Não haverá hoje muitos miúdos a sair de casa, cedo, em Carvalhal, para gritar “Bolinhos, bolinhos” de porta em porta. Há sítios onde se pede “pão, por Deus”. Em Carvalhal apela-se aos mortos que cada vivo carrega nas suas dores. “Bolinhos, bolinhos, em redor de seus santinhos”. Podia ser “Bolinhos, bolinhos, em redor dos seus santinhos”, em Constância dizem “bolinhos, bolinhos à porta dos seus santinhos”, mas era a primeira versão, com um certo matiz brasileiro na construção frásica, que era utilizada para pedir coisas boas junto das portas que conseguíssemos percorrer com um saco de pano para os secos, um de plástico para os tremoços e uma bolsa para dinheiro. O trânsito de canalhada a sair pelos quintais e varandas era acompanhado de informações relevantes. Ali dão-se tremoços, e dispensávamos tal porta, que de tremoços estávamos fartos. Ali não se dá nada. Não em casa pobre - nessas havia sempre um figo seco, um rebuçado melado ou um beijinho meio desfeito - mas em casas repenicadas, com jardins à Versalhes e paredes imaculadas. E gritávamos para os donos, trancados com portas de ferrolhos dourados: “Arrebolão, arrebolão, caia esta casa no meio do chão!”. Ali, dá-se dinheiro, e corríamos, ávidos, às moedas de dois e quinhentos ou, em casa mais farta, de dez escudos, brilhantes, acabadas de vir do Banco, em rolinhos de papel. Ali dão-se broas dos santos, bolos lêvedos com cheiro a erva-doce, cobertos do vidrado castanho escuro e brilhante de pinceladas de gema de ovo, riscadas com os dentes de um garfo. Ali, só fatias, ali broas inteiras, pequeninas, por vezes grandes. Uma vez recebi uma broa de honrosa dimensão das mãos de uma velhota simpática que se limitara a dar um punhado de castanhas aos meus companheiros. Não entendi logo a razão do tratamento diferenciado, mas agradeci. O mistério revelou-se mais tarde. Um dia, ajudara-a com o pesado cesto de erva para o gado que as mulheres costumavam, nessa altura, levar na cabeça, das fazendas, nos vales, aos currais, nos cabeços, por caminhos de cabras de sísifa extensão. Ali, romãs, fruto perfeito, com jóias de sangue esbugalhadas ainda antes de voltar a casa, enquanto as nossas mãos avaras de crianças contava o dinheiro arrebanhado e comparávamos contabilidades. E o sino tocava para a missa, junto aos muros do Cerro, ao lado das vinhas que ondulavam em direção à igreja. As portas voltavam a fechar-se.
Chega-me a notícia de que tenho poderes sobrenaturais ou, pelo menos, não acreditando muito nessas coisas, pareço ser tão bom como o professor Makumba ou outro qualquer do género. Um senhor da minha terra (o Simão do cabeço da Igreja) chegou aos meus pais, perguntando a meia aldeia quem era um tal de Manuel Anastácio de lá, e que escrevia na Internet. Entrou no meu blogue à procura de rezas contra o quebranto. Achou uma. Leu-a em conjunto com a família e, no fim, enquanto se sentiam libertos do peso malsão que sobre eles pairava, o candeeiro suspenso na sala onde estavam caiu estrondosamente no chão.
Se é mentira, não fui eu quem inventou.
Marcha Triunfal da Aida, de Verdi. Lorin Maazel. Teatro Alla Scala de Milão.
