A ingenuidade da esquerda que canta vitória à conta da decisão do Tribunal Constitucional e a falsa preocupação do PSD/PP são ambas reveladoras do vazio político em que estamos mergulhados. O governo saberá, impiedosamente, dar a volta aos 1300 milhões de euros "perdidos". Despedimentos e taxas adicionais são perfeitamente constitucionais e serão forçosamente usadas por quem provou que fez juramento de vassalagem à suserania dos mercados. Com uma vantagem para o governo: poderá fazer o choradinho de que foi a Constituição e a oposição radical, alheias à realidade económica, que empurraram o país para um maior endividamento e para a depressão. Sem que, de facto, se privem de cortar nos rendimentos de quem já procura algo mais barato que Nestum misturado com água fria.
Enquanto espero que outros resolvam problemas que eu não sei resolver, e como no Espaço Guimarães não há livraria que resista à escassez de leitores, entro no Jumbo e dirijo-me à banca da literatura de hipermercado. Depois das capas sexy dos livros que enchem os sonhos de quem não se consegue excitar com Dante Alighieri ou Marguerite Duras, encontro uma fila extensa de livros sobre... Economia. Eu sou do tempo em que a secção de Economia era a primeira parte do jornal a ir para o lixo (e até tinha cor diferente, para facilitar a separação) para que a leitura não pesasse nas mãos com as estéreis preleções dos senhores que nos enforcaram, talvez porque tenhamos lançado demasiadas páginas para a lixeira da ignorância e do eu quero lá saber das tendências da bolsa. Muitos livros de Economia. E, tirando um de Paul Krugman, tudo de endoutrinação política. Um escaparate de propaganda da mais abjeta sabujice ao poder dos Mercados e da ladroíce. João César das Neves, Camelo, perdão, Camilo Lourenço entre outras valentes bestas. Costumo gostar do cheiro a fresco dos livros, mas mal abri o do Camelo, além de me sentir agredido visualmente pelo péssimo grafismo em folhas envernizadas, veio-me uma náusea física que não se podia imputar exclusivamente ao nojo que tenho desta espécie de molusco acéfalo que, para mal dos meus pecados, ouço logo de manhã no Canal 1. Aquela tinta deve cheirar tão bem quanto os sovacos do autor, não que os tenha cheirado alguma vez, mas não preciso de partir uma perna para saber que dói. Mas, entre os outros autores encontro bestas bem piores que o Camelo, como um tal de Henrique Raposo, autor de explícitos panegíricos à ditadura de Salazar e, por inferência, de todas as ditaduras (desde que fascistas, que as comunistas são sempre más). O belo disto tudo, é a forma como estes interessantes pensadores se gostam de apresentar: como politicamente incorretos, como se ser politicamente incorreto fosse louvável... em política. Era tempo de aprenderem que ser politicamente incorreto está bem para artistas, poetas, filósofos, humoristas... mas políticos? oh meus amigos, não havia nechechidade... os políticos existem para melhorar a vida das pessoas e para as respeitarem, e para isso têm de ser politicamente corretos. Não falo de serem educados, cá para mim, podem dizer os palavrões que quiserem. Vou dar um exemplo prático: se fossem para a puta que vos pariu, o país ficava mais rico. Fui muito politicamente correto, apesar de ter dito palavrões, mas se quiserem, posso ir-vos às trombas, que é uma atitude politicamente incorreta e tão representativa das nobres e tradicionais virtudes do excelente povo português em que o vosso nacionalismo mercantilista grunho e bacoco deposita esperanças para salvar as finanças do estado. Marialva virtude essa, caída em decadência por causa da democracia e do estado social (ah, engano-me: a ditadura é que criou o estado social, diz o Raposo). E eu preocupo-me porquê, Deus meu? Quem se mete na boca do lobo é mesmo para sentir a firmeza dos caninos. Deixem-me ser politicamente incorreto, eu que sou apenas político por razões de cidadania e não de carreira: o povo português merece viver eternamente em ditadura. É a sua condição natural, ser escravizado e, masoquista ou devoto, beijar as mãos de quem o açoita. Obladi obladá...
A escalas diferentes, ideias semelhantes têm comportamentos diferentes. Diz a sabedoria popular que quando ralham as comadres, descobrem-se as verdades. Diferente é o caso das agências de notação, donas de um poder arbitrário ou sujeitas ao poder arbitrário de uma minoria humana que joga com a vida e dignidade da grande maioria da população humana, segundo uma lógica de um egoísmo que, infelizmente, nem sequer tem as virtudes da seleção natural. De facto, a forma como a economia neoliberal funciona não é, de todo, conforme à lógica malthusiana que permite a sobrevivência do mais apto porque a dinâmica fundamental do capitalismo contemporâneo já descartou as próprias pessoas do processo daquilo que é seleccionado: os senhores do capital não geram famílias de senhores do capital, mas dependentes tão medíocres e incapazes de qualquer género de sobrevivência quanto qualquer um dos escravos da burguesia. A capacidade de fazer dinheiro, ou de o inventar, ou de usufruir do seu poder, não está no ADN, não é transmissível de um ponto de vista evolutivo. Além disso, a espécie humana deixou de lado, por completo, o objetivo primordial de qualquer espécie biológica, que é a sua perpetuação, já que o poder destruidor da civilização neoliberal não se limita à destruição de outros grupos humanos rivais, como aconteceu ao longo da história, mas pode levar à destruição das próprias condições para a permanência de quem quer que seja. No percurso evolutivo, a consciência humana é um resultado brilhante e extraordinário, mas secundário, de uma excrescência doente de um dos ramos da vida, que ameaça toda a árvore. Ralham as comadres, mas as verdades não se descobrem. Sempre estiveram expostas ao olhar de quem quisesse ver. A maioria, desprovida de consciência, prefere os olhos vendados e exulta com as promessas dos mercados, divina cornucópia da abundância e da razão. Podem esperar sentados.