Não, não pode. Dá um azar do caraças. Graves tragédias acontecem a quem mata uma andorinha. Cada ninho destas aves que é destruído por pessoas preocupadas com a pintura das paredes faz cair sobre os seus destruidores ondas negativas que não só interferem com o equilíbrio dos chacras como com as redes neuronais, provocando, inclusivamente, tumores cerebrais, hemorróidas e impotência sexual - tudo no cérebro ou no coração. São várias as histórias que testemunham o quanto é perigoso matar uma andorinha. José Alcaire, de Cova da Beira, só para falar de um português, é um caso sintomático. Ter destruído um ninho no beiral da sua casa por causa do cocó que lhe escorria pelos vidros da marquise foi apenas o início de um desenrolar de acontecimentos fatídicos que terminaram com a total perda das suas faculdades mentais, tendo inclusive, começado a interessar-se de forma excessiva por filatelia, o que causou o repúdio da população que, chocada pela perversidade dos seus novos hábitos, o matou de forma sanguinária e particularmente sádica, sem que as autoridades fizessem alguma coisa (consta, aliás, que o procurador público felicitou os mentores do linchamento e propô-los para receber a Ordem de Santiago da Espada). O professor John Doe, da Universidade de Birmingham, no Norte da Colúmbia Britânica, prémio Nobel em Medicina Alternativa, assegura, aliás, que a morte de andorinhas é um dos factores mais relevantes a ter em conta, depois das brincadeiras com cigarros na boca dos sapos, para o aumento da ocorrência de sismos violentos em todo o mundo, ainda que não tenha grandes certezas quanto ao aquecimento global. De facto, não há grandes provas de que a morte de andorinhas bebés (que são aquelas mais fáceis de matar) tenha influência no buraco de ozono e, apesar de as adultas andarem sempre de um lado para o outro e, assim, furarem a atmosfera, crê-se, através de fotografias usando película especial de dicromato de magnésio, que em volta de uma andorinha bebé se encontra uma aura de cor azulada, mas não esférica, o que parece indicar que há poderes que não devem ser perturbados nesta sua fase de desenvolvimento. Franz Ferdinand, professor da Jackass Academy, em Nova Iorque chega mesmo a admitir que a aura, no caso das andorinhas adultas, é ainda mais poderosa e que sempre que se mata uma andorinha há uma dispersão de neutrinos que desestabiliza o equilíbrio cósmico em torno do animal, afectando especialmente quem a mata. Há experiências que indicam, ainda, que um fenómeno semelhante ocorre nos ninhos destruídos. De facto, mais de 50% das casas vendidas em hasta pública no último ano tinham vestígios de ninhos de andorinha destruídos, apesar da brancura imaculada das suas paredes. Por outro lado, as casas que mantiveram os ninhos de andorinha, apesar de sujas, pertenciam quase todas a pessoas com rendimentos estáveis e cujo estado financeiro não foi comprometido com a Crise.
Ah, claro, e as andorinhas comem grandes quantidades de moscas e mosquitos (incluindo as fêmeas, que são as melgas que nos zunem aos ouvidos à noite e que aqui no Norte são chamadas de trupeteiros), o que, em termos de higiene, é mais vantajoso que a brancura das paredes. Mas como argumentos destes não pegam com o povo que temos, pode ser que os que estão no parágrafo anterior sejam mais convincentes.
Teresa Żylis-Gara e Franco Corelli, no Già nella notte densa do "Otello" de Verdi. Porque me apetece. Ou talvez seja uma associação entre a tez de Otello e a das azeitonas... sabe-se lá...
Alguém caiu de novo no meu blogue à procura de uma letra do Tony Carreira. Por incrível que pareça, encontrou-a. E disse que o meu blogue já tinha servido para alguma coisa. Valha-nos isso. E pediu: já agora podias dar a letra do "É mentira, é mentira, é mentira sim Senhor"? Claro, sempre às ordens. A canção, de melhor valor poético que uma letra do Paulo Coelho, perdão, do Tony Carreira, não tem o título indicado pelo meu leitor casual e que provavelmente não aqui voltará à procura dela, mas aquele que agora apresento a negrito. Por hoje é tudo. Tenho três livros a pedirem palavras minhas por aqui e ainda não li nenhum. Ide às azeitonas e ponde uma, acabada de apanhar, na boca. Acreditavam os meus colegas de escola que após algum tempo apareceria gravada na casca a inicial da pessoa amada. Ide. Fazei. Lede. Se vos aprouver.
A Azeitona já está preta
A azeitona já está preta, a azeitona já está preta,
Já se pode armar aos tordos, já se pode armar aos tordos
Diz-me linda rapariga, diz-me linda rapariga,
Como vais de amores novos, como vais de amores novos.
É mentira, é mentira
É mentira, sim senhor
Eu nunca pedi um beijo
Quem mo deu foi meu amor!!!
É mentira, é mentira
É mentira, sim senhor
Eu nunca pedi um beijo
Quem mo deu foi meu amor!!!
Ai que lindo chapéu preto, ai que lindo chapéu preto
Naquela cabeça vai, naquela cabeça vai...
