Nas cinzas
Na cama rasa
Na erva mansa junto à estrada.
Na noite escura,
Na madrugada.
Na rua em que mora o nome
Gravado
Sem que saibam que é o teu.
Que é também o meu,
Feito de Aurora, de resina
De Glória desamparada.
À minha avó, que nunca me leu,
Mas ouviu-me a ler.
Entre os suspiros do entardecer,
Deitada no colchão de centeio
Batido na varanda das Impatiens.
Ouvias-me, lendo coisas de outros mundos.
Palavras que não conhecias,
Nomeando reinos de impossibilidades no teu estreito cone de luz
Onde eu ficava a ler e a tresler na minha tardia infantilidade
Livros que não eram para a minha idade.
É ali que ainda fico,
Ao teu lado, às vezes,
Flutuando no cheiro das maçãs de inverno
Engelhadas do frio
Com a doçura da idade.
Como eras, parece que ninguém o soube, além de mim.
Rude de palavras, sem pejo nos gestos,
Escandalosa, altiva
Na tua nobre e camponesa complexidade.
Quem te conhecia para além da tua falta de vergonha geminada de ternura?
Quem te conheceu melhor no teu olhar triste?
Sabes que ninguém mais te amou tanto as rugas
E os teus olhos sábios
Conspícuos
E que de ressaca seriam se marés houvesse a teus pés.
Quem te entendia melhor que eu?
Quem me entendia melhor que tu?
Havia poesia nos silêncios das palavras que te faltavam
E nos conceitos que não te deram a aprender.
Nascida para outros tempos,
Quantos palcos por ti esperaram,
Quantas cátedras de sublime sapiência?
Quantos embevecidos ouvintes por ti passaram
Sem te ouvir?
Um dia escrevi sobre a minha avó.
Um dia apenas o consegui.
E não falo de hoje.
Apenas uma vez falei
Sobre a dor com que me pesas
Com tudo o que gostava que visses.
Pensei em ti quando abracei outros ventos
E me entreguei às chuvas frias de outras manhãs
Desejei apresentar-te à terna doçura que o mundo me dava
Mas de ti nada restava
Senão a sepultura abandonada.
E tu, apenas viva em mim
Num eu que se desligava
Do que de ti restava em mim.
Tanto me pesa o último olhar
Que tive como despedida.
Na cama rasa
Na luz doentia
De uma eterna madrugada.