Quinta-feira, 10 de Novembro de 2011
Das couves

Graças à Ana Ramon, que me mandou o artigo a que faço referência no post anterior, dei de caras com uma couve que me dizia alguma coisa. As couves têm, no Reino das Plantas, o desprezado lugar da burrice que, no Reino dos Animais, é reservado às galinhas. Diz-se de uma pessoa que está em coma que está como uma couve, ou que se reduz ao estado de uma couve. Poderia agora discorrer sobre a capacidade, comprovada cientificamente, de as couves, como outra planta qualquer, comunicar com outras plantas da mesma espécie. Não comprovado cientificamente, mas bem capaz de ser possível, será a sua capacidade de comunicar com outros seres vivos que com elas interajam interespecificamente (afídios, lagartas da borboleta-das-couves, moscas-brancas, ervas de toda a espécie e bactérias alojadas nas raízes, incluindo as que fazem o tão detestado "potro" que se manifesta com a formação de tubérculos nas raízes das mudas jovens de couve ratinha que os meus pais rejeitavam e que eu, caridosamente, plantava num canto da horta e, não raramente, davam boas folhas durante um ano ou dois). Também podia discorrer sobre a falsa burrice das galinhas, especialmente dos pintainhos que parecem ter capacidades paranormais, se for a acreditar nos livros da coleção "Labirinto" das Edições 70. Mas quando a Ana Ramon me enviou um mail sobre as virtudes nutritivas da couve-galega (que na minha terra é couve-ratinha), quando abri o link derramou-se sobre os meus olhos uma imagem familiar. A imagem não dizia: "foste tu que me fizeste". Tirar uma fotografia tem pouco de autoria, que me desculpem os fotógrafos. É apontar e disparar. Eu sei que o ângulo, a luz e tudo o resto conta e transfigura a realidade natural em objeto artístico, mas não é disso que agora quero falar. Aquela couve falava comigo por si mesmo. As suas folhas azuladas (eu sei que eram azuladas, mas a Gláucia alertou-me novamente, e de forma terna e cúmplice para esta peculiaridade), o fundo repleto de japoneiras (que é como aqui se chama àquilo que na minha terra natal apenas é designado de "camélias") e o muro com aspeto de muralha castreja dizia-me que, por alguma razão, estava no quintal dos meus sogros, de onde se vê Braga por um canudo. Era uma couve já de mais de dois anos ou perto disso, de onde já se tinha tirado muita folha para sopa, para galinhas e coelhos, sem falar nos "netos" que são os rebentos que vão crescendo ao longo do longo do caule e com os quais se fazem um belo e bracarense arroz de netos (ao modo das sensaboronas couves de bruxelas, mas sem formar bolinhas). Ao ler os comentários do artigo, contudo, descobri muita gente a dizer que a fotografia não era uma couve galega. E o meu sangue começa a ferver perante disparates, sejam eles do foro político, estético, filosófico ou botânico. Aquilo é e sempre foi uma couve galega. Mas havia gente a dizer... imagine-se o absurdo, que era uma couve-lombarda! Aí apeteceu-me rebentar. Até que, entre os comentadores, alguém que assinou por "Zé das Couves" disse: "será que sou o único aqui a saber o que é uma couve-galega? Aquilo é uma couve-galega!". Muito agradecido fiquei ao Zé por tão preclara sabedoria. Fiquei a saber, depois, que a minha amadora fotografia foi uma segunda escolha do pessoal do Público. Ao que parece, puseram lá, em primeiro lugar, antes das críticas da acéfala multidão da internet, uma couve-lombarda belissimamente fotografada por um fotógrafo que ganha algum a disparar flashes, o que não é o meu caso. As minhas fotografias, boas ou más, são de toda a gente e toda a gente as pode utilizar para o que bem quiser sem me dar um centavo (já que vamos voltar aos dracmas é melhor readaptar a linguagem). As dos fotógrafos profissionais são protegidas por direitos de autor.  Pois, a couve-lombarda podia ser muito bonita, mas não era uma couve-galega. Os jornalistas, coitados, lá tiveram de recorrer à Wikipedia e, não tendo melhor, porque os fotógrafos profissionais não gostam de couves-ratinhas, lá tiveram de utilizar a minha soberba couve-galega-ratinha do quintal dos meus sogros, soberba não à conta do meu mérito de fotógrafo, mas à conta do seu mérito de resistente exemplar de esguia generosidade. Mas continuo orgulhoso. Ser segunda escolha não é de desprezar, quando somos a escolha acertada.

