Portugal, o país, nasceu de um puro desejo de poder. Não houve nele desígnios divinos ou um papel predestinado na história da Humanidade. Um rapaz quis ser rei, ou chefe de um bando de gente com força suficiente para se demarcar de outros com o mesmo desejo de dominação, e para isso lutou, matou, roubou. Impôs-se com a sua força e teve a sorte de os outros, por razões diversas, não terem conseguido impedi-lo de alcançar uma independência que não era mais que uma divisão entre senhores, em que o povo não foi tido nem achado. Depois, as lendas foram criando um sentimento de unidade. De Conquistador, Afonso Henriques passou a Libertador, coisa que nunca foi a não ser, talvez, de si mesmo, se descontarmos a ajuda que deu à libertação de alguns senhores do Norte, a um bispo e a algumas comunidades monásticas. Os primeiros a morrer nas batalhas que fundaram este país não lutavam por essa idealização tribal que é a Pátria, morreram porque a isso foram coagidos pela força ou porque tentaram a sua sorte. Mais tarde, sob a bandeira de uma propaganda política sustentada em histórias da carochinha, onde não faltaram milagres e aparições, a ideia de Pátria nasceu. Morrer como português, isto é, como cãozinho fiel a um dono imposto pela ordem da força e da mentira disfarçada de religião, passou a ser uma questão de honra, um livre trânsito para o panteão dos trouxas.
Talvez não seja assim tão simples. Nestas questões, os fautores da mentira são os primeiros a acreditar nela. Daí não faltarem nobres paspalhos elevados a heróis de um valor tão alto como as ilusões de glória e grandeza. Mera vaidade. Morte, apenas. Uma Pátria é um monte de ossos. Por respeito a essa vala de enganos e vidas desperdiçadas, em vez de missas, lápides e monumentos de bronze podia, ainda assim florescer a vida, o riso, a beleza compartilhada. Isso seria uma Pátria, e estaria disposto a morrer por ela. Por uma questão de amor.
Montserrat Cabalé canta "Casta Diva", da "Norma" de Bellini, no Festival de Orange, em 1974
Não sei se é verdade, mas li que se chamam de sobreiras aos sobreiros virgens. Virgens por jamais terem dado cortiça às ferramentas cortantes dos homens. Tal passagem de género tem implícita a ideia de que a virgindade é um valor meramente feminino, o que está, aliás, de acordo com as histórias das meninas que o fazem render em leilões na Internet. Li também, de alguém, que a terra mãe está esfaqueada por rios, córregos e ribeiras. Não é virgem, portanto. Nem poderia ser de outro modo, senão, não poderia ser mãe. A não ser que a sua maternidade fosse protegida por algum dogma kitsch que pintasse de branco o verde do limo e arrasasse os desníveis da erosão diferencial que contorna os montes e desenha meandros. A virgindade é uma dada concepção do que é inteiro. Tudo o que é rasgado ou sulcado perde a virgindade. A lua, casta diva, perdeu-a com a primeira pegada do homem no seu solo. Mas, ainda nem as vestais a ela se rendiam em lésbicos mas platónicos desejos, e já o seu véu de gaze prateado se manchava de crateras abertas por másculos meteoritos que manchariam de sombras de pecado a superfície em que o sol se espelha. Porque o que não é inteiro e virgem passa a ter mancha. Sinal de vergonha. Leio que os pais de uma menina de oito anos, violada por um grupo de pré-adolescentes se recusaram a recebê-la de novo debaixo do seu sacro e imaculado tecto familiar. E penso que há cabeças e corações assim. Virgens, imaculados, inteiros e bravios, onde jamais um rasgão de água, doce ou salgada, ou gota que seja de sangue escorrendo de facada deixou um sulco que seja de vergonha na cara.
"Click, Click, Click, Click", dos Bishop Allen. Ontem, no Palácio Vila Flor, em Guimarães, para um público escasso (ai se fosse um jogo do Vitória...) e com meia dúzia de infiltrados sem categoria.
Foi já em 2006 ou coisa que o valha, em Israel. Várias meninas de corpinho perfeito e olhos de anjo eram entrevistadas para que dissessem que eram a favor da Paz Mundial e, já agora, que eram vegetarianas. Uma das meninas disse, provavelmente influenciada por alguém que conhece os tiques do meio, que o era. Vegetariana. A entrevistadora perguntou-lhe, mais coisa menos coisa, e cheia de graça, que, provavelmente, ela sentia-se comovida ao olhar para os olhos meigos de uma vaca (e não há aqui qualquer ironia: não há olhar mais meigo que o de uma vaca) e, por isso, seria incapaz de comer um bife. A menina assentiu. Jamais tocaria num bife. E então, se não comia bifes, comia o quê? A menina respondeu: frango. Ah, então não és vegetariana, concluiu a entrevistadora fazendo um perfeito raciocínio lógico, se partindo da sua categorização dos seres. A menina disse que não, que era vegetariana sim, jamais comeria o quer que fosse que viesse do corpinho de um animal. A entrevistadora, boquiaberta, arriscando-se a comer um mosquito, perguntou-lhe qual a diferença entre uma galinha e uma vaca. A menina, cheia da sua sabedoria biológica, respondeu, fazendo um ar de desconsolo perante a estupidez dos outros, que uma galinha era uma ave (talvez tenha dito pássaro, não sei, não sei falar hebreu e se todos os tradutores forem como eu, muita coisa se perde ou acrescenta no processo) e que uma vaca era um animal. Claro que a frase, bombástica, caiu sobre israel de várias formas. Houve quem dissesse que era um belo sinal da degenerescência judia. Um petisco para antissemitas, esses que dizem que um judeu é um judeu e um homem é um homem, o que está bem em qualquer categorização, mas que, implicando algumas deturpações de ordem lógica e a intromissão de pressupostos discutíveis, para não dizer inaceitáveis, legitima a estupidez em regime político capaz de ensombrecer todo um século.
