Quinta-feira, 1 de Novembro de 2012
LII

Tens mãos de pianista. Disse ela. Mas eu tenho olhos na cara. E dedos grossos, ossudos, como se as falanges fossem is maiúsculos com serifa. São isto mãos de pianista? Mãos que ainda guardam as memórias gratas do enxadão, a cavar no Estreitinho, como quem vai a caminho de Sobral Basto pela Serafina, e que guardam ainda a mais áspera memória dos baldes de argamassa e tábuas sujas de cimento em prédios que hoje devem estar podres de salitre e solidão. Tens mãos de pianista. E eu, que julgava que tinha mãos de servente ou de cavador à jorna, julguei que as minhas mãos, na altura suavizadas pelo papel das bibliotecas, excepto na junção da falanginha com a falangeta do anelar direito, onde a caneta ainda me marca com uma doce deformação, passavam doravante a serem anexos nobres de um corpo vulgar. Hoje sei que as mãos do servente e do cavador são tão nobres e belas como as do pianista, embora as primeiras sejam anónimas e não provoquem arroubos de transcendência a quem não é por elas afagadas com a volúpia do desejo partilhado. Tens mãos de pianista. Estas mãos são mudas. O giz continua a esculpir aquilo que o indicador económico da época do Cavaco não chegou a fazer completamente ao seu relevo de queratina acumulada em depósitos secos. São mudas, como é mudo o bloco de mármore ou o papel. As minhas mãos tocaram as mais belas coisas do mundo e, mudas, já disseram "não te largo" e "estou aqui". Ásperas. Duras. Nobres. Tocaram as coisas mais belas do mundo. Talvez sim. Talvez sejam de pianista.

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publicado por Manuel Anastácio às 00:26
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Segunda-feira, 27 de Fevereiro de 2012
LI

O Entroncamento é, provavelmente, a localidade que mais odeio de todas as terras lusas. Lá vivi os piores momentos da minha vida e lá estive à beira de me desfazer no pó dos desgraçados. Uma terra fantasma, um subúrbio de favos vazios num cruzamento de vias que cada vez tem menos importância para as pessoas que, antes, dali só conheciam um ponto de paragem feio de doer, mais algumas anedotas sobre vegetais anormalmente executados pela Natureza. Hoje, estando eu numa das (que poderiam ser uma) mais belas cidades do mundo, chegam-me aos ouvidos sinais de uma sabedoria e largueza de horizontes que não vejo entre aqueles que construiram e reconstruiram a Praça da Oliveira e a Colegiada da Senhora da mesma árvore. Há, talvez, na mediocridade das pedras, a elevação das almas. Foi entre a escória do Entroncamento que contruí o que de melhor há em mim. Entre as fachadas ritmicamente perfeitas de Guimarães, porém, sentiria adormecer a força do amanhã, não houvesse outro calor primaveril que o do granito mandado erigir pela Mumadona. Amo esta cidade como jamais amei qualquer pedaço de terra (exceptuando talvez a paisagem irremediavelmente extinta e impossível de reinventar do Carvalhal da minha infância). Talvez por isso me doa tanto a vulgaridade que se mantém naqueles que um dia serraram uma oliveira sagrada aos olhos do povo e a continuam a fazer em pedaços, sabendo que o povo é manso e dado à meditação morta de um rosário feito de caroços de azeitona.

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publicado por Manuel Anastácio às 22:24
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Segunda-feira, 23 de Maio de 2011
XXIII

Ver a política como um jogo é semear insensibilidade no coração.

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publicado por Manuel Anastácio às 00:13
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Sábado, 21 de Maio de 2011
Excertos de correspondência privada. O RSI e o vício

Em resposta a uma pergunta que me fizeram, educadamente, sobre o pessoal que vive preguiçosamente do RSI (e não vou discutir aqui se isso é possível ou não) e, mais que preguiçosamente, que passa o dia a fumar. Essa imagem muito utilizada pelos detractores do RSI ou Rendimento Social de Inserção está muito enraizada no imaginário político português. Muita razão há, infelizmente, neste outdoor do Portas:

 

Uma verdade pode servir para autenticar a mentira? Há cada vez mais pessoas a pensar como eles, pois há. Isso não significa que pensem bem.

 

Segue-se um texto que escrevi em reposta a uma pergunta que me foi feita. Procedi a algumas alterações. Não é um texto com valor literário, mas creio que mais vale estar aqui do que na caixa de correio.

 