Ai que lindo rapazinho, ai que lindo rapazinho
Para genro do meu pai, para genro do meu pai...
É mentira, é mentira
É mentira, sim senhor
Eu nunca pedi um beijo
Quem mo deu foi meu amor!!!
É mentira, é mentira
É mentira, sim senhor
Eu nunca pedi um beijo
Quem mo deu foi meu amor!!!
Quem me dera ser colete, Quem me dera ser colete,
Quem me dera ser botão, Quem me dera ser botão,
Para andar agarradinha, Para andar agarradinha,
Juntinha ao teu coração... Juntinha ao teu coração...
Naquelas associações que aprendemos a papaguear na escola a respeito das cores, há uma associação frequente entre o azul e os miosótis. Se pedirem a alguém para dizer o nome de uma flor amarela, branca ou vermelha, os nomes variarão, embora, mais tarde ou mais cedo alguém pense em rosas. Mas, se pedirem o nome de uma flor azul, a escolha recairá quase invariavelmente nos miosótis. Mas poucas pessoas reconhecem os miosótis. Eu mesmo, que julgava que os sabia identificar, segui um longo caminho até os saber reconhecer. Todos começamos por aprender que são flores azuis. Não rosas.
As rosas azuis são sempre rosas brancas coloridas artificialmente, pondo corante azul na água que subirá pelos seus vasos condutores, por capilaridade. Qualquer pessoa o pode fazer. Mas há mais flores azuis. A da chicória-do-café, ou almeirões, por exemplo. Planta muito apreciada para saladas, em casa dos meus pais, misturada com batata cozida para suavizar o amargo da erva.
Outra flor azul, que em nada se relaciona com os miosótis para além da sua cor, são as chamadas viúvas (Trachelium caeruleum). Flor que é muito frequente nos muros que sobem em direção ao Bom Jesus de Braga, mas que, um dia, encontrei na minha terra natal, junto à Cruz Carril, lugar de fantasmas e bruxaria. Desconhecendo eu tal flor - que nunca mais por lá vi, julguei, nessa altura, que fossem estes os miosótis.
Mas não. Os miosótis têm as flores dispostas em espigas e não em umbela. Têm uma corola composta por cinco pétalas azuis. Mas isso não basta para ser miosótis. Como no caso dos olhos-de-gato (Pentaglottis sempervirens).
Ou no caso das flores de algumas espécies do género Omphalodes, como uma a que os ingleses chamam de Maria-de-olhos-azuis ou, ainda, miosótis-rastejantes, apesar de não serem verdadeiros miosótis.
Esses, os verdadeiros, pertencem ao género Myosotis., que inclui cerca de cinquenta espécies, como o miosótis-de-água (Myosotis palustris).
Ou o miosótis-do-campo (Myosotis arvensis) que, como muitos outros, podem até não ser azuis.
Aliás, a flor de miosótis costuma distinguir-se dos falsos miosótis dos géneros Pentaglottis e Omphalodes pelo seu centro amarelo aureolado de branco, sobre fundo de pétalas azuis, enquanto que estes géneros costumam ter centros brancos. Mas se isso é verdade para os Pentaglottis sempervirens (Cinco-línguas sempre verde), já não o é para algumas espécies de Omphalodes, como o Omphalodes scorpioides.
Haverá, com certeza, alguma vantagem evolutiva nesta forma floral para que se repita, de forma convergente em tantas espécies geneticamente desavindas. O mesmo se passa, aliás, com o padrão de amarelo aureolado de branco sobre o azul pentapartido. Ouro sobre azul. Nunca entendi bem a origem da expressão. A Natureza parece que sim.
Carregar nas fotografias para mais informações e créditos fotográficos.
"Fairytale" ("Shrek"), música de Harry Gregson-Williams, interpretada por Joseph M. Rozell.
