Terça-feira, 2 de Março de 2010
A Ópera dos Malandros I

Bryn Terfel com a The Orchestra of the Welsh National Opera, conduzido Gareth Jones. Cantor que tantas vezes lancei no éter de Mértola, numa altura em que ele cantava bem melhor que nesta relativamente fraquinha, mas bem humorada versão da "Madamina..."

 

Corria o ano de 1997 e era o primeiro ano em que iria trabalhar naquilo que julgava que seria um emprego minimamente conforme às minhas aspirações de intelectual de meia tijela. Menos de um mês antes de saber que tinha caído em Mértola, tinha comprado a "Grande Reportagem", na altura dirigida por este agora intragável Miguel Sousa Tavares, fruto degenerado de uma tão bela árvore... Minto... a reportagem desse senhor só veio mais tarde... o que eu tinha lido sobre a escola de Mértola estava algures numa página do "Jornal de Letras" onde, com orgulho, se expunha aos olhos incrédulos dos portugueses um improvável reconhecimento da OCDE em relação a uma escola num sítio onde Judas nem podia lavar o cu se não quisesse morrer de disenteria. Eu tinha acabado de tirar o curso e tive a felicidade de ser o penúltimo professor a ser colocado numa escola, na primeira fase dos concursos, o que era também algo improvável, mas que me aconteceu, para espanto da senhora da CAE que foi verificar se havia engano - que alguém como eu, com a cara roída de acne juvenil, não era pessoa para entrar na primeira fase.

 

O dia em que os meus pais encheram a carrinha com a tralha necessária para me instalar naquela terra de maravilhas e desenganos, no preciso instante em que Amélie Poulain  descobria uma caixa escondida numa parede, conhecia eu o Miguel Correia que, por qualquer improvável acaso, já tinha alugado um quarto num rés-do-chão, restando outro que foi por mim alugado ao chegar lá. O Miguel, a quem eu chamava e ainda chamo Nuno (o Nuno de Mértola, que agora é o Nuno do Porto - tal como eu, árvore meridional transplantada no coração de uma Valquíria nórdica) foi como um cometa de sabedoria e ponderação num ano breve mas tão cheio de tudo, numa terra onde não havia nada a não ser achados arqueológicos e lutas políticas acéfalas e incompreensíveis para o comum dos mortais.

 

Dois ou três anos depois de ter saído de Mértola, sem o ter visto depois de termos deixado aquele anel de rocha granítica e água estagnada, o Nuno convidou-me para o seu casamento. Eu, que me desfazia em disparates ao pegar num volante, nem pensei duas vezes e segui, para mal dos pecados do Nuno, que me teve de resgatar por interposta pessoa, perdido algures em Canelas na véspera do casamento, para o Porto onde, talvez na Igreja Matriz de Paranhos (seria? acho que nunca cheguei a saber em que igreja foi), ele fez-me ler uma das leituras da cerimónia do casamento, porque bem sabia como eu, agnóstico doente da alma, gostava daquelas palavras. Foi a primeira e última vez que fui chamado a ler durante uma missa. Mais tarde, quando me casei no Santuário do Bom Jesus do Monte (sem hipocrisias religiosas: o meu agnosticismo é muito católico), convidei o Nuno a ler a mesma passagem sagrada. E, enquanto o meu sogro se desfazia em lágrimas, e o Mau Ladrão, num dos cantos do altar, se furtava aos olhares dos crentes, acreditei que tudo neste mundo tem a secreta marca de água da bondade. E até os malandros têm direito à sua courela no Paraíso. Mesmo que tenham tido a infelicidade de dizer gravosos disparates sobre a Carmen de Bizet Fora de Mértola. Sem sair de Mértola...

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publicado por Manuel Anastácio às 01:04
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Sexta-feira, 7 de Setembro de 2007
Enciclopédia Pessoal: Silêncio
Verranno a te sull'aure, da Lucia de Lamermoor, com Joan Sutherland como Lucia e um irreconhecível Luciano Pavarotti como Edgardo, Gala Bing 72

Deixei as férias para descansar a pena de perdigão com que risco os rascunhos das únicas palavras que são minhas. Apenas apareci por conta da Wikipédia e fui acumulando textos que provavelmente nunca escreverei e que apenas ouvirei eu, quando nada mais houver para ouvir. Porque creio que nisso se resume a vida no Além: em palavras que só um ouve. Há quem lhe chame silêncio. Por isso, a tão forte atracção que esta palavra tem entre os poetas, todos os poetas, desde os grandes aos medíocres.  O silêncio que desceu irremediavelmente sobre a voz de Pavarotti está cheio de risos e palavras que nunca ouviremos. Da mesma forma, o silêncio abrupto que calou Jerry Hadley, há coisa de dois meses mostra bem como tão mal sabemos lidar com esta palavra. Está certo que Hadley não era Pavarotti, não chegava às pessoas como Pavarotti, era apenas um cantor de ópera que não mereceu destaque nas parangonas dos jornais quando decidiu pelas suas mãos voltar ao silêncio. Não houve mulheres da limpeza, de manhã, a informar os patrões de que  "O Hadley suicidou-se" - de facto, é mais duro e sádico que dizer apenas "O Pavarotti morreu" - e tanto as mulheres da limpeza como os patrões gostam mais de notícias duras e sádicas que de mortes esperadas com serenidade. Mas enfim. Não somos todos iguais na morte. Nem nas palavras que nunca ouviremos.


Jerry Hadley, com June Anderson e Coro, cantando "Make Our Garden Grow", de "Candide", conduzido pelo próprio compositor, Leonard Bernstein, a 13 de Dezembro de 1989.
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publicado por Manuel Anastácio às 17:10
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