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Sábado, 27 de Novembro de 2010
Viagens ao fundo da escada - Travassos, Póvoa de Lanhoso (3): De como a morte me mostrou a filigrana com que tudo se desenha.

Há no trabalho de moldar o ouro a angústia de cada átomo que se perde só de tocar naquela matéria amarela com que se moldam os sonhos. Francisco de Carvalho e Sousa, de Travassos, sabe bem que varrer o chão não é a simples tarefa que a tradição do macho luso impõe às mulheres ou às carochinhas das histórias. Varrer o chão de uma oficina de ourivesaria é a repetição da dolorosa procura de migalhas imperceptíveis de sol com que as minúsculas pepitas iniciaram o seu percurso de objecto arrancado das trevas da Terra para as trevas da cobiça humana. Bela palavra: trevas. Li-a pela primeira vez numa Bíblia que fui lendo durante as Férias. Eu lia muito durante as Férias. Mas lia mais quando não estava de Férias porque, nas Férias, tinha de trabalhar. Entre a poeira que se intrometeu nas páginas, sacras ou não, que ia lendo, não havia pepitas de ouro. Só cimento, lascas de madeira e ferrugem de pregos das obras a que, tão bem apelidadas, se dá o nome de toscos. O trabalho de Francisco de Carvalho e Sousa nas Férias, pelo contrário, de tosco nada tinha. Por razões diferentes das minhas, ou talvez nem tanto, o Senhor que permitiu a abertura deste Museu foi espoliado, na infância, da Magia da palavra Férias, mas, ao contrário de mim, trocou uma Magia por outra. Enquanto eu procurava a Magia que me faltava nos baldes de argamassa nas páginas da Bíblia ou de algo tão diferente como "A Dama das Camélias" ou a "Guerra e Paz", sem contar com imensos volumes de Enid Blyton, Francisco, sem o saber, lia Tolkien e ouvia a Tetralogia do Poder à medida que esticava o fio de ouro com um impressionante tronco de tortura exposto na primeira sala, aberta para a luz, seguindo a mesma orientação espacial de todas as oficinas, novas ou antigas, de Travassos. Aqui desenvolveu a arte da filigrana de quatro fios. Como os quatro cantos do Mundo ou os quatro evangelistas. Número instável, ao contrário do três, daí as discordâncias no texto sagrado. Eram de prata e não de ouro as moedas que levaram Judas à morte. Por enforcamento, diz Mateus; de cabeça rachada e tripas à mostra, diz Lucas, noutro escrito pós-evangélico. Eram de prata, contudo,as moedas da traição. O ouro seria mal empregue para tão barata mercadoria. Não sei como se entrançam os quatro fios da concórdia solar de Francisco de Carvalho e Sousa. Mas o Museu, simpático, sem as ostentações que o seu nome poderá fazer imaginar a quem deseje a matéria quando, aqui, o que conta é o ofício, abre-se em janela para aquilo que um dia será um mundo sem crianças espoliadas da palavra férias. Porque o Museu, em vez de valorizar o ouro, valoriza o mestre, o artesão, o trabalhador, o artista, e quando estes são valorizados, as crianças passam a ter o direito a serem crianças. É sempre a vil cobiça dos donos do ouro que desvaloriza o trabalho humano, que, de parca valia, se socorre dos mais fracos braços e dos mais contrariados passos. Os pais de Francisco não o queriam por aí aos perdidos, pelos caminhos. Havia, talvez, uma intenção pedagógica que, diga-se de passagem, resultou em amor por tal trabalho. Com quatro fios se entraçaram corações nesta oficina e com quatro fios sempre haverá quem deseje entrançar mais. Ao valor da raridade do metal, nascia aqui o valor artístico coberto pela pátina escura da tradição. E, num mundo onde o valor das coisas decresce à medida que devia aumentar, perante o gasto absurdo e desregulado de recursos do planeta que caem directamente na fossa daqueles que compram sem, sequer usufruir para além do inefável prazer de apenas possuir, não temos outro caminho senão o de valorizar o estilo de um povo, de um lugar, tornando cada objecto transaccionável numa mensagem que precisa de ser decodificada, lida em profundidade, como que em busca de pepitas minúsculas de pureza no seio da sujidade. O maior problema ecológico advém da incapacidade do ser humano médio em usufrir das coisas para além de breves segundos. A abundância de bens consumíveis contrasta com a brevidade da vida e, por isso, corremos atrás de todos os livros, todos os filmes, todas as notícias, todos os jogos de computador, todas as canções, todas as piadas, todas as perversões, todos os crimes. Tudo. Queremos tudo quando nada nos é dado para sempre, a não ser que o sempre seja transmutado a partir de cada momento. Mas isso implicaria paciência, rotina, disciplina, coisas que, pouco humanas, poderá ser verdade, não conduzem a uma melhor humanidade, mas conduzem, com certeza, a uma humanidade mais perdurável e consciente. Mas ninguém quer coisas duráveis (a não ser ouro e diamantes) e, muito menos, consciência. A consciência dói. Já basta nascer para saber o que é doer. E, assim, sabendo-se que o narcótico da morte é inevitável, andamos a fingir que não e, na melhor das hipóteses, saboreamos sucedâneos prematuros. Na pior das hipóteses, convocamos a mais certa das companhias antes que venha de sua livre vontade. Seja como for, ao morrer arrependemo-nos sempre de qualquer coisa.

