Todas as mudanças legais operadas numa sociedade implicam riscos e perversões. Mas a manutenção de quadros legais, nomeadamente aqueles que se sustentam em visões conservadoras da sociedade, não só os implica também como, provavelmente os promove. O conservadorismo é pai do vício e da perversão. O conservador dá largas à maldade e às oportunidades de explorar o seu semelhante (seja económica, psicológica ou sexualmente) porque se move em terreno conhecido, podendo manter a aparência de que vive num mundo formatado, normalizado, ordenado segundo preceitos divinos. Um conservador é, necessariamente, um hipócrita. O conservador, com o seu manto bordado a ouro, esconde todo o género de imundícies. Não é uma opinião. É um truísmo. É tão verdade e evidente que nem sequer necessita de comprovação. Até os textos sagrados dos conservadores o dizem.
Uma mudança no quadro legal, como a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, abriria a possibilidade de se legalizar o incesto, diz Jeremy Irons. A primeira reação de qualquer pessoa minimamente inteligente a esta opinião é de que o gajo deve ser tolo. Mas, depois, vemos que até tem alguma consistência. Pouca, muito pouca, mas é um argumento a ser analisado. À primeira vista parece que Irons segue o caminho da argumentação conservadora de que aprovar a própria homossexualidade como comportamento aceitável na sociedade é abrir caminho a todo o género de perversões. Não é esse o caminho que ele segue, e ainda bem. Pode parecer o argumento mais idiota de todos que é: “se homens podem casar com homens e mulheres com mulheres, também teremos de aprovar o casamento com animais ou com objectos”. Novamente, usa-se o argumento de que a aprovação de uma lei que irá beneficiar uma grande quantidade de pessoas não deve passar porque permitirá a um grupo residual de pessoas expor perante o mundo as suas taras e maluquices, o que implica que a homossexualidade seja uma maluquice, coisa que já nem a maior parte dos conservadores tem a lata de dizer em público - acontece que o argumento é absurdo, porque não é possível aferir a vontade de um animal ou de um objecto, por isso o casamento entre um homem com uma boneca insuflável ou com uma ovelha é pura e simplesmente impraticável.
O argumento de Irons é de outra ordem. Segundo ele, o incesto é considerado algo de detestável e odioso aos olhos da sociedade devido ao fantasma da endogamia, mas não sendo possível a um pai gerar um filho de um filho ou, uma mãe uma filha de uma filha, os gajos que percebem de finanças e de esquemas para enganar o estado poderão aproveitar a porta aberta pelo novo quadro legal para que os filhos não tenham de pagar impostos em caso de herança. Repare-se que é um argumento que, supostamente, não tem base num julgamento moral sobre o comportamento sexual de quem quer que seja. Mas quase que o faz, ou fá-lo de forma velada, ao fazer menção de um tema considerado tabu: o incesto que, para muita gente, é sinónimo de abuso sexual de menores. A verdade é que não é. Há muitos casos de amor incestuoso pelo mundo fora que são tolerados ou mesmo defendidos pelas populações locais por esta ou por aquela razão.
A diversidade de situações geradas pela interação entre seres humanos é tão grande que legislar será sempre assumir riscos. Mas é obrigação do futuro ser perigoso, dizia Alfred North Whitehead. Há sempre que ponderar a quem vai servir a lei: a uma maioria ou a uma exceção? Repare-se que os casamentos incestuosos que Irons teme não seriam incestuosos de todo - seriam apenas um artifício legal para não pagar impostos. Mas, ainda assim, só em casos muito excecionais é que alguém mancharia a reputação de um filho para manter a fortuna de família intacta. A aprovação de uma lei na generalidade não deve ser posta em causa por argumentos que devem ser analisados na especialidade. A lei deve ser mutável e fluida e todos os abusos verificados devem implicar adendas ou retificações na mesma. É complicado. Mas viver é complicado mesmo. Habituem-se.