E uma mãe assou
E comeu o seu querido filho:
“Olha nos meus olhos, mãe.
Aprendi a lei com eles
Olha a minha testa, mãe.
Já nela enverguei filactérios
Olha a minha boca, mãe:
Aprendi a lei com ela.”
… baseada nas “Lamentações de Jeremias” é de uma doçura a toda a prova, apesar dos versos macabros que a originam.
Outra canção, Wa Habibi (Meu amor, em árabe)…
Meu Amor, Meu Amor
O que te aconteceu?
Quem te viu e quem por ti sofreu,
Por ti, que és justo?
Meu Amor, qual a culpa dos nossos tempos e dos nossos filhos?
Permanecem sem cura, estas feridas.
… alterna, da mesma forma, com um sentido dramático deslumbrante, a lamentação de uma melodia da Semana Santa do cristianismo árabe com a mais desenvolta e sensual dança oriental. De seguida, num trabalho de colagem sonora, volta outra canção da Semana Santa:
Choram sem parar os meus olhos
Porque não terei descanso
Até que Deus a si se revele e olhe do céu.
Fiz subir as minhas preces em Teu nome,
Ó Deus
Não afastes os teus ouvidos
Ouve a minha voz e vem agora.
A primeira canção do ciclo, “Mañanita de San Juan”:
Na manhã do Dia de S. João
Mouros e Cristãos foram à guerra
Em combate, foram morrendo
Quinhentos de cada lado.
O almirante Rondale,
Ficou, então, cativo.
Quebrada a sua espada, a meio da batalha
Viu-se prisioneiro e começou a chorar.
A princesa, ouvindo-o do alto do seu castelo:
“Não chores, Rondale, não sofras
Dar-te-ei 100 marcos de ouros
E tudo o que quiseres,
Casando comigo, meus vinhedos e riachos.”
“Possa o fogo maldito devorar-te as vinhas
Os riachos e tuas casas
Tenho uma mulher em Paris: é com ela que caso”
Ouvindo isto a princesa,
Teve-o, morto.
… baseia-se num Romance tradicional sefardita. Diz a capa do CD que a tradução é de Hamete Benengeli, o que pressupõe ser o próprio Golijov num processo de mistificação narrativa, da mesma forma que Cide Hamete Benengeli não era mais que o fictício autor das aventuras do Engenhoso Dom Quixote de La Mancha. O espírito orientalista, esteticamente modificado e apropriado por Golijov, à maneira daquela personagem Byroniana do conto de Edgar Allan Põe com que dei início a este meu blogue:
“Sonhar, continuou, retomando o tom do seu diletante colóquio, enquanto levantava até à soberba luz de um incensório um dos seus magníficos vasos - sonhar tem sido o motivo da minha vida, por essa mesma razão tenho eu fundado para mim mesmo, como pode ver, uma clareira de sonhos. No coração de Veneza poderia eu ter erigido algo melhor? Vê à sua volta, é verdade, uma miscelânea de adereços arquitecturais. A castidade jónica é ofendida pelos temas antediluvianos, e as esfinges do Egipto estendem-se sobre tapetes de ouro. Apesar disso, o efeito é incongruente apenas para os acanhados. A harmonia de estilos locais, e especialmente temporais, são os fantasmas que aterrorizam a humanidade, desviando-a da contemplação do sublime. Eu mesmo já fui um decorador segundo os preceitos do bom gosto; mas essa sublimação do ridículo enfadou-me o espírito. Tudo isto é agora o que melhor se ajusta ao meu propósito. Como estes incensórios cheios de arabescos, o meu espírito contorce-se em fogo e o delírio desta cena enforma-me nas visões selvagens dessa terra de sonhos reais para a qual estou agora a partir.”
De facto, sou incapaz de ouvir esta obra de Golijov sem evocar o ambiente de sonho antes do encontro definitivo – onírico, sem ser surreal. Apenas sublimemente incongruente como os pregões sefarditas com que se compôs a primeira canção. Apenas revelador de um desejo de quebrar os muros que encerram a terra e que almejam limitar o próprio céu.
A terceira canção, “Tancas Serradas a Muru”, com letra e música de Francesco Ignazio Mannu (Sardenha, ca. 1795):
“Cercam os muros a terra
Tomada em voraz avareza,
Fosse o céu aqui também
E seria da mesma forma cercado!”
... e a quinta canção pegam novamente no tema dos limites, das cercas e das portas, mas sob o ponto de vista dos indefesos e dos traídos. Como é habitual nas canções de embalar, o propósito não é apenas o de adormecer mas o de confessar à criança, que não entende, tudo aquilo que atormenta o coração de quem o embala, como que pedindo vingança e salvação àquele que agora se protege. É este um dos arquétipos dos nossos mitos universais, que em vez de afastar os papões dos telhados, apenas os convocam para o espírito do infante que, de outro modo, desconheceria a sua existência. Pela mesma mítica mão de Benengeli:
Dorme, meu filho, dorme…
Dorme, maçã do meu olhar.
Antes que chegue o teu pai,
De ânimo exaltado.
Abre a porta, mulher,
Abre a porta
Que venho cansado
De lavrar os campos.
Não ta abrirei
Porque não estás cansado.
Sei bem que vens
Da casa da tua nova amante.