A estupidez é, contudo, e essencialmente, um problema de categorização. De taxonomia ética, moral, mas também científica. Quem nega as categorias da Ciência procura as suas próprias categorias. E se lhe der jeito que as aves constituam um Reino biológico próprio, inventa-se o novo Reino. Há quem julgue que, na educação, hoje em dia, com toda a catrafada de informação que existe, não é preciso que as crianças conheçam pormenores sobre as diferenças entre um inseto e uma aranha ou entre o traje de um nobre romano ou o hábito de um frade mendicante. Acredita-se que basta ensinar a aprender (como se isso não se fizesse de uma só maneira: aprendendo). Acredita-se que basta educar civicamente, para não termos terroristas e bombistas suicidas no futuro. Eu acredito, contudo, que isso só se consegue centrando o ensino, não no aluno (ai o que eu fui dizer) mas no conhecimento e, em primeiro lugar, na categorização das coisas. É preciso dizer: isto, em primeiro lugar, é um homem: seja ele israelita, palestiniano, negro, amarelo, cor-de-rosa, mendigo, ladrão, empresário, santo, herói, passador de droga... E, depois, ir baixando às categorias menores sem deixar de passar pelas que suscitam dúvidas na sua menoridade, onde deve reinar a tolerância no julgamento. Eu acredito, também, que toda a gente devia esclarecer, bem, qual a categorização que rege o seu pensamento. Se um político falar dos portugueses, deve esclarecer bem quem são, a seu ver, os portugueses. Hoje, contudo, os estúpidos grassam na política, não porque digam coisas erradas, mas porque partem de categorias erradas. Entre eles e a modelo pseudovegetariana há apenas a diferença de que, ao contrário desta, estes não definem (porque no fundo, sabem a estupidez em que assenta o seu edifício moral) as categorias com que escrevem os seus interesses.
Excerto de "Sonata de Outono", de Ingmar Bergman.
Quando era pequeno (e ainda sou pequeno) desenvolvi a teoria de que as pessoas choravam para que o mundo aparecesse desfocado. Enquanto chorava, as lágrimas transformavam a realidade cúbica do mundo numa confusão de círculos de luz. E isso era belo. Era o mundo desfigurado onde preferia viver. As linhas rectas pertenciam à estrutura de toscos do edifício onde tinha nascido. Um mundo de sarrafos sujos e onde tudo tinha a utilidade sórdida da economia que não me permitia simplesmente ficar a ler à sombra dos pinheiros que agora já não existem, substituídos que foram pelos eucaliptos que tomaram conta da paisagem da minha infância. No saco onde levava a bucha para os dias de trabalho, levava sempre um livro. Sujo de cimento, li Saramago e Homero. Sujo de cimento, não podia ver os filmes da época áurea do cinema que passavam à tarde na televisão pública e que, ainda assim, e afortunadamente, conseguia gravar num VHS (que ainda funciona), usando o temporizador. Por vezes, os filmes ficavam incompletos. E, por um minuto que faltasse, não os via. Tinha de os ver desde o primeiro ao último fotograma. Quando chorava, o mundo era belo. Os meus olhos tornavam-se câmaras que distorciam a dor de viver e a transformavam na suportável experiência de assistir à dor. O cinema era uma forma de chorar através dos olhos dos outros. De manhã, entre as escoras das cofragens que me cabia a mim desmontar e transformar em pilhas de madeira ordenada e limpa de pregos, imaginava planos que captassem a beleza dos pingentes de argamassa que se formavam entre as juntas das tábuas e a beleza das escoras, primeiro de troncos de eucalipto jovem, mais tarde de extensores de metal, que se iam sobrepondo, tapando e revelando como colunas de uma fria arquitectura imitando grades, em profundidade, frente ao céu rosa das manhãs que se estendiam sobre os baldios à espera de mais construções à moda ortogonal da Maison-Domino de um Le Corbusier que eu desconhecia, quando já discorria, no silêncio do meu cérebro rejeitado, sobre Aristófanes e John Ford. Nessa altura, não gostava de arquitectura. Era a arte perversa de me roubar a infância.
Quando era pequeno (e ainda sou pequeno) chorava todos os dias. Era a minha forma de escrever o mundo.
Casablanca, de Michael Curtiz: o Inferno e o Hoje de mãos dadas (se não der para ver, ir aqui).