Quando a televisão ainda só existia em Carvalhal e arredores num só lugar público de que não sei o nome (talvez no café da Portela, onde o Silvério Salgueiro viu o homem a descer à lua), porque não é do meu tempo, as pessoas do povo juntavam-se, após os dias de trabalho na lavoura ou na madeira (os grossos troncos de pinho carregados pelas mulheres à cabeça, sob uma rodilha de trapos entrançados revestidos de resina que era arrancada das mãos com a ajuda de petróleo) para ver as telenovelas brasileiras. Se "Gabriela" foi a primeira novela da televisão portuguesa, o grande marco no imaginário popular foi, sem dúvida, a "Escrava Isaura". Não é do meu tempo. Ainda vi uns capítulos esparsos de uma reposição feita à tarde e de outros de um remake mais recente. Tudo muito narrativa do século XIX com uma certa pimenta operática. Havia a escravatura, claro. E o povo sentia como suas as agruras dos negros presos ao tronco. As mulheres choravam baba e ranho e gritavam de dor a cada chicotada. Quando duas (creio que eram duas) personagens conhecidas pela sua bondade morrem num incêndio desencadeado pelos maus, ouço dizer que nada conseguia fazer parar as mulheres de chorar de desespero, enquanto os homens, não menos afectados no seu imo-senso de dureza masculina, puxavam dos lenços de mão e carpiam silenciosamente a morte trágica compartilhada frente à caixa de fantasmas que, por alguma técnica mágica e improvável lhes fazia chegar sofrimentos condensados e afins aos seus. As personagens não sofriam mais que eles, mas sofriam de langorosa forma nos minutos de cada emissão e mantinham-se em agonia até ao próximo episódio, num tipo de purgatório que ninguém entendia bem e que não é mais que o tempo da ópera, distentido ou encurtado de acordo com a vontade de um narrador difuso, como acontece sempre em qualquer obra de arte colectiva. Claro que, após as passas do Algarve, sempre havia um final feliz para aqueles que, entretanto, não tinham morrido atrozmente nas mãos dos verdugos esclavagistas. E isso, se foi bom para todos, que finalmente puxaram dos lenços para enxugar os olhos e um glauco pingo de felicidade que as mucosas do nariz segregavam, enfim libertas de opressão, trouxe consigo a maior decepeção de algumas daquelas vidas. Uma senhora, de que já não me lembro o nome, depois de ver o último episódio da Escrava e, começando a ver a telenovela que se seguiu, não gostou do que viu. Aqueles que tinham morrido entre as chamas estavam agora ali, com outras vestes, outros nomes e, por vezes, até com diferentes modos ou no lado contrário da barricada que divide os maus dos bons. A senhora prometeu (e, tanto quanto sei, cumpriu) jamais voltar a prestar a mínima das atenções àquela fantochada de sofrimentos postiços. Dura consigo mesma, negou a si mesma o prazer de sofrer o que sofrem os outros por interpostas e fantasmáticas pessoas. Passou a servir-se apenas da sua prória dor. Para si guardada, em si fechada, jamais transmitida na televisão. Fica aqui, contada agora ao mundo inteiro de uma só vez, o testemunho do seu voto de não se fixar, jamais, nas sombras ao fundo da caverna.
A Nebulosa do Anel, como eu não a conseguiria ver, de qualquer forma, há duas noites atrás. Carregar na imagem para os devidos créditos.
As noites já não podem ser tão escuras quanto aquela que guiou a alma do poema de São João da Cruz. Não nas cidades. Quando, pequeno, tinha de seguir pelas Oliveiras entre a paragem da carreira, o fundo da estrada, e subir junto à mancha de pinheiros que ainda hoje se mantém imune aos incêndios que transofrmaram Carvalhal num enorme eucaliptal, sentia-me como a Branca de Neve a fugir aos ternos braços das árvores, transformados pela escuridão em monstros que sobrepunham sombras a sombras. Só o primeiro candeeiro da Rua da Glória me acalmava os passos. Mas aquilo que ilumina o chão tem o triste condão de apagar o céu à noite.
Ó ditosa ventura, a de ver claramente vista a estrada que seguia para Santiago e que, em certa parte bifurcava o destino das almas destinadas ao Paraíso ou o adiava no Purgatório... Ditosa a ventura de inventar constelações, não tendo eu livros de astronomia nem internetes que me ensinassem a distinguir Vega da Próxima Centauri. Ditosa a ventura de ver mais de quinze estrelas cadentes a riscar o céu numa só noite, deitado nos montes de caruma cheios de carraças da minha infância. Lembro-me bem de sonhar, à noite, num céu legendado, onde a minha imaginação acordada pelo sono dispunha as constelações como figurinhas perfeitas e luminosas a imitar os bonecos que enfeitavam os signos que a minha prima Donzília lia na Crónica Feminina. Hoje, quando chego a casa dos meus pais, invariavelmente à noite, no fundo da rua, entre os fatais eucaliptos que vão dar para os negrumes da Valada e do Cã das Bouças, onde dou a volta ao carro, saio por vezes para voltar a entrever um pouco desse céu, mas já não é o mesmo. Teria que me aventurar pelos caminhos agora cobertos de silvas e, reduzindo o meu horizonte a sul, entrever pelos ramos das árvores, esquecido das sombras, aquele pó luminoso que torna as noites escuras perfeitas imagens de felicidade. Basta um candeeiro para apagar o céu à noite.
