Quinta-feira, 1 de Novembro de 2012
Dia de Todos os Santos

Não haverá hoje muitos miúdos a sair de casa, cedo, em Carvalhal, para gritar “Bolinhos, bolinhos” de porta em porta. Há sítios onde se pede “pão, por Deus”. Em Carvalhal apela-se aos mortos que cada vivo carrega nas suas dores. “Bolinhos, bolinhos, em redor de seus santinhos”. Podia ser “Bolinhos, bolinhos, em redor dos seus santinhos”, em Constância dizem “bolinhos, bolinhos à porta dos seus santinhos”, mas era a primeira versão, com um certo matiz brasileiro na construção frásica, que era utilizada para pedir coisas boas junto das portas que conseguíssemos percorrer com um saco de pano para os secos, um de plástico para os tremoços e uma bolsa para dinheiro. O trânsito de canalhada a sair pelos quintais e varandas era acompanhado de informações relevantes. Ali dão-se tremoços, e dispensávamos tal porta, que de tremoços estávamos fartos. Ali não se dá nada. Não em casa pobre - nessas havia sempre um figo seco, um rebuçado melado ou um beijinho meio desfeito - mas em casas repenicadas, com jardins à Versalhes e paredes imaculadas. E gritávamos para os donos, trancados com portas de ferrolhos dourados: “Arrebolão, arrebolão, caia esta casa no meio do chão!”. Ali, dá-se dinheiro, e corríamos, ávidos, às moedas de dois e quinhentos ou, em casa mais farta, de dez escudos, brilhantes, acabadas de vir do Banco, em rolinhos de papel. Ali dão-se broas dos santos, bolos lêvedos com cheiro a erva-doce, cobertos do vidrado castanho escuro e brilhante de pinceladas de gema de ovo, riscadas com os dentes de um garfo. Ali, só fatias, ali broas inteiras, pequeninas, por vezes grandes. Uma vez recebi uma broa de honrosa dimensão das mãos de uma velhota simpática que se limitara a dar um punhado de castanhas aos meus companheiros. Não entendi logo a razão do tratamento diferenciado, mas agradeci. O mistério revelou-se  mais tarde. Um dia, ajudara-a com o pesado cesto de erva para o gado que as mulheres costumavam, nessa altura, levar na cabeça, das fazendas, nos vales, aos currais, nos cabeços, por caminhos de cabras de sísifa extensão. Ali, romãs, fruto perfeito, com jóias de sangue esbugalhadas ainda antes de voltar a casa, enquanto as nossas mãos avaras de crianças contava o dinheiro arrebanhado e comparávamos contabilidades. E o sino tocava para a missa, junto aos muros do Cerro, ao lado das vinhas que ondulavam em direção à igreja. As portas voltavam a fechar-se.

Artigos da mesma série: ,
publicado por Manuel Anastácio às 09:45
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (1) | Adicionar aos favoritos
Domingo, 17 de Outubro de 2010
O Coelho das passas

No século XVII, Georg Franck von Frankenau (1643 - 1704), era autor, nas suas sátiras médicas, da primeira referência escrita ao Coelho da Páscoa.

Georg Franck von Frankenau (1643 - 1704)


 

As Sátiras Médicas de Frankenau têm este nome, não porque fossem sátiras no sentido mais vulgar dado ao termo, mas porque se incluem no contexto de produção bibliográfica da altura, muito empenhada em coligir fenómenos maravilhosos (mirabilia), muitos dos quais sem qualquer explicação e que, bem vistas as coisas, pouco vieram a acrescentar ao conhecimento humano, a não ser pelo lado anedótico, mais afim à cultura popular que à cultura científica. Desde supostos benefícios em comer vidro, até casos duvidosos de glossolalia, Frankenau vai juntando tudo no mesmo saco de uma literatura eclética saturada de curiosidades que, por vezes, se estendem a territórios de um vago erotismo. Daí o termo Sátira, segundo as palavras do próprio Frankenau: do latim satur, cheio, saturado ou,  também do latim Satura, que significa miscelânia ou, ainda, e alternativamente, em referência à obscenidade dos Sátiros ou ao substantivo grego sathê, que se referiria ao órgão sexual masculino. Não há intenção crítica, portanto, nestas Sátiras, rapsódias ou simples dissertações para gozo do espírito nas coisas raras ou exóticas do mundo. Infelizmente, não tenho acesso ao texto original, Satyrae Medicae, Continuatio XVIII: Disputatione ordinaria lisguinas de Ovis Paschalibus von Oster-Eyern , de 1682, onde o autor disserta sobre os efeitos nefastos do consumo exagerado de ovos da páscoa trazidos pela Osterhase, ou lebre da Páscoa, pelo que muitas dúvidas que tenho quanto ao teor do dito texto não poderão aqui ser cabalmente esclarecidas.