Depois de ter apresentado as minhas intenções de subverter o texto bíblico segundo as minhas palavras, a Maria Helena deixou-me um belo comentário a respeito das inquietações teológicas que me assaltavam quanto às palavras de Cristo ao chamado vulgarmente "Bom Ladrão", que eu quis chamar de "malfeitor arrependido", e que me fez passar um vergonha no 5.º ano quando eu me referi a ele, numa aula de Religião e Moral, como o Ladrão Bom. Enfim. Cheguei à conclusão que... não cheguei à conclusão, de facto: retornei à minha própria conclusão, que já direi qual é.
Conhecem aquelas senhoras que dizem que na outra vida foram, invariavelmente, a Cleópatra? Os homens costumam preferir Napoleão - não sei por que razão... Interessante que ninguém se aventura a ter sido Casanova... Pois, eu, fui, de certeza absoluta, Santo Agostinho. Quando li as "Confissões" confesso que tive vontade de ouvir alguma voz divina a dizer para ler as instruções a seguir num livro aberto ao acaso. Mas os milagres estão pela hora da morte, mesmo quando se trata de uma corriqueira revelação pessoal e íntima. Num mundo tecnologicamente1 avançado como o nosso, onde o virtual supera em riqueza de emoções orgânicas o mundo real, as revelações divinas são um simples charro sem grandes consequências. Pois, se tive alguma revelação com Santo Agostinho, que li lentamente, entre as terras do Alandroal, Carvalhal e Praia da Conceição (alguns grãos de areia rica em iodo o poderão confirmar entre as páginas do livro que tenho em casa), foi a revelação de alguém tão fraco como eu, tão pouco santo como eu, que, ainda assim, tinha a auto-estima (autoestima?) tão elevada que se deu ao trabalho de confessar em escrito aquilo que o vento poderia soprar ao aspirante (de aspirar, como um buraco negro) ouvido de Deus, e sem retorno. Se tive alguma revelação pessoal com Santo Agostinho, foi a revelação de que, santos e não santos, todos somos iguais. Apenas alguns se apaixonam pela ideia de um Certo Deus (e chama-se a isso Graça Divina), enquanto outros permanecem orgulhosamente apartados da alegria da luz, como certas personagens da Divina Comédia de Dante - no capítulo onde aparece o Saladino, procurem se estiverem interessados, que eu não me lembro, não me apetece ir Google, e ainda tenho 24 testes para corrigir hoje.
Diz a Maria Helena:
"Quanto ao tempo, para Deus não existirá, como também mostra a frase..."
Deus está fora do tempo, de facto, como se verá (na minha perspectiva) na minha subversão do Génesis.
"O perdão de Deus e entrada no Paraíso é dádiva e não conquista (...)"
Graça divina. Confesso que não gosto muito desta ideia. Parece-me contradizer aquela que refere, a dado momento, a do livre arbítrio...
"(...) é conversão de coração no reconhecimento do sofrimentos dos inocentes, é a capacidade para esquecer o sofrimento pessoal e tentar confortar o que está ao lado a sofrer e que todos, sem excepção,e por muito que nos custe engolir na nossa pequenez do coração, têm com a mesmíssima intensidade e verdade, a redenção."
Isto já me toca mais. Para mim reduz-se tudo a uma palavra: ser Bom. Por acaso, ou nem por isso, fugi à palavra Bom na minha versão do primeiro capítulo do Génesis.
"(...) O lugar no banquete celestial está reservado a muitos para quem olhamos com desconfiança porque Deus é que nos sonda o coração e o conhece."
Agora, falaria das "Florzinhas de São Francisco" (outro santo que eu fui na outra vida)... mas não tenho tempo. Fica para a aposentadoria (é assim que se diz, Gerana?).
"Se Jesus foi directo ou não para o Paraíso, Manuel, confesso que não perco um segundo a tentar adivinhar. Já haveria Low Coast?! :-))))"
Hum... Acho que para o Paraíso não há aviões, só balsas daquelas que se faziam (ainda se fazem?) para sair de Cuba em direcção aos Estados Unidos...
Mas retomando: Hoje. Hoje é eternidade. Eternidade é Paraíso. A Eternidade opõe-se à Paixão. Agora citava Aristóteles, nas "Categorias" citadas por Santo Agostinho, a respeito da ideia de paixão, ou seja, sofrimento, não no sentido de dor, mas no sentido de ser submetido a uma acção, ou seja, no sentido de ser submetido ao tempo. Mas não tenho tempo de desenvolver a ideia... o tempo falta-me... faz-me lembrar aquele matemático que morreu num duelo... o Galois... e não tenho tempo!!!! E tudo para chegar à conclusão que:
O Paraíso está fora do Tempo. Por isso, qualquer momento, convertido ao Não-Tempo paradisíaco, é Hoje.
Resta-me acreditar que o Inferno, por oposição, é o Tempo. E sorrio. Nunca, nada, me pareceu mais claro que isto. Ainda bem que não tenho tempo para nada. Estava mais próximo do Paraíso do que pensava...
1. Já repararam que apenas um cn separa a tecnologia da teologia???