Sexta-feira, 2 de Janeiro de 2009
A maldade da Saicil

Excerto de "The Land Before Time" ("Em Busca do Vale Encantado").

 

A minha prima Cila, que, ao modo da linha de Sintra/Cascais, tem transformado o seu nome, pelo uso, num chamamento pseudo-inglês (Sáicile), não acredita em dinossauros. Talvez a descrença não seja assim tão efectiva. A Saicil é, acima de tudo, uma mulher de braço de ferro, que não gosta de vergar, embora, no fundo, seja flexível como um junco. Cada um é livre de não acreditar no que entende. É claro que não acreditar naquilo de que se tem provas evidentes é uma atitude, quanto a mim, repreensível, especialmente quando tal descrença vem, geralmente, acompanhada de outras crenças sem qualquer fundamento. As pessoas que não acreditam que o homem tenha ido à lua são as primeiras a acreditar em lobisomens. Cada um tem direito a viver no seu próprio universo, povoado com as criaturas que entender e segundo as leis naturais que entender. Se, depois, o universo não obedecer às leis que escolhemos, sempre podemos dizer que é ele, o universo, e não nós, que está errado.

 

A minha prima Cila diz que é má. Como um Tiranossaurus rex? Eu diria que não. A Cila é mais um Velociraptor. Mas é má? Vejamos... Quando eu era pequeno, pequenino, a Saicil era muito mandona e intransigente. Cada pecadilho que eu, pobrezito, cometia, era severamente castigado pela Cila com palavras ásperas que me faziam berrar e chorar como as comportas de Castelo Bode. Mas não havia momento mais alegre, nos dias que passava em Chão de Meninos, que a altura em que a Cila decidia fazer bolos e me deixava mexer na massa. Já gostava menos quando ela se decidia a fazer sopa de feijão verde com tomate, coisa que ainda hoje me arrepia... Mas o melhor, mesmo, em Chão de Meninos, era a colecção completa de "Os Sete", da Enid Blyton que a Cila e a Bela (irmã dela e minha comadre) tinham no quarto. Pasava horas a ler aqueles livrinhos, mas como o tempo me parecia pouco (mal sabia eu que era realmente pouco) comecei por ler à Marcelo Rebelo de Sousa, tudo na diagonal. E foi a Saicil quem, com a sua maldade incontrolável, me ensinou a ler como deve ser, obrigando-me a recontar tudo aquilo que tinha lido, fazendo perceber que um leitor não se mede pelas páginas saltadas, mas pelas páginas onde nos demoramos. É claro que a esta maldade boa, tinha sempre, para equilibrar, a maldade (a pior de todas) que foi a de me racionar o número de horas de leitura. Que lia demais. Que assim não podia ser. Que havia todo um mundo lá fora. E fez-me passear com um rapaz lá do sítio com quem nada tinha a ver e que, bem feita, passou uma tremenda seca comigo - e eu idem. E vá a Cila de ralhar com o pobrezito Léi. Que eu devia ter conversas mais interessantes... E blá blá blá... Por mim, aprendi desde essa altura que quem está mal muda-se, e que quem não quer estar comigo, que não me procure. É talvez por isso que o meu blogue tem tão pouca audiência. Pouca? Bem, nem por isso. Não me posso queixar das qualidades humanas de quem me lê e que elevam o pequeno número a um expoente que não mereço, mas que aceito de bom grado. A Cila, ao criticar-me, nessa altura, fez com que algo dela passasse para mim. Se não fossem estes episódios, provavelmente não teria hoje o gosto que ainda mantenho pela leitura e não manteria, impassível, os meus interesses, ignorando solenemente aqueles que supostamente me aproximariam de outras pessoas. A alguma assertividade (palavra na moda) que tenho, devo-a em grande parte à Cila.

 

É por isso, Cila, que digo para continuares má como sempre foste. É assim que gosto de ti. É assim que gostamos de ti. E quem estiver mal, que se mude.

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publicado por Manuel Anastácio às 08:00
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8 comentários:
De sandra a 2 de Janeiro de 2009 às 22:34
Olá Manuel! tentei ligar-te mas não fui bem sucedida de qualquer forma existem estes novos meios ao nosso dispor e devemos tirar proveito deles... (e agora ia já escrever sobre o paradoxo da papelada... mas adiante) assim, FELIZ ANO cheio de momentos felizes !!!! são os votos sinceros de uma amiga Bjocas e até qq dia.
De Manuel Anastácio a 3 de Janeiro de 2009 às 00:16
Feliz Ano Novo para ti também. E, espero, até breve.

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