A escrita para crianças deve focar, a nível da sua construção narrativa, as questões mais difíceis de entender ou de explicar por parte dos adultos. E deve fazer isso usando imagens que, por vezes, são particularmente cruéis, outras vezes oniricamente falsas e, muitas vezes assentes nos mais básicos estereótipos que, aqui, servem de símbolos a que não se deve retirar a sua força, a pretexto de não querer traumatizar os meninos. De nada nos serve querermos inculcar nas crianças mais jovens valores de tolerância relativista. O quadro mental inicial de uma criança é puramente maniqueísta e resume-se ao que é bom e ao que é mau. A pedagogia que subjaz, contudo, à maioria dos textos recentes para crianças aponta exactamente para o arredondar das arestas cortantes dos contos de antigamente. Para a proteção de um suposto mundo imaculado onde vive a criança. Isso é mau. Nascemos geneticamente preparados para enfentarmos a violência da nossa condição animal e humana, até porque nascemos já capazes das maiores violências sobre os outros, e é a educação que, gradualmente nos vai inserindo num pacto social de concórdia e tolerância. Não defendo, é certo, a violência como meio educativo (reguadas, vergastadas e bater com o cinto) - mas é um facto que a criança exige resoluções violentas para as suas angústias. A madrasta má deve sofrer de um fim mais sádico que aquele que a justiça deveria reclamar. Eram assim as histórias originais dos Irmãos Grimm. Hoje, a Gata Borralheira, mui cristãmente, perdoa à madrasta. Isso estará correto, com certeza, do ponto de vista de um adulto ou de uma criança já a caminho da pré-adolescência, mas é um erro que, por extensão, se julgue que também deve ser assim para quem o mundo é apenas uma sucessão de situações fantasmagóricas. É nesta fase que se deve apelar aos conceitos de bem e mal. É aqui que radicam todos os valores que a criança mais tarde desenvolverá. Usando a nomenclatura de Kieran Egan, ao modo somático de entender as coisas (dá prazer / dá dor) segue-se esta fase, o modo mítico de compreensão do Universo. Só depois se entra progressivamente na compreensão da realidade como coisa complexa, com os estádios romântico (em que se apreende a diversidade), filosófico e, finalmente, irónico (estádio a que já chegou a Manuela Ferreira Leite, mas não o comum dos portugueses). Como na velhinha teoria da recapitulação, que postulava que o embrião passava por todas as formas biológicas da sua árvore filogenética, e que sendo uma teoria refutada não deixa de ser útil para o nosso entendimento, também Egan postula que as nossas necessidades educativas passam por estádios que correspondem à evolução histórica da humanidade ou, pelo menos, da história das suas ideias (sempre no sentido da compreensão da complexidade dos fenómenos humanos). Ora, isso coloca alguns problemas interessantes: é lícito continuar a dizer que o mau era o lobo? Ou que o mau era muito feio, e que a bruxa tinha uma verruga no nariz? Ou que as personagens boazinhas são sempre bonitas? A minha opinião é: não, não é necessário, no caso das características dos seres humanos que não se prendem diretamente à sua bondade ou à sua maldade. Nestes casos é conveniente escreverem-se histórias em que os bons sejam feios (o caso do Shrek, no cinema, é um exemplo muito louvável, nesse sentido) ou em que as madrastas sejam boas ou, mesmo, que as madrinhas sejam más. O que importa, no que ao ser humano diz respeito, sempre, é a dicotomia bem / mal. Mas será sempre necessário apelar ao simbolismo dos elementos narrativos que devem ser facilmente reconhecidos como bons ou maus. É aqui que a fábula aparece como excelente meio de compromisso entre as necessidades de compreensão da criança e os pruridos do politicamente correto. O lobo pode perfeitamente ser exemplo de crueldade. Os valores ecológicos de preservação da biodiversidade não serão postos em causa pelo seu papel simbólico. Basta que as crianças não terminem a sua evolução no estádio mítico. Infelizmente, muitas terminam. E algumas até chegam a lugares cimeiros da administração pública.
Excerto da minissérie "Capitu", de Luís Fernando Carvalho. Absolutamente indispensável que uma televisão portuguesa a adquira e exiba. E já. [Ou talvez não... Ver comentários.]
Já foram muitas as vezes que entraram neste blogue à procura dos olhos de ressaca de Capitu, do romance "Dom Casmurro", de Machado de Assis. Creio que Assis não pretendia dar qualquer ambiguidade à expressão. Hoje em dia, o leitor médio, pouco habituado ao vocabulário marítimo, desconhece o que seja ressaca. Pensará, porventura, que aquela mulher tinha os olhos cansados de quem abusou do álcool na noite anterior, o que poderá, de certa forma, coadunar-se com o que é dito, também, a respeito do seu modo de ser oblíquo e dissimulado. Mas não. A palavra ressaca resulta da anteposição da partícula "re" ao verbo sacar. Trata-se, portanto, do acto de sacar algo de forma repetida. A expressão "saca e ressaca" aplica-se ao fluxo e refluxo das ondas do mar, e que tem como resultado a sucção, por vezes fatal, de objetos para o abismo das profundezas aquáticas. Hoje em dia, Machado de Assis bem poderia dizer que os olhos de Capitu eram como buracos negros, mas duvido que a imagem fosse tão eficaz. Os buracos negros podem ser mais fortes que o movimento das marés, mas pertencem aos conceitos que, ainda que se refiram a realidades factuais, não pertencem à esfera da experiência sensível de quem quer que seja. As imagens, na literatura, têm, geralmente, de apelar à realidade sensível, a não ser que se trate de literatura com pretensões metafísicas. E mesmo essa costuma necessitar de uma certa tradução sensorial.
Diz Machado de Assis:
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.
Assis faz uso de uma interessante apóstrofe ao evocar a Retórica dos namorados. E a Musa inspira-o com uma expressão de pura força física que, ainda por cima, se consegue traduzir de forma quase automática na linguagem obscura, mas tão recorrente, das "energias" e dos "fluidos misteriosos". O narrador não circunscreve o efeito do olhar de Capitu à atração física que provoca. A utilização da expressão é também utilizada, de forma magistral, como premonição de uma morte que se concretiza, literalmente, graças à ressaca marítima, ao mesmo tempo que funciona como leitmotiv mais ou menos explícito em todas as situações ambíguas que, em constante fluxo e refluxo, cobrem e descobrem a personagem de Capitu, até ao inevitável encerramento enigmático no abismo da eterna dúvida.