Domingo, 5 de Novembro de 2006
Urbicídio

Pormenor de "As Tentações de Santo Antão" de Hieronymus Bosch (1450 – 1516) - Museu Nacional de Arte Antiga

O termo urbicídio foi criado por Marshall Berman, nos anos 80 para descrever o processo de degradação de uma parte do Bronx. O termo foi especialmente adoptado pelo arquitecto Bogdan Bogdanovitch para referir-se ao assassinato deliberado da cidade de Sarajevo, até então considerada um modelo vivo da convivência de culturas e etnias, ao assumir-se como o centro comum da variedade que se disseminava pela periferia - uma visão espacialmente diferente daquela que Saramago propõe na sua alegoria de "A Caverna", onde a centralização funcional da cidade apenas acentua as diferenças entre as periferias em convulsão revolucionária (ou agónica?) e o Centro artificial - um sucedâneo do Mundo que deste apenas quer reter uma imagem segura e controlada - um mundo de fantasia para quem, pelo medo, prefere o plástico ao barro. Saramago, talvez movido por fantasias literárias, vê no meio rural o último reduto de uma humanidade impoluta, onde ainda se vai buscar água à fonte com cântaros que perdem a asa e onde os cães vadios ainda podem ser adoptados sem mais. Falo de fantasias literárias não porque desdenhe da vida do campo nem de quem nele viva - mas porque aquilo que defendo como sendo humanidade deve-se, essencialmente a essa criação definidora da identidade humana que é a cidade. Até o desejo de preservação do meio rural, com os seus valores ambientais e culturais é, essencialmente, um desejo urbano. A corrupção do meio natural é facilmente digerida pelo rústico. Poucos são os aldeões que se comportam como aquela personagem do Júlio Dinis (creio eu que n' "A Morgadinha dos Canaviais") que se deixa morrer com as árvores que são assassinadas pelos construtores de estradas, arautos do progresso.

A morte da cidade, seja por meios insidiosos, lentos, de incúria política e social, seja por actos bélicos e terroristas é desejada essencialmente por grupos cuja proximidade à natureza lhes distorceu o sentido da solidariedade humana, ao mesmo tempo que o sentido moralista e acusador é agudizado. Assim é com os povos nómadas bíblicos e com os seus profetas cuja função essencial é predizer a desgraça das cidades - antros de hedonismo pecaminoso. Pecaminoso, porque afasta o homem da agreste pureza dos ermos onde Moisés e Maomé puderam entrar em contacto com Deus. É assim que Sodoma e Gomorra são extirpadas pelo fogo divino e submersas pelo sal do esquecimento. A Teocracia exige que o homem se disperse, não que se junte ou agregue em torno de projectos comuns, como Torres de Babel. Deus, o Grande Arquitecto, nunca foi Urbanista - pelo menos como nos tem sido servido até hoje. O Senhor dos Exércitos é o Senhor dos acampamentos, não das fundações. Por alguma razão decorreram 40 anos de desterro antes da promessa de uma Terra onde fincar o pé, com a destruição das suas muralhas defensivas.