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Quarta-feira, 27 de Outubro de 2010
Viagens ao fundo da escada - Travassos, Póvoa de Lanhoso (2): como ao entrar no museu fui assaltado por vozes demoníacas que me queriam afastar da verdadeira fé da indissociabilidade entre a forma e o conteúdo, e como resisti a tais tentações (...)

(...) apenas destinadas a engrossar as fileiras de outras estéticas infernais, em nome do Ouro Nosso Senhor, Ámen

 

Estou eu a entrar no pequeno pátio que ladeia a Casa de Alfena, um belo edifício do século XVIII utilizado actualmente como unidade de Turismo de Habitação, antes de entrar na oficina de ourivesaria, quando um espírito de outro lugar me sussura que estilo e conteúdos são coisas diferentes. Não se trabalham nesta terra os diamantes. As minhotas, desde os tempos castrejos (eventualmente, antes, seriam muito provavelmente os minhotos, mas essa é outra história) usam ouro e não diamantes. Mas os diamantes dão-me o mote para o desenvolvimento daquilo em que penso, ainda antes de entrar no Museu do Ouro, arriscando-me a, tal como duas personagens do Tristram Shandy, levar uma eternidade a descer uma escada - eu demorarei o tempo que for preciso a pagar o ingresso no Museu, já que são os diamantes que agora me ocupam o pensamento. Um diamante e um pedaço de grafite, aquele mineral que está dentro dos vulgares lápis que os meninos levam para a escola, são duas formas do mesmo material. Ambos são constituídos por átomos de carbono. O conteúdo é o mesmo? Não. Um é um diamante, outro é um material de rápido desgaste. O conteúdo não é o mesmo, ainda que a matéria seja a mesma. Aquilo a que chamamos estilo não é mais que a disposição das coisas de modo a produzir um outro conteúdo com uma matéria que, disposta de outra forma, dá outro conteúdo. Posso descrever a minha entrada no Museu do Ouro apenas com as informações típicas de um roteiro turístico e acrescentar o preço dos bilhetes de várias formas. Posso ser sucinto e objectivo. Mas posso também transformar a tabela de preços num poema, se assim me apetecer; ou posso ainda reflectir, a partir do preçário, a respeito das políticas de turismo e de apoio à cultura. O conteúdo é o mesmo? Não. É certo que, ao fazer a crítica do preçário estou a acrescentar matéria à matéria inicial, o que, inevitavelmente dará outro conteúdo. Mas pensemos agora na oficina. O ouro é lá trabalhado e transformado de um corpo amorfo, em primeiro lugar, num fino fio de arame que será a matéria prima da filigrana. Continua a ser a mesma matéria. É o mesmo conteúdo? Não creio. Há uma forma associada que transformou aquele material noutra coisa - com ouro amorfo não se pode fazer filigrana, com o arame fininho, já se pode. A forma deu à mesma matéria uma outra função, uma outra finalidade. O objecto não é o mesmo, logo, o conteúdo também não é. Com o arame pode-se fazer um coração minhoto ou, sabe-se lá, uma flor. A matéria é a mesma - ouro. Pode-se dizer o mesmo do conteúdo? Não. A minha perspectiva é que a forma altera radicalmente o objecto, modificando-lhe o uso e a percepção que dele se tem. A forma, o estilo, é parte do conteúdo. Não é separável. É impossível lermos o mesmo conteúdo com estilos diferentes. Alguém que conte os Lusíadas em forma de narrativa jamais poderá, na minha opinião, dizer que o conteúdo é o mesmo. Note-se, aliás, que aquilo que foi escolhido para ser contado nos Lusíadas, isto é, a matéria prima do que é narrado, esteve sempre dependente da forma poética utilizada pelo autor. A fonte dessa matéria, a mina onde repousam os conceitos, é a história da humanidade, a história de Portugal, a mitologia grega, a ciência da época, e por aí fora. Mas até a escolha da matéria foi condicionada pela forma. Ao falar da Lua, o poeta diz "com três rostos, debaixo vai Diana". Se dissesse que o astro que se seguia era Lua, que apresenta quatro fases (uma das quais não é visível) - o conteúdo não era o mesmo, ainda que a matéria fosse, parcialmente, a mesma. É que para dar o verso pretendido, o poeta foi buscar uma pepita de outro metal a outra mina: à da mitologia romana, enquanto que, em linguagem escorreita e sem artifícios poéticos, cingindo-se à descrição astronómica, a Lua jamais seria identificada com a deusa da caça. A forma, o estilo, transformou a mesma mensagem de base num conteúdo diferente, num objecto diferente. É a diferença entre uma jóia e um pedaço de carvão, tenha sido a Natureza ou o homem a dispor as coisas num ou noutro sentido. Mesmo que consideremos que o conteúdo é o assunto, ficamos na dúvida com tal palavra. O que é o assunto: o metal usado ou a mina de onde vem? Na minha perspectiva, é a mina. E ao lermos algo que trata do mesmo assunto em estilos diferentes estaremos a ler conteúdos diferentes, ainda que os referentes sejam próximos. A mina de onde saiu o ouro para fazer o colar da Academia pode muito bem ter dado o ouro para fazer o coração em filigrana que está no piso superior do museu onde vou entrar ou a talha dourada de uma igreja que visitarei um dia destes, mas o conteúdo não é o mesmo. Aliás: nem a matéria, que apenas pertence à mesma classe de coisas. Mas quem fala de palavras tem sempre pano para mangas, mas com o qual se poderá também fazer colarinhos - o mesmo tipo de matéria, conteúdos diferentes. Mas, em pleno Vale do Ave, a indústria têxtil terá de ficar para outra altura. A literatura de viagens só não é literatura quando dispõe as pepitas sem as transformar em filigrana. O autor de um livro de viagens pode ser um simples garimpeiro, claro, mas há quem tenha o toque de arrancar jóias perfeitas dos caminhos que trilha. Aliás: todos os livros são livros de viagens, bem vistas as coisas.

