Quinta-feira, 4 de Abril de 2013
Orgasm (Rock Cave), de Cromagnon

Se a música serve para desinquietar, como pretende qualquer arte digna do nome, e não criar ambiente, como mera arte decorativa, os Cromagnon, banda dos anos 60, saberiam dar ao mundo uma boa dose de desinquietação, caso o mundo quisesse dar ouvidos a miúdos que, se calhar, só queriam provocar. O que já não é mau como projeto artístico, digo eu. O seu álbum “Orgasm”, que mais tarde foi republicado sob o título de Cave Rock não será, provavelmente do agrado de muita gente. Logo na primeira e mais famosa das faixas, Caledonia, sons guturais e volumes sincopados de toneladas de decibéis, que associamos hoje às bandas de Heavy Metal, em conjunto com referências primitivas, folclóricas (no melhor sentido da palavra) e mesmo visceralmente biológicas, formam um objeto sonoro a que qualquer amante da arte dos sons não devia ser indiferente. Ritual Feast of the Libido, a segunda faixa, dificilmente será considerada fruto de uma mente equilibrada. O som de rochas e gritos e regurgitações cavernícolas é capaz de provocar pesadelos ao mais resiliente dos ouvidos, mas é, definitivamente, uma experiência marcante. Organic sundown, mais tribal e xamânico, decepciona um pouco quem se tenha entusiasmado com o início do álbum, dado o seu carácter mais introspectivo. Em Fantasy, as gargalhadas e grunhidos iniciais e sons vocais semelhantes a flatulências dão lugar a ruídos urbanos contemporâneos que se diluem num tema terno que regressa após uma sucessão de estática com fragmentos radiofónicos sobre a linha persistente e aguda de uma sirene, desembocando em vozes que exigem liberdade. É difícil de dizer qual a verdadeira intenção, se é que há intenção nesta forma de indisciplina estética e de alegre desprezo pelas normas. Seja uma forma de humor ou um ato de pura contracultura, não se pode, contudo, considerar que isto seja lixo sonoro. A utilização da guitarra acústica em registo de mera repetição em Crow Of The Black Tree e as suas vocalizações uivadas tornar-se-ia, a certa altura, totalmente convencional na criação de um ambiente pagão tendente ao transe não fosse a liberdade escarninha que desconcentra tudo, tornando-se a canção num objeto que nega qualquer intenção séria do ponto de vista artístico, se considerarmos os estados alterados de consciência uma forma legítima de usufruir da dita cultura séria (quase exclusivamente aquela que não está institucionalizada). Genitalia, por sua vez, parece repegar na imagem dos corvídeos, conseguindo converter gemidos orgásmicos num frenesi a capella, dando conta do experimentalismo versátil de um álbum que não se sabe bem localizar na história da música, se em precedência de estilos musicais que viriam depois, se em vias paralelas. O ambiente religioso de um cântico gregoriano ou de um mantra em sobreposição e alheio a um louco solo de guitarra eléctrica termina um álbum tantas vezes amado pelo seu sopro de loucura profética, mais vezes ainda odiado pelo desconforto e estranheza que provoca e, mais ainda, injustamente ignorado, até pelos mais irreverentes e indisciplinados dos vanguardistas.  

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publicado por Manuel Anastácio às 03:20
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