Claro que hoje não é necessário derrubar muralhas. Basta sequestrar e desviar aviões ou lançar mísseis. A fúria divina dirige-se, de imediato, contra o Centro - não contra a periferia, que, por seu lado, também já não é uma fronteira, mas um local de dissolução. As cidades são antros de desigualdades, de dores, de solidões atrozes entre paredes que apenas comunicam com paredes. Mas isso só acontece graças à subversão da sua função comunitária em função do armazenamento de seres humanos segundo lógicas que escapam a qualquer entendimento. Mas, ainda assim, é nas cidades que o humanismo tem as suas mais perenes raízes. Deixar morrer, passivamente, as cidades ou feri-las com actos de destruição são, igualmente, duas formas de assassinato por negligência ou premeditação. Assassinato porque se trata da morte dos centros de onde emanam os únicos valores que nos poderão resgatar da bestialidade egoísta que, por sua vez, tornam a própria humanidade num tecido necrótico deste planeta em agonia.
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publicado por Manuel Anastácio às 20:29
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6 comentários:
De Filipe a 5 de Novembro de 2006 às 23:10
A teocracia exige..., lá entramos outra vez em discórdia, a cidade de Jerusalém era glorificada e era em volta de templos que muitas vezes se construíam as cidades.
Mas fora isto, o problema das cidades para mim é que são mal dimensionadas, li um estudo., não era português, do qual já não me lembro a referência, que dizia que o máximo número de habitantes de uma cidade deveria ser de 1 milhão, depois disto, começavam os desequilíbrios .
Concordo contigo quando falas da visão romântica do campo, por parte de muitos que o defendem. O meio rural é outro meio em que existem homens. A qualidade dos homens, justos, bons, verdadeiros," bons e maus", para mim é o resultado do percurso de cada um , não tem nada a ver com o meio. Existem "bons e maus" tanto na cidade como no meio rural. Com uma vantagem na cidade, se calhar, de haver mais testemunhas.
Mas quando afirmas que a preservação do meio rural " é, essencialmente, um desejo urbano", eu vejo outra vertente, vejo também muita gente que veio para a cidade porque não tinha outra maneira de subsistir e assim que consegue volta para esse meio rural. Sei que existem os românticos também
O problema da cidade é dimensioná-la e responsabilizar-se e já agora não estragar o clima que altera as culturas no meio rural e que são delas que vem uma coisa insignificante a que chamamos alimentos. é que no teu texto sobressai uma ideia de cidade autónoma, aí sim uma utopia
De Manuel Anastácio a 6 de Novembro de 2006 às 10:51
Não vejo onde há discórdia (e eu até gosto de discórdia, se implica novos caminhos de pensamento). A cidade de Jerusalém corresponde à institucionalização da religião cujas bases e arquétipos são nómadas (uma religião de pastores - lá está Abel para o comprovar). As profecias de Jeremias, Jonas e outros são, essencialmente urbicidas, e Jerusalém não escapa ao destino da "destruição divina". Ai Jerusalém, Jerusalém...

Quanto aos percursos individuais que definem os valres de cada um: estes estão condicionados pelo meio onde se inserem. Os exemplos que dás não contradizem a minha ideia. Apenas se referem aos problemas da cidade contemporânea que merecem ser considerados, mas que não eram o objecto da minha divagação, pelo menos por enquanto.
De Filipe a 6 de Novembro de 2006 às 12:14
Quando falo em discórdia é no sentido positivo, aliás como sublinhaste. Mas o tema que tocaste neste post é algo em que penso bastante.
Gosto de ler, embora com muita lacunas de formação nessa área, as comédias e tragédias gregas. As qualidades e defeitos que os seres humanos (e os deuses) ai apresentam são as mesmas dos dias de hoje. Não pudemos classificar o meio como igual.
Um mentiroso é tão mentiroso no meio rural como na cidade. Um justo é tão justo no campo como na cidade.
Agora uma pergunta, se não estavas a falar da cidade moderna, estava a falar da cidade utópica?
De Manuel Anastácio a 6 de Novembro de 2006 às 21:48
Referia-me à cidade enquanto centro aglutinador (com todas as funções administrativas, burocráticas, etc, a ela associadas) necessário enquanto centro de gravidade de uma identidade e de uma cultura. Sem cidades, há dispersão. De resto, concordo perfeitamente com o que referes quanto à qualidade de vida nas cidades. Incluindo a belíssima citação do Caeiro... ;)
De Filipe a 6 de Novembro de 2006 às 12:17
http://cheirar.blogspot.com/2006/11/nas-cidades-vida-mais-pequena.html
De Artur a 8 de Novembro de 2006 às 09:17
Este termo, urbicídio, leva-me logo a sonhar com apocalíticas destruições urbanas em megacidades a escalas galacticas. Infelizmente, fantasias à parte, o urbicídio é algo mais semelhante ao futuro imaginado por neal stephenson em snow crash ou ao nosso demasiado real presente de construtores civis patos bravos, câmaras corruptas e degradação ambiental.

(e aqui as tuas alquimias tocam as minhas ficções científicas...)

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