Coração minhoto de filigrana. Museu do Ouro, Travassos, Póvoa de Lanhoso. Foto de Luís Santos.

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Terça-feira, 26 de Outubro de 2010
Viagens ao fundo da escada - Travassos, Póvoa de Lanhoso (1)

Não há metal mais mal gasto nem menos gasto que o ouro. No Brasil, a expressão "lavar a égua" significa ter grande proveito em qualquer actividade que se empreenda. Na zona de Minas Gerais, conta Joaquim Magalhães de Castro num livrinho de viagens que ganhei de graça num passatempo promovido pela sua editora, os mineiros eram obrigados a rapar o cabelo e a sairem nus das minas de ouro, não fossem eles levar alguns gramas de pepitas de ouro nas pilosidades naturais ou artificiais anexas ao templo da sua alma. Acontece que as éguas, coitadinhas, não precisavam de ser rapadas, pelo que havia sempre a possibilidade de, entre a pilosidade da pileca, passarem algumas poeiras áureas. Aquele que ficasse incumbido de lavar a égua tinha, por consequência, a possibilidade de recolher a água que dela escorresse e, dessa água e parca lama, extrair as microscópicas migalhas de ouro, também chamadas de pepitas e que não são mais que pequenas escamas de caspa do nosso planeta, que já deve ter amaldiçoado a hora ou o século em que tal matéria nele surdiu a imitação da cor do sol. As pepitas do tamanho de nozes, que os livros do Patinhas, da Editora Morumbi, nos impingiam não existem na realidade. Para fazer a magrinha aliança que tenho na mão direita, muita poeira teve de ser dissolvida no venenoso mercúrio, prenúncio do venenoso caminho que o ouro seguirá, daí para a frente. Seja na talha dourada que nos conforta a fé ou o simples deleite visual, seja no colar da Imortalidade com que a minha querida amiga Gláucia Lemos foi recentemente e merecidamente honrada, há um todo caminho de dor, de cobiça e de inevitável desgraça. Da mesma forma, quando me extasio perante uma pedra ricamente lavrada ao modo flamejante da arquitectura gótica, ou perante a obra de arte, tosca, do granito escavado de uma igreja românica, sei que me extasio perante a dor de quem a lavrou com os dedos em sangue. Há nas coisas belas, sempre, um abismo de dor. Não me conformo com isso. Beleza haverá sempre nos gestos, nos sons e nas palavras com que gravaremos sempre a dor de existir. Pior é, e será, se nos conformarmos com a dor daqueles que dão à luz a beleza que os seus próprios olhos jamais conseguirão distinguir da narcótica beleza da bebedeira com que se disfarça a insuportável obrigação de manter a vida para o gáudio de outros. Sei que jamais poderei viajar fazendo disso a minha vida. Mas ao ler o livro do Joaquim Magalhães de Castro "No Mundo das Maravilhas", em que este se limita a cumprir um roteiro quase turístico (ainda que com alguns percalços de aventureiro pelo meio) pelas Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo, senti-me tão desencantado como a Gerana, acérrima detractora deste género de não-literatura. É que, de facto, os livros de viagens não são literatura. São relatos para aqueles que