Os vícios são do domínio privado e, desde que não interfiram com a liberdade dos outros, são da responsabilidade dos próprios. O moralismo é um caminho perigoso e não cabe ao Estado julgar o estilo de vida das pessoas, a não ser que seja um estilo de vida criminoso. Todos nós temos ou teremos vícios... Claro que se uma pessoa usa o dinheiro de um subsídio que deveria servir para alimentar os filhos para alimentar um vício pode, e deve ser, denunciada como negligente, porque nesse caso é a vida dos filhos que está em jogo. Agora, se a pessoa usa o dinheiro do subsídio, que deveria servir para se alimentar e ter uma vida digna, para sustentar um vício, isso é da sua própria responsabilidade, arcando com as consequências da sua decisão. Pensar que os vícios se curam à força é piorar o problema. Uma pessoa viciada em drogas e "preguiçosa" não vai deixar de se drogar nem começar a trabalhar se lhe tirarem o RSI. Antes pelo contrário. Como deixa de receber esse subsídio, irá recorrer a meios marginais de obtenção do dinheiro necessário para sustentar o vício, ou seja, prostituição, crime, economia paralela... Enquanto recebe o RSI há, contudo, mesmo que pequeno, algum acompanhamento da Segurança Social que poderá ter um efeito benéfico na forma como as pessoas encaram a vida. As pessoas recorrem muito à imagem de alguém a fumar à custa dos contribuintes. É um hábito que não é saudável, mas a verdade é que o alcoolismo é um problema de saúde pública muito maior e com consequências ainda mais destrutivas para as famílias que o consumo de tabaco ou mesmo de haxixe... o uso de drogas por parte do ser humano é quase biológico. É fácil entrar no discurso "quem não tem dinheiro não tem vícios", mas isso é um discurso perigoso, porque se o Estado abandona as pessoas à sua sorte porque passam o dia no café a fumar em vez de aceitar um trabalho qualquer, estaremos a empurrá-las para um estilo de vida que será ainda mais penalizador e caro para o Estado e para a Sociedade (repara nos índices de criminalidade que se irão suceder à medida que os cortes impostos pelo FMI forem aplicados). Os vícios dos pobres (fumar) são coisa pouca em relação aos vícios dos ricos (snifar cocaína). O moralismo é típico de pessoas que também alimentam vícios, mas de forma clandestina - enquanto que o preguiçosos do RSI o fazem publicamente. Há muito de hipocrisia nesse discurso. Bin Laden era contra "a exploração do corpo da mulher na civilização ocidental" e, vai-se a ver, tinha uma bateria enorme de filmes pornográficos. O Diretor do FMI, por sua vez, abusava de mulheres de posição social inferior (e o mesmo se passa com muitos políticos portugueses que também têm o discurso moralista mas, depois, procuram serviços de prostituição infantil, como é do conhecimento público, ainda que faltem as provas incriminatórias ou magistrados que não estejam unidos por laços de irmandade maçónica).

Podes concluir então que eu digo que não se pode fazer nada para "moralizar" a sociedade... Creio que há muito a fazer. Mas não na sua moralização. O importante é apostar na responsabilidade cívica. E a responsabilidade cívica desenvolve-se quando as pessoas têm condições de vida dignas (lembro-me do caso do Canadá, onde os índices de criminalidade são residuais e as razões são óbvias: os bairros sociais são locais dignos, bem conservados, por exemplo). A miséria não torna as pessoas mais trabalhadoras. Ninguém no seu juízo perfeito prefere ficar o dia inteiro a fumar no café em vez de trabalhar. Mas o juízo não se compra na farmácia. O caminho está na valorização de quem trabalha.

Paulo Portas diz uma verdade: "é injusto que um trabalhador honesto sinta que mais valia estar a receber o RSI e passar o dia a fumar no café"...

Isso é verdade, mas qual é a solução dele? Dar senhas de alimentos - assim as pessoas vão receber aquilo que necessitam para sobreviver, em vez de gastar tudo em tabaco e cerveja... Será? Não, não será assim. Muitas dessas pessoas, por vergonha, não usarão essas senhas (como eu disse, o juízo não se compra na farmácia - nem a falta de vergonha), fazendo eventualmente os filhos passarem fome, já que ir buscar comida com senhas é uma forma de humilhação que a maioria não vai aceitar. E como já disse, não é isso que irá fazer as pessoas abandonar os vícios. Mas vamos imaginar que sim. As pessoas, nessa situação, iam abandonar os vícios e aceitar trabalho... Ora bem... É mesmo isso que a direita quer. Uma quantidade assinalável de pessoas dispostas a trabalhar e a fazer tudo e mais alguma coisa, ao mesmo tempo que os salários diminuirão. Como há muita gente a procurar trabalho, paga-se menos. É uma lei económica selvagem típica do capitalismo e que serve para a escravização total das pessoas, fazendo-se a transferência directa da riqueza produzida pelos trabalhadores para o Capital... acontece que na verdade as coisas depois não acontecem dessa maneira, porque a criminalidade aumenta (e com ela, os vícios) e a sociedade, em vez de se tornar mais solidária, ergue muros, torna-se mais preconceituosa, racista, o ódio começa a espalhar-se e, com eles, erguem-se as políticas de extrema-direita. Procura-se controlar tudo com mais polícias e penas mais pesadas. Mas isso só cria mais revolta. A indignação que até ao momento era expressa por palavras e manifestações pacíficas, passa a ser violenta. Queimam-se carros, partem-se vitrines e montras de loja. O caos selvagem. É uma avalanche que começa pela falta de solidariedade disfarçada de moralismo. O que eu te estou a dizer não é uma opinião. É aquilo que a História já demonstrou que acontece em sociedades repressivas e moralistas. Pensa só na Lei Seca nos EUA: acabou com o vício do alcoolismo? Antes pelo contrário! Tornou a venda de álcool na actividade mais rentável da altura, com toda a espécie de crimes e vícios relacionados: prostituição, jogo ilegal, violência...

Mas qual é a reposta da esquerda para a tal verdade verdade do PP: "é injusto que um trabalhador honesto sinta que mais valia estar a receber o RSI e passar o dia a fumar no café"? Simples. Em vez de empurrar o preguiçoso para uma marginalidade maior ou para a exploração selvagem por parte do Capital (o que teria como efeito a pioria da situação do trabalhador honesto que veria o seu salário a descer porque haveria mais pessoas dispostas a fazer o seu trabalho por menos dinheiro), deve-se apostar na valorização e dignificação do trabalho do trabalhador honesto. O único caminho é dignificar o trabalho, dar às pessoas um salário justo. Se assim for, o trabalhador honesto deixará de olhar com inveja a vida ociosa de quem tem a lata de passar o dia a fumar no café. Ou deveria. Se pensasse em tudo o que está em jogo.

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publicado por Manuel Anastácio às 22:43
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