Sexta-feira, 12 de Junho de 2009
Ganhar a Vida

Amanita muscaria. O cogumelo que serviu de casa aos Schtroumpfs, depois de nós, não será a casa de ninguém. Não no sentido de casa. Carregar na imagem para os devidos créditos e licença.

 

Tem este título, belíssimo, uma coisa muito bonita, que não é uma revista nem é um livro, nem uma brochura, mas uma pequena obra de arte, organizada por João Paulo Cotrim, a respeito da iniciativa ou evento, ou que lhe quiserem chamar, chamado "Os Dias do Desenvolvimento 2009" que, este ano, se centrou no Objectivo de Desenvolvimento do Milénio número 7: "Garantir a sustentabilidade ambiental". Hoje em dia, a palavra coisa é mal vista. Por exemplo, Saramago fala da "Coisa Berlusconi" assim como outros falaram de outros seres humanos que deixaram de ser humanos para serem coisas. Na melhor das hipóteses tornaram-se símbolos, e, com mais sorte ainda, símbolos de coisas boas: da verdade, da beleza, da coragem, da bondade, da compaixão, outros tornaram-se em movimentos negativos da força humana. E a força humana é já, em si, negativa. Não tenhamos ilusões. O planeta Terra viveria muito melhor sem seres humanos. Mas se não houvesse humanos, quem daria valor à Vida? Ninguém. Os dinossauros não sabiam que eram terríveis nem grandes, nem grande coisa. Nem sequer eram a coisa dinossauro. Nem sabiam que eram grandes. Sabiam que tinham fome. Sabiam que tinham uma ânsia por sobreviver, moviam-se numa ânsia por se reproduzir, e morriam, numa angústia mitigada pelo facto de não saberem que morriam. Se a Terra rebentasse numa explosão nuclear, atómica ou de pressão de ar, ninguém lamentaria o facto (supondo que alguém sobreviveria) a não ser quem apusesse ao facto de ser, o facto de ser humano. Paul Crutzen fala do Antropoceno para designar a era geológica em que vivemos actualmente. Cientistas não humanos (isso seria porventura possível?) do futuro poderiam bem referir-se às camadas geológicas que variam entre as camadas que denotam a presença de fogo conjugado a restos biológicos a determinadas camadas sedimentares que denotariam uma forte presença de polímeros e, em particular, de hidrocarbonetos. É essa, provavelmente, a marca que a nossa breve passagem pela Terra deixará. Provavelmente, os nossos fósseis não serão particularmente interessantes, apesar de toda a panóplia funerária com que decoramos os candidatos à petrificação semi-eterna. E muito menos interessantes serão para quem não os estudará, nem com eles se emocionará como nós nos emocionamos perante uma lasca óssea de dinossauro ou perante uma simples impressão do exosqueleto de uma trilobite. A verdade é que será uma pena quando morrer o último homem. O mundo será coberto de artrópodes. Principalmente, baratas, sem dúvida. Mas ninguém saberá, nessa altura, avaliar a beleza da Vida. Ela poderá continuar, sem dúvida, esplendorosa como sempre. Cruel como sempre. Mas sem ninguém para dizer como é cruel. É por isso que convinha que, ganhando a Vida, ganhássemos também a Morte. É por isso que escrevemos, pintamos, filmamos e teorizamos. Para ganhar a Morte. Para fazer dela um registo fóssil capaz de evocar o sentimento perdido da beleza. Perdido, sem dúvida. Já entrámos no movimento que nos leva à extinção. E vivemos, antecipadamente, a beleza de não existirmos. Somos mesmo estúpidos. Sem redenção.

 

E, como sempre, não falei do que queria falar. De uma coisa. Bonita.

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publicado por Manuel Anastácio às 23:20
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