não poderão fazer o mesmo, criando uma sensação que substitui a experiência de uma viagem de facto, ao permitir ao viajante de sofá a inserção de pormenores contextuais no seu imaginário. É um tipo de ersatz, tal como a verdadeira literatura, mas com uma função diversa. Ambas as formas de escrita são subjectivas, não é aí que reside a diferença. A literatura serve-nos a realidade condensada em algo que, ao visar o transcendente ou o sublime (inalcançáveis, a não ser a um nível íntimo e intransmissível) nos liga à vida ou a possíveis sentidos para a vida, seja por via do absurdo, da alegoria ou da apologia, seja na forma de poesia ou ficção, seja ao nível de um romance proustiano seja à superfície da turva qualidade de um romance de Danielle Steel, seja na clara e imediata mensagem de uma quadra de António Aleixo, seja nos enigmas órficos de Herberto Hélder. Isso é literatura, tal como as viagens de Alice no País das Maravilhas ou as viagens de Gulliver (maus exemplos, já que ambos tratam de viagens imaginárias). A Gerana chama-lhe estilo. Eu chamo-lhe conteúdo. A literatura de viajens não é literatura porque se limita a contar coisas e a tapar buracos naquilo que poderemos saber a partir das enciclopédias e livros de História e Geografia. Tapar buracos? Claro. É que se no Google e na estante podemos passar de Ouro Preto para a Bahia de Todos os Santos sem grandes percalços, na realidade temos os transportes ou a falta deles e as pessoas que se cruzam connosco pelo caminho. Muito do que melhor se lê na literatura de viagens reside nestas conversas com aqueles que nos preenchem os buracos vazios do percurso. Só aí reside um relance de literatura. Na parte que existe apenas por arrasto. Na parte do caminho. A literatura de viagens acaba, assim, por nos reconciliar com o caminho e desvalorizar as metas. Não sendo literatura é, paradoxalmente, capaz do mesmo efeito que a literatura que se lê. Que se escava. A literatura que nos permite viajar por nós mesmos em vez de lavarmos a égua daquele que viajou por nós, na esperança de ficarmos com um grão de poeira da cor do milho. Hoje pensei em começar uma viagem imaginária por caminhos que pisei e por caminhos que não pisei, juntando pessoas que conheci com pessoas que inventarei. E não me perguntem quem existe e quem não. A Natacha do Guerra e Paz sempre existiu, tal como a Blimunda, que Deus as tenha connosco. Estou frente ao Museu do  Ouro em Travassos, Póvoa de Lanhoso, Braga, Portugal. Pronto para lavar a égua a partir do Aleph, logo abaixo das escadas que dão para a cave. Tinha de começar pelo ouro. Aquele que nos torna invisíveis, poderosos, imortais, belos, soberbos, magnânimos, cultos, bondosos, sábios, perfeitos. Lendários. Como num conto infantil que a Gláucia poderá um dia escrever, como sugeriu no seu discurso de posse da cadeira número catorze da Academia de Letras da Bahia, seguindo as pegadas de Tolkien e de Wagner (não na Academia, claro, mas no caminho dourado e mágico do metal onde dorme em pesadelos de grandeza grande parte da desgraçada humanidade).

