Domingo, 30 de Março de 2014
Uma arte, de Elizabeth Bishop (versão II)

A arte de  perder não exige grande perícia;

tantas coisas se afiguram moldadas ao intento

de se perderem, que a sua perda não é notícia.

 

Dá aos extravios autoridade vitalícia

sobre chaves ou sobre a hora  entornada ao vento.

A arte de  perder não exige grande perícia.

 

Depois, pratica-a  arduamente e fá-la mais propícia

a lugares, nomes, ou  destinos sem provimento

para viagens. De nenhuma se fará notícia.

 

Perdi o relógio de minha mãe. E, sem sevícia,

três casas onde não terei já acolhimento.

A arte de  perder não exige grande perícia.

 

Perdi duas cidades e, com elas, a primícia

dos meus domínios, rios, o mais vasto monumento.

Sinto-lhes a falta, mas perdê-los não foi notícia.

 

—Até perder-te  (a tua voz, teus gestos de carícia

em que me perco). Mentir não teria cabimento:

A arte de perder não pede especial perícia

nem que pareça tão (diz!) uma tão triste notícia.

 

Versão de Manuel Anastácio

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publicado por Manuel Anastácio às 18:16
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Sábado, 29 de Março de 2014
Uma arte, de Elizabeth Bishop

A arte de perder é tão fácil de dominar;

A tal destino se prestam tantas coisas na vida

Que, por perdê-las, não se afigura qualquer azar.

 

Perde algo todos os dias e faz por concordar

com a perda das chaves ou da hora consumida.

A arte de perder é tão fácil de dominar.

 

Depois, pratica o perder mais e mais, sem abrandar:

lugares, nomes, ou a direção apetecida

de viagens. Nada por que te tentes a chorar.

 

Perdi o relógio da minha mãe. E vi escapar

três lindas casas, de uma a outra, despedida.

A arte de perder é tão fácil de dominar.

 

Perdi duas cidades. E, de que serve contar,

dois rios, um continente, tanta terra invadida.

Sinto-lhes a falta, mas pouco ou nada a lamentar.

 

E perder-te (a graça da tua voz, esse teu ar

que tanto adoro), digo em verdade desimpedida

Que a  arte de perder é fácil de dominar.

Mesmo que pareça (diz!) grave coisa a lamentar.

 

Tradução de Manuel Anastácio

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publicado por Manuel Anastácio às 12:26
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Domingo, 23 de Março de 2014
Manual de Etiqueta e boa Educação no Facebook: contributo I

Em Portugal, escrever sobre etiqueta e boa educação sempre foi atividade de sucesso em termos monetários e reconhecimento social. O fenómeno Paula Bobone veio demonstrar outra coisa ainda. Que não é preciso ser-se bem educado para dar aulas de boa educação, da mesma forma que o padre não precisa de ser homem de fé para que a comunhão seja válida, pobre Cristo, humilhado mesmo depois da Glória, obrigado a fazer renascer a sua carne nas mãos de tanta gente malvada. Adiante.

 

Ora, eu não sou gente recomendável no que diz respeito a regras de boa educação em qualquer meio de convivência social que se firme apenas no conceito de liberdade de associação entre pessoas. Se sou obrigado a associar-me com alguém, seja profissionalmente, seja contratualmente, seja no decorrer das minhas mais primárias necessidades, sou obrigado a ser bem-educado. Entre amigos (o que pode incluir ou não a família), posso ser eu mesmo. Que eu mesmo não sou bem-educado. Ninguém é. Que fique bem assente que a boa educação é, acima de tudo, uma máscara conveniente para o trato desimpedido e funcional com outros seres humanos com quem não temos confiança. Uma forma de manter a ordem social mínima entre desconhecidos ou pessoas que não partilham qualquer tipo de afeição. De resto, a boa educação, entre amigos, é altamente prejudicial e é a principal causa dos mal-entendidos que levam ao fim das amizades. Uma amizade firmada em sinceridade é duradoura. Uma amizade firmada em regras e códigos termina sempre com cisões insanáveis e cismas sangrentos. Adiante.

 

Não sou gente recomendável no que a regras de etiqueta diz respeito. Mas tenho alguma capacidade de análise dos comportamentos humanos pelo que posso adiantar ao que venho.

 

Há um pequeno grupo de utilizadores do facebook que utiliza sistematicamente o mural das outras pessoas para publicitar as suas coisas, seja um meme, seja um poema, seja um pensamento. Daí não viria mal ao mundo se partilhasse um determinado estado no mural de uma pessoa, ou duas pessoas, ou de um grupo restrito de pessoas que estão diretamente relacionadas com o assunto e causa. Por exemplo: "E então, ppl, como está a ressaca?" pode-se partilhar no mural das ditas pessoas que podem estar de ressaca devido a uma atividade comum, desde que se saiba de antemão que desse comentário não decorrerá qualquer constrangimento profissional, familiar ou social grave. Isto é, se escrevemos no mural de uma pessoa, é como se estivéssemos a dar-lhe uma prenda. Um miminho. Algo que sabemos que aquela pessoa vai gostar. Já espetar com um vídeo de que gostamos no mural de uma pessoa que mal conhecemos, pode ser extremamente constrangedor para a pessoa em questão, e será muito bem feito se sairmos da aventura com um bloqueio nas trombas. Adiante.