 

Independentemente do que diz este autor seminal do mito popular, sempre me pareceu óbvio que a ideia de pôr um mamífero a pôr ovos se deve à forma das fezes do mesmo, de forma esférica a oval, e não a qualquer simbologia onde se cruzaria o coelho como atributo de fertilidade e o ovo como símbolo da ressurreição. Trata-se de imaginar um coelho a pôr ovos, e isso é suficientemente ridículo para se saber que existe, na ideia original, muito da proverbial malandrice do povo. Na cultura popular há, ainda, a tendência para associar as fezes de diversos animais aos frutos secos, nomeadamente as castanhas e as passas, em expressões como "castanhas: um burro as caga, tu as apanhas" ou "passa seca", para designar qualquer tipo de caganita.

 

Lembrei-me de falar disto apenas porque, em plena época outonal no hemisfério norte, deu-se o nascimento, em Portugal, da figura tutelar e salvífica do Coelho das Passas, capaz do prodígio da postura de ovos fecais que o povo colecciona com particular devoção e devora com especial apetite. Frankenau, defensor da ingestão de pedaços de vidro, mas sábio defensor da temperança no que diz respeito ao consumo de ovos leporinos, ficaria, com certeza, enojado com tão asqueroso hábito de um povo que parece saído de um qualquer álbum de curiosidades do século XVI, ao lado dos antropófagos bicéfalos da Nova Guiné. Fica aqui o registo de tão invulgar e absurdo costume, esperando que me seja dado o crédito futuro de ter sido o primeiro autor desta notícia que, dado o efeito narcótico e alucinogénico dos ditos ovos, não é notado pelos próprios adeptos de tal dieta.

Artigos da mesma série: ,
publicado por Manuel Anastácio às 17:56
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (7) | Adicionar aos favoritos
Terça-feira, 28 de Setembro de 2010
Pormenores: a casa dos plintos

Tirei estas fotografias de manhãzinha, pouco depois de o sol nascer, na estrada que vai de São Torcato a Garfe, numa laica peregrinação ao São Bentinho. Devo dizer que o dito santo não é das minhas preferências. Mas a manhã húmida do Minho, acompanhada das páginas de "A Cidade e as Serras", que ia lendo ao longo da estrada, merece destas caminhadas sem sentido de sacrifício, ainda que no dia seguinte não conseguisse dar um passo direito. Ao virar de um curva, ou de uma página do Eça, vai dar ao mesmo, encontrei esta casa (na verdade, o corpo central indiferenciado de um bloco de maiores dimensões) de gosto duvidoso, de blocos de granito com juntas de cimento, uma porta de madeira podre em cuja laje nascem polipódios separada de outras duas, de alumínio pintado de verde e dois registos de vidro nos dois terços superiores. Entre a primeira porta e as segundas, um banco de lajes de granito.

 

 

A casa tem uma varanda disposta num segundo socalco de cimento armado, mais largo em relação ao chão de terra batida onde já poderia ter existido um jardim de pequenas dimensões, antes do passeio, agora de cimento, marcado transversalmente a ferros, para cortar a monotonia cinzenta. Frente às portas, três cadeiras ferrugentas. No centro do pátio, o simulacro do que poderia ser uma árvore, mas que nunca o chegará a ser, envasada, porque o dono gostará de árvores pequenas, sem raízes que destruam a bela fachada do seu palácio. Junto ao passeio, três plintos de granito encimados por cubos do mesmo material assentes num dos vértices. No puxador da porta, o saco deixado pelo padeiro com os trigos da aurora. No murete que separa o pátio do jardim do vizinho, cuja casa mantém o mesmo registo de fachada, mais três plintos - os das pontas, junto à parede e junto ao passeio, com esferas, o do centro com uma pequena laje facetada em pirâmide atarracada.