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Segunda-feira, 20 de Julho de 2009
Vendo a noite por um canudo

A Nebulosa do Anel, como eu não a conseguiria ver, de qualquer forma, há duas noites atrás. Carregar na imagem para os devidos créditos.

 

As noites já não podem ser tão escuras quanto aquela que guiou a alma do poema de São João da Cruz. Não nas cidades. Quando, pequeno, tinha de seguir pelas Oliveiras entre a paragem da carreira, o fundo da estrada, e subir junto à mancha de pinheiros que ainda hoje se mantém imune aos incêndios que transofrmaram Carvalhal num enorme eucaliptal, sentia-me como a Branca de Neve a fugir aos ternos braços das árvores, transformados pela escuridão em monstros que sobrepunham sombras a sombras. Só o primeiro candeeiro da Rua da Glória me acalmava os passos. Mas aquilo que ilumina o chão tem o triste condão de apagar o céu à noite.

 

Ó ditosa ventura, a de ver claramente vista a estrada que seguia para Santiago e que, em certa parte bifurcava o destino das almas destinadas ao Paraíso ou o adiava no Purgatório... Ditosa a ventura de inventar constelações, não tendo eu livros de astronomia nem internetes que me ensinassem a distinguir Vega da Próxima Centauri. Ditosa a ventura de ver mais de quinze estrelas cadentes a riscar o céu numa só noite, deitado nos montes de caruma cheios de carraças da minha infância. Lembro-me bem de sonhar, à noite, num céu legendado, onde a minha imaginação acordada pelo sono dispunha as constelações como figurinhas perfeitas e luminosas a imitar os bonecos que enfeitavam os signos que a minha prima Donzília lia na Crónica Feminina. Hoje, quando chego a casa dos meus pais, invariavelmente à noite, no fundo da rua, entre os fatais eucaliptos que vão dar para os negrumes da Valada e do Cã das Bouças, onde dou a volta ao carro, saio por vezes para voltar a entrever um pouco desse céu, mas já não é o mesmo. Teria que me aventurar pelos caminhos agora cobertos de silvas e, reduzindo o meu horizonte a sul, entrever pelos ramos das árvores, esquecido das sombras, aquele pó luminoso que torna as noites escuras perfeitas imagens de felicidade. Basta um candeeiro para apagar o céu à noite.

 

Há dois dias atrás, fui fisgado de poder ver algo semelhante no alto do Bom Jesus de Braga. Prometeram apagar as luzes até à meia noite para que astrónomos amadores e profissionais me mostrassem, hoje, aquilo com que sonhava em criança. Ao chegar, julguei que me tivesse enganado no dia - na noite. Mas não. Os eventos culturais e científicos em Portugal têm este condão de se ofuscar perante as luminárias broncas das entidades que os promovem. Luz por todo o lado, a iluminar os hotéis a abarrotar de ricaços do futebol que não podem andar às escuras, não fossem ficar lesionados ao tropeçar numa pedrita da calçada. Os astrónomos  eram todos amadores - nem um profissional, ao contrário do que tinha sido prometido. Não que tenha qualquer queixa a fazer dos astrónomos amadores, simpáticos, pacientes e cujo brilho nos olhos apenas reflectia o das estrelas, não o obscurecendo. Não fossem eles e mais rota teria sido a iniciativa, apenas remendada pelo Coro Académico da Universidade do Minho, que, junto às estátuas da Fé, Esperança e Caridade encheram o espaço demasiado iluminado até que a EDP, finalmente apagou um terço das lâmpadas, incluindo as que iluminavam o Coro que teve, depois, de cantar sem o apoio de microfones e banda sonora adicional. Depois do recital, três astrónomos desiludidos pelo falso apagão, lá me mostraram os anéis de Saturno, a Nebulosa do Anel e, com uns raios laser todos catitas me foram apontando as constelações e as estrelas que teimavam em brilhar mais que o manto de escuridão luminosa que apagava por completo o horizonte sobre Braga (há quem se encante com as luzes das cidades, à noite...).

 

É triste dizê-lo. Mas nem para apagar a luz temos gente capaz. Proponho ao Engenheiro e à Doutora Milu que abram cursos das Novas Oportunidades para o efeito. O céu agradeceria.

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publicado por Manuel Anastácio às 16:51
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