz, contudo, à maioria dos textos recentes para crianças aponta exactamente para o arredondar das arestas cortantes dos contos de antigamente. Para a proteção de um suposto mundo imaculado onde vive a criança. Isso é mau. Nascemos geneticamente preparados para enfentarmos a violência da nossa condição animal e humana, até porque nascemos já capazes das maiores violências sobre os outros, e é a educação que, gradualmente nos vai inserindo num pacto social de concórdia e tolerância. Não defendo, é certo, a violência como meio educativo (reguadas, vergastadas e bater com o cinto) - mas é um facto que a criança exige resoluções violentas para as suas angústias. A madrasta má deve sofrer de um fim mais sádico que aquele que a justiça deveria reclamar. Eram assim as histórias originais dos Irmãos Grimm. Hoje, a Gata Borralheira, mui cristãmente, perdoa à madrasta. Isso estará correto, com certeza, do ponto de vista de um adulto ou de uma criança já a caminho da pré-adolescência, mas é um erro que, por extensão, se julgue que também deve ser assim para quem o mundo é apenas uma sucessão de situações fantasmagóricas. É nesta fase que se deve apelar aos conceitos de bem e mal. É aqui que radicam todos os valores que a criança mais tarde desenvolverá. Usando a nomenclatura de Kieran Egan, ao modo somático de entender as coisas (dá prazer / dá dor) segue-se esta fase, o modo mítico de compreensão do Universo. Só depois se entra progressivamente na compreensão da realidade como coisa complexa, com os estádios romântico (em que se apreende a diversidade), filosófico e, finalmente, irónico (estádio a que já chegou a Manuela Ferreira Leite, mas não o comum dos portugueses). Como na velhinha teoria da recapitulação, que postulava que o embrião passava por todas as formas biológicas da sua árvore filogenética, e que sendo uma teoria refutada não deixa de ser útil para o nosso entendimento, também Egan postula que as nossas necessidades educativas passam por estádios que correspondem à evolução histórica da humanidade ou, pelo menos, da história das suas ideias (sempre no sentido da compreensão da complexidade dos fenómenos humanos). Ora, isso coloca alguns problemas interessantes: é lícito continuar a dizer que o mau era o lobo? Ou que o mau era muito feio, e que a bruxa tinha uma verruga no nariz? Ou que as personagens boazinhas são sempre bonitas? A minha opinião é: não, não é necessário, no caso das características dos seres humanos que não se prendem diretamente à sua bondade ou à sua maldade. Nestes casos é conveniente escreverem-se histórias em que os bons sejam feios (o caso do Shrek, no cinema, é um exemplo muito louvável, nesse sentido) ou em que as madrastas sejam boas ou, mesmo, que as madrinhas sejam más. O que importa, no que ao ser humano diz respeito, sempre, é a dicotomia bem / mal. Mas será sempre necessário apelar ao simbolismo dos elementos narrativos que devem ser facilmente reconhecidos como bons ou maus. É aqui que a fábula aparece como excelente meio de compromisso entre as necessidades de compreensão da criança e os pruridos do politicamente correto. O lobo pode perfeitamente ser exemplo de crueldade. Os valores ecológicos de preservação da biodiversidade não serão postos em causa pelo seu papel simbólico. Basta que as crianças não terminem a sua evolução no estádio mítico. Infelizmente, muitas terminam. E algumas até chegam a lugares cimeiros da administração pública.
Pútegas, imagem do Wikimedia Commons
Há coisas que se aprendem na escola, mas que são falsas. Quase todas as generalidades que dizemos sobre a vida são, num dado momento, falsas. Aprendemos que as plantas são seres autotróficos, isto é, que produzem o seu próprio alimento. Ora, se isso é verdade para a grande maioria, não faltam por aí plantas heterotróficas que, tal como os animais, se alimentam da seiva elaborada pelas suas irmãs providas de clorofila. É o caso das Orobanchaceae, e em especial desta extraordinária Orobanche sanguinea.
As pútegas (Cytinus hypocistis), raro nome, formam outro interessante género de plantas, da família das raflesiáceas, parasitas das estevas (género Cistus), plantas que invariavelmente enchem a paisagem mental da minha infância e que são de todo ausentes aqui no Norte húmido de Portugal.
São plantas pequenas, amarelo-avermelhadas, de caules muito curtos, com
folhas escamiformes, densamente imbricadas. São monóicas, ou seja, têm flores hermafroditas. Vivem a maior parte do tempo enterradas, aflorando, junto às raízes das estevas de que se alimentam, apenas para florescer. As folhas, carnudas, são comestíveis, mas era o néctar doce das flores que punha as crianças à sua procura. Entre os seis quilómetros que separavam a escola do Sardoal e o perímetro da minha aldeia, quando não tínhamos paciência para esperar pelo autocarro, era frequente ir, com os meus colegas, às pútegas. E ríamos com a piada fácil. Mas eu raramente as encontrava. Entre o xisto e as resinas dos pinheiros e das estevas, entre o Vale da Amarela e o Vale de Carvalho, hoje calvas cabeças roídas pelo fogo, apenas encontrava a inocência de quem não sabia que aquele mundo estava a acabar.