Domingo, 10 de Dezembro de 2006
A Arte como resumo da Natureza

Primeira ilustração (1904) da Kunstformen der Natur1, de Ernst Haeckel: "Phaeodaria" (hoje em dia conhecidos como radiolários).

A arte não pode ser a reprodução de um dado aspecto da natureza. Em A Verdade e a Verossimilhança das Obras de Arte, já Goethe defendia que o produto da arte humana, enquanto reprodução da natureza, será sempre inferior à própria natureza. Mais se poderá pensar se considerarmos que a organização que preside à maioria dos fenómenos naturais (ou pelo menos àqueles que consideramos especialmente belos) existe desde um nível microscópico, enquanto que os mais perfeitos resultados da actividade humana serão sempre imperfeitos se observados ao pormenor. Até a superfície polida de um mármore renascentista revelaria apenas um caos de saliências e excrescências inestéticas. Este facto tornou-se particularmente flagrante para os primeiros microscopistas que não tiveram pejo em destruir a reputação dos mais perfeccionistas dos ourives, principalmente daqueles que se gabavam da minúcia dos mais ínfimos pormenores da sua arte. O centro de mesa da baixela dos Duques de Aveiro, de François-Thomas Germain, presente no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, é um dos exemplares deste género de arte, que continua a fascinar quem a vê, apesar de a Arte ter, entretanto, enveredado por outros caminhos, cada vez mais afastados da Mimesis reprodutora e cada vez mais identificados com a Mimesis transfiguradora da realidade. De facto, desde sempre que se procurou acentuar, no objecto artístico, aquilo que era considerado de essencialmente belo, bom ou adequado na realidade natural - não sabemos se as ancas exageradas da Vénus de Willendorf eram, de facto, consideradas belas, mas seriam, com certeza, expressão de algo visto como bom - a fertilidade. A confusão que se foi estabelecendo na mente humana, ao longo dos séculos, e que foi valorizando cada vez mais a "reprodução fiel" da realidade chegou, por vezes, ao ponto de se querer reproduzir aquilo que, supostamente, era imperfeito na natureza, como a putrefacção que se verifica em alguns dos frutos cinzelados no centro de mesa de Germain. Na verdade, até a putrefacção, vista ao pormenor, é repleta de pormenores que, sem esforço, consideraríamos belos. Os naturalistas do século XIX, armados com uma prodigiosa janela para o infimamente pequeno, rapidamente assentiram que a natureza era em tudo superior, em termos formais, à actividade artística - e, paradoxalmente, passaram a identificar a própria natureza com a Arte, erro que, contudo, lhes deve ser perdoado já que tinham formação em biologia e não em estética. Este equívoco é patente numa das obras naturalistas do século XIX que mais admiro, da autoria do "pai" da Ecologia ", Ernst Haeckel: as imagens que constituem a sua "Kunstformen der Natur" ("Formas Artísticas da Natureza") partem da acepção de que o pormenor, na natureza, tem de ser, sempre, simultaneamente complexo e regular. As imagens obtidas pelos microscópios da altura não devia ser famosas, pelo que muitas das perfeições homenageadas nas suas ilustrações são, acima de tudo, Arte nascida não da imitação, mas da transfiguração imaginativa da Natureza. Querendo exaltar a perfeição da Natureza, Haeckel limitou-se a provar de que a perfeição nem existe nos seus lindos e improváveis radiolários nem nas imagens rendilhadas que deles esboçou (porque qualquer desenho ou pintura será sempre, apenas, um esboço), mas na imagem mental que concebemos para a perfeição. Uma obra prima da Arte Humana será, não aquela que tecnicamente é mais perfeita, mas aquela que melhor se adequa ao seu objectivo: em geral, emocionar ou suscitar o sentimento da beleza, ainda que nem sempre. O Fradique Mendes, de Eça de Queirós, bem sintetizou a relação entre a Natureza e a Arte ao afirmar que "A Arte é um resumo da natureza feito pela imaginação". Vistos ao microscópio electrónico, os radiolários de Haeckel assemelham-se mais a grãos porosos de areia que a obras primas da Natureza, o que significa que o resumo, por vezes, é maior que o resumido. O que significa, também, que até a Natureza tem imperfeições em alguma das suas escalas de grandeza. Não sei se serve de Consolação, isto de saber que a nossa noção de Belo não se prolonga continua e uniformemente (ou, melhor, hiperbolicamente) em todas as escalas. Talvez cause, pelo contrário, desolação entre aqueles que procuram nas perfeições da Natureza as provas do Desenho Inteligente de Deus. Talvez. Eu continuo a acreditar que sem imperfeições, a beleza de nada serve.

Nota 1: A imagem que aparece no canto superior esquerdo do layout do meu blog é também desta mesma obra de Haeckel.
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publicado por Manuel Anastácio às 15:00
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De Zèd a 12 de Dezembro de 2006 às 22:52
Excelente post!
E já agora só uma nota, em jeito de resposta ao comentário do Paulo Hasse Paixão, quando eu andava na Faculdade havia uns cursos de ilustração científica, que não tendo muita saída ainda conseguiram atrair alguns colegas meus. Mas parece-me a mim que com o aparecimento da fotografia a ilustração científica perdeu importância, sobretudo do ponto de vista científico, na microscopia e como no resto. Mas nem tudo é mau, porque a microscopia associada à fotografia continua a dar belíssimas imagens, seja a histologia "clássica", seja com as técnicas mais modernas, como a microscopia de fluorescência e confocal. Também daria para um post...
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