 

Resgardada, em relação ao passeio por estas peças de evidente significado alquímico, logo depois do primeiro socalco de quem vem de São Torcato pelo lado metafórico de Giães, deparamo-nos com uma face grosseira de granito com alguns remendos de cimento.

 

 

O remendo parece dar-lhe alguma antiguidade, mas as feições, ainda de arestas puras na zona da boca deixa lugar à dúvida. Aquele pequeno moai deslocado parece ter saído de alguma cachorrada, de alguma igreja ou capela. Quem encontrou o modilhão teve, ao menos, a decência de, ao integrá-la  no seu sistema estético neo-cubista, deixá-lo serenamente a vigiar os passos dos peregrinos. Nada mais sei desta personagem. Um dia destes saio de novo ao caminho, em direcção ao vinho verde tinto de São Torcato e pegarei conversa com os frequentadores das cadeiras ferrugentas. Um dia destes.

publicado por Manuel Anastácio às 20:47
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (1) | Adicionar aos favoritos
Quinta-feira, 30 de Outubro de 2008
O Império dos Otários - Parte I

Estação de caminhos de ferro de Vilar Formoso. Painel de azulejos: Ponte da Canharda, Linha da Beira Alta

 

Carlos Nepomuceno, professor e pesquisador no Instituto de Inteligência Coletiva (Brasil), co-autor do livro "Conhecimento em Rede" responde, neste artigo, a uma provocação de Henrique Antoun, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro: "o usuário que colabora [em sites colectivos, como a Wikipédia] é colaborador ou apenas um otário?". Segundo Nepomuceno, desenham-se duas teorias: a hipótese do elevador, em que, perante um problema que urge solucionar, todos falam. Num elevador é normal ficarem as pessoas com o olhar vidrado, incapazes de olhar nos olhos os companheiros que compartilham o espaço, ameaçados que se sentem pela proximidade violadora do seu espaço de respiração pessoal. Contudo, quando o elevador pára, subitamente, encravado em terra de ninguém, todos falam. Todos dão a sua opinião. Todos raciocinam colectivamente mesmo que da conversa nada saia de efectivamente praticável. Assim nasceram os fóruns da Internet. Incapazes de resolver um problema, as pessoas viram-se para Santo Google. Quando Santo Google não ajuda, vai-se a um fórum. Deixa-se a questão. E, com sorte, entre opiniões mal informadas, encontramos a saída que procuramos. A gratidão que nasce do alívio de encontrarmos uma resposta predispõe-nos, depois, a também ajudar outros que venham à procura de ajuda. Lemos as suas perguntas. Por vezes, fazemos a simples pesquisa que o pobre em dúvida não conseguiu, por inépcia, fazer. Ajudamos os outros mesmo que nada ganhemos em troca. Mas esta teoria parte sempre da possibilidade de nos virem, alguma vez, também a socorrer. O altruísmo (ou a qualidade de ser otário, segundo Antoun) não é completo.

 

Resta a teoria de que participa na rede quem procura amor na suas várias formas. Como quem frequenta discotecas, pubs e bares, à procura de alguém a quem se possa mostrar. Alguém que olhe para nós e diga: ah, tu existes. Não tenho a menor das dúvidas de que esta teoria, incorporando a primeira hipótese do elevador, é mais abrangente, explica mais casos. É a mais adequada. Mas não explica tudo.

 

Não explica o facto de o contribuinte da Wikipédia ser, geralmente, anónimo...

Artigos da mesma série: , ,
publicado por Manuel Anastácio às 21:48
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (2) | Adicionar aos favoritos
Terça-feira, 28 de Outubro de 2008
Gosto de... Portugal

Painel de azulejos na Estação de Caminhos de Ferro de Vilar Formoso: Almeida: antigo quartel general, depois cadeia e, hoje, Câmara Municipal (creio eu).

Artigos da mesma série: , ,
publicado por Manuel Anastácio às 07:59
link do post | Dizer de sua justiça | Adicionar aos favoritos
.pesquisar