Quinta-feira, 18 de Julho de 2013
Se bem me esqueço

Lembro-me da luz do sol trazida pelas mãos da Donzília,

para que dormisse.

Da minha mãe a chorar frente ao lava loiças

pelo homem da camisa azul que me traria a confusão de Laio

e estranhas maravilhas, a pilhas, da Arábia.

Do cheiro a serradura e a cemitério de Chão de Meninos,

dos bolos da Cila e dos livros dos Sete que não me deixavam ler

porque também precisava de me dar com miúdos chatos, parvos e ricos.

Das sestas que não queria dormir.

Do vizinho que desapareceu e que fazia pregas na barriga e dizia que era uma bichana,

Das cascas enroladas da pele de tomate numa sopa intragável,

Num selvagem imitando o grito de um inimigo,

imitando o grito de um inimigo - e das vezes que me lembrei disso,

não por ser importante, mas porque era uma lembrança a guardar

na disformidade de Proteu,

Da Natália na primeira e na segunda classe, e de julgar que era a mais linda das meninas, nunca o tendo sido.

Num barco numa praia, na minha irmã a correr com uma menina de vestido de outra época, de um marinheiro zangado atrás delas.

De caranguejos sobre uma rocha, fugindo às mãos da minha mãe,

De um olho que nunca vi, numa fechadura que nunca espreitei, ou terei?

Da primeira declaração de amor, entre carros numa travessa, e ela, de cabelo louro sobre os olhos claros, olhando-me com espanto e piedade,

oferecendo a triste consolação de recusada amizade.

Do homem do carro, e do homem das latas,

Do Marco a descascar feijões, do pó, da comichão, de mim, sentado,

a contar a Bíblia, a vida de Haydn e da Joana d’ Arc à Florbela

na rua da minha avó. Da minha avó, perguntando de onde vinha a chuva,

do silêncio do meu avô.

Das maçãs de inverno debaixo da cama de palha de centeio,

das oliveiras abertas ao centro para receber a luz da noite,

da ribeira no inverno e dos moluscos debaixo das pedras,

da areia mastigada por vermes,

das estevas em Vale de Tábuas e de um gato selvagem fixo em mim, entre os troncos queimados dos pinheiros.

Das broas de azeite e do chiar das tremelas e dos varais,

de um regabofe de fantasmas a meio da noite. Do alçapão

que dava para o sótão, onde desciam aliens de olhos esbugalhados como louva-a-deus nas costas das cartas de jogar,

De uma cigana, que não era a Carmen (nem eu conhecia Bizet) e de uma rosa vermelha nos cabelos, da foto de uma adolescente numa banheira,

do fascínio da maldade e da redenção,

da resistência passiva de uma corajosa cobardia.

De Deus e do corpo escanzelado de Cristo,

dos olhos inexpressivos da Virgem e da voz das velhas a rezar o terço,

das rosas roubadas em maio, dos risos pueris de quem enfeita um andor,

do padre Rosa que todos os anos morria no dia das mentiras.

No mato, na urze, no estrume das ovelhas,

nos livros, nos livros, nos livros, nas bofetadas do homem da Biblioteca Itinerante,

que enviou para casa a Mensagem de Fernando Pessoa, e de como me senti importante.

Da Biblioteca do Entroncamento, dos dias perdidos,

de ver o início da Irma la Douce num café, em dias perdidos,

dos filmes de John Ford na televisão,

nas cassetes vhs aos molhos, O Último Ano em Marienbad,

numeradas. No Rui Navalho a falar dos Guns.

Da Acácia sobre o pátio da escola primária, das figueiras,

das orelhas do miúdo que não ouvia nem sentia,

de pedras penduradas em fios que puxávamos para bater às portas escondidos no outro lado da rua,

nas cascas de eucalipto com que fazíamos trenós, casas de altas paredes e ventoinhas,

numa menina afogada, num braço a sair da lama,

num inesperado caixão,

em maçãs de inverno debaixo de palha centeia.

Do calor sufocante no sótão, no pó, em papéis amarelos,

em copos do Juá.

Na fonte da Serafina, em tudo arrasada,

num ferreiro, num moleiro, num bêbedo na valeta,

no Vale da Carreira, no jogo da malha. Na dentadura branca e ofuscante do Salgado Zenha, em discursos comunistas, em cassetes piratas,

na Lara Li e no Carlos Paião,

Na cerejeira do Estreitinho, na camélia que ainda não era japoneira,

No vinho abafado, no alambique da ti Jesuína escorrendo aguardente por uma palha.

Na luz do sol a fechar-me os olhos.

Artigos da mesma série:
publicado por Manuel Anastácio às 22:02
link do post | Dizer de sua justiça | Adicionar aos favoritos
4 comentários:
De gláucia lemos a 19 de Julho de 2013 às 19:55
Que coisa tão linda o seu inventário de lembranças. Quem tem lembranças tem vida. Deus a prolongue com lembranças cada vez mais belas a acrescentar a seu valioso acervo.
De Silvério Salgueiro a 19 de Julho de 2013 às 21:57
O bom abafado era o da Tia Maria Augusta que eu também saboreei. E o Carlos Paião se bem me esqueço não abrilhantou por lá os grandiosos festejos, mas há lembranças que embora me sejam familiares também já me vou esquecendo. Há neste rol material para a tal obra literária.
De Manuel Anastácio a 20 de Julho de 2013 às 11:11
Sim, o Carlos Paião nunca foi a Carvalhal. A Lara Li sim, mas os meus pais nãome deixaram ir. Chorei a noite toda! :) --> por sinal, na única vez em que queria ir, de facto, às festas.
De Manuel Anastácio a 20 de Julho de 2013 às 11:13
E sim, o vinho abafado da Ti Augusta era, de longe, o melhor, mas a aguardente era feita no palheiro da minha tia Jesuína.

Dizer de sua justiça

.pesquisar