Há dois dias atrás, fui fisgado de poder ver algo semelhante no alto do Bom Jesus de Braga. Prometeram apagar as luzes até à meia noite para que astrónomos amadores e profissionais me mostrassem, hoje, aquilo com que sonhava em criança. Ao chegar, julguei que me tivesse enganado no dia - na noite. Mas não. Os eventos culturais e científicos em Portugal têm este condão de se ofuscar perante as luminárias broncas das entidades que os promovem. Luz por todo o lado, a iluminar os hotéis a abarrotar de ricaços do futebol que não podem andar às escuras, não fossem ficar lesionados ao tropeçar numa pedrita da calçada. Os astrónomos eram todos amadores - nem um profissional, ao contrário do que tinha sido prometido. Não que tenha qualquer queixa a fazer dos astrónomos amadores, simpáticos, pacientes e cujo brilho nos olhos apenas reflectia o das estrelas, não o obscurecendo. Não fossem eles e mais rota teria sido a iniciativa, apenas remendada pelo Coro Académico da Universidade do Minho, que, junto às estátuas da Fé, Esperança e Caridade encheram o espaço demasiado iluminado até que a EDP, finalmente apagou um terço das lâmpadas, incluindo as que iluminavam o Coro que teve, depois, de cantar sem o apoio de microfones e banda sonora adicional. Depois do recital, três astrónomos desiludidos pelo falso apagão, lá me mostraram os anéis de Saturno, a Nebulosa do Anel e, com uns raios laser todos catitas me foram apontando as constelações e as estrelas que teimavam em brilhar mais que o manto de escuridão luminosa que apagava por completo o horizonte sobre Braga (há quem se encante com as luzes das cidades, à noite...).
É triste dizê-lo. Mas nem para apagar a luz temos gente capaz. Proponho ao Engenheiro e à Doutora Milu que abram cursos das Novas Oportunidades para o efeito. O céu agradeceria.
Casa da Ti Geéda. Carvalhal, Abrantes, Cabeço da Espanha. Foto minha na licença do costume.
Os poucos leitores que tenho são de uma fidelidade e de um coração de tal modo oceânico que chego a envergonhar-me das vezes que penso em terminar com o blogue e colocar um vídeo do Youtube com alguns dos finais mais bonitos do cinema como último artigo (a copiar a ideia do Spicka). E não consigo deixar de ser profundamente grato a quem, sem me conhecer de lado algum, e sem ter a natural predisposição que há para ler autores que passaram pelo crivo da publicação, da crítica, do público e da História, lêm e sentem o que escrevo quando tantas outras, que me conhecem de presença física e que, supostamente, são minhas amigas, não me lêm, não me querem ler ou dizem que escrevo muito (demais) e falo caro, ou, ainda, sentem como escarros na face algumas das coisas de que mais me orgulho de ter escrito. Ninguém é profeta na sua terra, dizem. Mas o meu fiel natal-conterrâneo (e, tanto quanto sei, único) leitor, Silvério Salgueiro, que, não fosse o blogue, na melhor das hipóteses, também não me conheceria para além da típica genealogia de aldeia, decidiu-se a contrariar o provérbio. E foi repescar algumas das promessas que tinha deixado em suspenso na bruma dos meus esquecimentos, o que só acontece quando vasculhamos os escritos do baú (coisa a que a escrita bloguística não convida muito). Na verdade, não são esquecimentos nem promessas de político. Em algum dos casos, a ideia que tinha em mente desenvolver simplesmente dissolveu-se em outras ideias ou degenerou irremediavelmente nas ideias que não consigo desenvolver, por bloqueios de ordem vária, mas que não creio, de todo, irremediáveis.
Assim, fica em suspenso um artigo sobre o professor Baptista Reis porque, depois do que sobre ele escrevi no Professores V (ponto 7) dificilmente conseguiria dizer mais. Mas não digo nunca.
Quanto ao texto que tinha deixado em suspenso, e para o qual o meu caro Silvério pede continuação :
" O autocarro parava em frente de uma vidraça de loja, no café da Portela, onde lia, aí reflectido "aramac lapicinum ed laodras". Parecia latim ou élfico superior. Depois, seguia por uma curva, ao lado da loja do pai do Americano, e com um eucalipto esguio - o último de um renque e que foi poupado para servir de ponto de referência a quem chegasse à terra, de modo a poder dizer: aqui, junto a este eucalipto cujos ramos baixos foram podados, para acentuar o perfil fálico, está a casa dos Pichas... "
... foi escrito estando eu absorto num sentimento particularmente doloroso e propenso a determinadas evocações. Não o vou poder repegar, também, a não ser que outra incógnita e insuspeita madalena de Proust se venha a insinuar nos meus dias e a obrigar-me a escrever aquilo que o computador não me deixou escrever nessa altura. Penso repegar naquele texto, de facto. Mas não agora. E aviso desde já que a casa dos Pichas merece, de facto, um artigo (não aquele, que apenas referiria a casa de passagem). Mas faltam-me os dados históricos e coscuvilhices e uma fotografia de jeito, ainda que a casa tenha entretanto sofrido uma profunda lavagem de cara, mantendo, ainda assim, muitas das dignas linhas da bela arquitectura vernácula de Carvalhal (que muito devem à família do Silvério Salgueiro, nomeadamente os mestres Manuel Salgueiro e António Dias Salgueiro, respectivamente pai e avô do meu leitor), que as gerações recentes têm se esforçado por apagar e destruir.
Prometo que vou pensar no assunto.