Terça-feira, 5 de Setembro de 2006
Elogio da Loucura - Contra os Estóicos

"A Grande Onda em Kanagawa" de Katsushika Hokusai (1760-1849)

O Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão, mais que uma sátira contra os costumes, é uma obra que propõe conceitos teóricos absolutamente sólidos e originais, ainda que disfarçados de  discurso frívolo. O pensamento de Erasmo chega a ter semelhanças notáveis com as concepções propostas no âmbito da neurologia por António Damásio. Assim como Damásio se rebela contra a concepção cartesiana da racionalidade, Erasmo rebela-se contra o estoicismo. Se Descartes opunha a razão à emoção*, em que esta última apenas servia de empecilho na formulação de qualquer julgamento são (ainda que, depois, seguisse o coração na sua prova da existência de Deus),  o mesmo faziam os Estóicos. Erasmo propõe, para o bom governo da humanidade e de cada um, que se dê à loucura o seu devido lugar no Panteão dos deuses que guiam os passos humanos. Quase que se assume como a chama de Prometeu. É uma proposta pragmática, de facto. E, paradoxalmente, serve como contra-proposta de si mesma. Porque o pragmatismo é o que é. O pragmático é aquele que bem maneja as unhas para seu proveito. Chamem-no louco.

*"Todas as paixões pertencem à Estultícia", diz a própria Estultícia através da pena de Erasmo.
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publicado por Manuel Anastácio às 19:55
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Sábado, 26 de Agosto de 2006
Elogio da Loucura - O jardim de Erasmo

Jardim com girassóis de Gustav Klimt.

"O Elogio da Loucura" de Erasmo de Roterdão é uma obra essencial, não só como documento cuja leitura é imprescindível para compreender o humanismo renascentista, mas também para reflectirmos no pouco que evoluímos desde a época em que foi escrito. Erasmo era um fervoroso católico, amigo do fervoroso mártir do catolicismo (e da coerência) Thomas More, a quem a obra é explicitamente dedicada. O próprio título, em grego, "Moriae Encomium" pode ser lido como "Elogio a More".

É a própria Loucura (má tradução esta, mas já tradicional entre nós: melhor seria "estultícia" ou mesmo "estupidez") quem nos acolhe nestas páginas de erudita frescura, onde não há lugar para bolor nem para ratos de biblioteca.

É difícil dizer quem é, de facto, esta deusa, dispensatriz da felicidade humana - a Loucura, filha de Pluto e da Mocidade. Pluto é o deus das riquezas. A Economia, portanto. Bem a representou Frank Capra no seu "Mr. Deeds Goes to Town" (com a feliz tradução, em Portugal, de "Doido com Juízo"), quando a insanidade do seu protagonista é transformada em gráficos em tudo semelhantes aos que registam a evolução dos indicadores económicos.

Nasceu esta Loucura (a não confundir com Insanidade) nas Ilhas Afortunadas, onde foi amamentada pela Rusticidade, filha de Pã e pela Embriaguez, filha de Baco. O rol de parentes é digno de nota e reflexão. Mas quedo-me, por hoje, perante a descrição, botanicamente interessante, da sua terra natal. Somos imediatamente advertidos de que ali não crescem plantas inúteis como "narcisos, malva, cebolas ou feijões" mas, no seu jardim de Adónis, "arruda, angélica, erva-viperina, manjerona, trevo, rosas, violetas e lírios" - segundo a minha tradução a partir da que foi feita por John Wilson em 1668. A lista proposta por Álvaro Ribeiro (Guimarães Editores) coloca entre as primeiras "o asfódelo, malva, esquila, lupino e favas" e, entre as segundas, "moli, panaceia, nefentes, amaracus, ambrósia, lótus, rosa, violeta e jacinto". Os nomes propostos por Álvaro Ribeiro são, de longe, mais poéticos. Principalmente porque ninguém os usa. Sei que esquila (além de significar "tosquia") é, de facto, um tipo de cebola (cebola-albarrã - valha-nos o Santo Houaiss). Mas entre narcisos e asfódelos (sem acento na edição que tenho entre as mãos), pouco há de semelhanças, a não serem as ressonâncias mitológicas (os Campos Elíseos teriam uma grande profusão de asfódelos, se formos a confiar em Homero, na "Odisseia"; e o narciso, esse, era o tal que sofria de Filáucia*). Quanto a nefentes, tanto quanto sei, são plantas insectívoras e cujo cheiro pouco terá a condizer com o jardim de Adónis. A moli é uma planta fictícia, também referida na Odisseia, capaz de dissolver feitiços, como o perpetrado por Circe aos companheiros de Ulisses, transformados em porcos e que é considerada a planta que se opõe ao lótus, aqui colocada no mesmo rol. Panaceia, além da cura de todos os males, pode ser também o nome do Solanum cernuum ou Solanum martii, conhecidos respectivamente por Braço-de-preguiça e Braço-de-mono, mas duvido que Erasmo, ou qualquer outro europeu as conhecesse na época (e hoje, ainda assim...). Ambrosia é também do rol da mitologia - néctar de que se alimentam os deuses, ainda que também exista um género botânico com o mesmo nome, além da erva-de-santa-maria (Chenopodium ambrosioides) que também aceita a olimpíaca designação. Finalmente, amaracus será o mesmo que amáraco ou orígano (do tipo dos orégãos, para não complicar).

Não poderei dizer muito quanto à simbologia de tal jardim (e da sua antítese) - a não ser que a inutilidade das primeiras é uma simples ironia. Mas prometo que vou investigar.

Estão dadas as pistas. Ajuda será bem vinda.

*Amor-próprio, no código proposto por Erasmo.

P.S. Esqueci-me de dizer que lupino é o mesmo que tremoços.
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publicado por Manuel Anastácio às 22:58
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