 

O problema agrava-se quando alguém decide partilhar um determinado estado, identificando nele dezenas de pessoas que não têm nada em comum. Chega a data da festa da freguesia e publica-se o cartaz das festas com 43 pessoas identificadas ou mais. Os identificados, sejam da freguesia ou não, são imediatamente vinculados à festa e vêem os seus murais invadidos por comentários de gente estranha e recebem notificações de segundo a segundo, de gente que não conhece de lado algum, a comentar “a sua foto”. Imagine que lhe colam nas costas um cartaz sem que dê por isso. Enquanto vai andando pela rua, ouve comentários. Não entende bem do que estão a falar, até que descobre que a sua imagem e a sua própria identidade foram parasitadas pela mensagem de um terceiro que, aproveitando-se do facto de ser seu “amigo” lhe deu uma palmada nas costas e, com ela, um outdoor.


Um poema dedica-se a uma pessoa ou a grupo específico de pessoas. Nunca a mais de três pessoas. E devemos ter a certeza de que essas menos de três pessoas não vão ficar constrangidas com a mariquice que é ter um poema com dedicatória nos seus murais. Quem diz poema, diz a anedota, a convocatória para uma manifestação, a fotografia bonitinha de gatinhos, paisagens de sol posto e pensamentos profundos do Gandhi ao Quim Barreiros. Quando dedicamos algo que consideramos belo a alguém, o destinatário até pode não gostar da oferta, mas entende a intenção. Vê nisso um gesto de bondade. Contudo, se dedicamos o fruto das nossas preferências a mais de uma dezena de pessoas estamos a funcionar como parasitas. Entramos na esfera pessoal de alguém e associamo-la à força a um conjunto de pessoas de outra esfera. Isso é violação! Não é uma homenagem. Não é um presente. É usarmos os outros para promovermos as nossas mesquinhas preocupações. É para isso que serve o botão “Gosto”: para as pessoas se associarem às nossas preocupações, se assim entenderem. Ao identificarmos as pessoas antes delas terem conhecimento da mensagem estamos a obrigá-las a assumir uma posição que pode não ser a delas. É uma atitude ditatorial, violenta. Pensem nisso. Boa noite.

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publicado por Manuel Anastácio às 19:55
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Segunda-feira, 17 de Março de 2014
Aurora dos Pinheiros

Nas cinzas 
Na cama rasa 
Na erva mansa junto à estrada.
Na noite escura,
Na madrugada.
Na rua em que mora o nome 
Gravado
Sem que saibam que é o teu.
Que é também o meu,
Feito de Aurora, de resina 
De Glória desamparada.

 

À minha avó, que nunca me leu,

 

Mas ouviu-me a ler.
Entre os suspiros do entardecer,
Deitada no colchão de centeio
Batido na varanda das Impatiens.

 

Ouvias-me, lendo coisas de outros mundos.
Palavras que não conhecias,
Nomeando reinos de impossibilidades no teu estreito cone de luz
Onde eu ficava a ler e a tresler na minha tardia infantilidade
Livros que não eram para a minha idade.
É ali que ainda fico,
Ao teu lado, às vezes,
Flutuando no cheiro das maçãs de inverno
Engelhadas do frio
Com a doçura da idade.

 

Como eras, parece que ninguém o soube, além de mim.
Rude de palavras, sem pejo nos gestos, 
Escandalosa, altiva
Na tua nobre e camponesa complexidade.
Quem te conhecia para além da tua falta de vergonha geminada de ternura?
Quem te conheceu melhor no teu olhar triste?
Sabes que ninguém mais te amou tanto as rugas
E os teus olhos sábios
Conspícuos
E que de ressaca seriam se marés houvesse a teus pés.


Quem te entendia melhor que eu?
Quem me entendia melhor que tu?


Havia poesia nos silêncios das palavras que te faltavam
E nos conceitos que não te deram a aprender.

Nascida para outros tempos,

Quantos palcos por ti esperaram,

Quantas cátedras de sublime sapiência?
Quantos embevecidos ouvintes por ti passaram 
Sem te ouvir? 

 

Um dia escrevi sobre a minha avó.

Um dia apenas o consegui.
E não falo de hoje.
Apenas uma vez falei
Sobre a dor com que me pesas
Com tudo o que gostava que visses.

Pensei em ti quando abracei outros ventos
E me entreguei às chuvas frias de outras manhãs
Desejei apresentar-te à terna doçura que o mundo me dava
Mas de ti nada restava
Senão a sepultura abandonada.


E tu, apenas viva em mim
Num eu que se desligava
Do que de ti restava em mim.

 

Tanto me pesa o último olhar
Que tive como despedida.

Na cama rasa 
Na luz doentia

De uma eterna madrugada.

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publicado por Manuel Anastácio às 21:01
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