Depois de um papa cujo único mérito foi resignar-se antes que a Irmã Morte o fosse buscar, os cardeais decidiram, com alguma sensatez, escolher alguém com o perfil necessário para ser canonizado em vida. Francisco sabe já que, quando morrer, começarão a tratar do processo para o tornar oficialmente santo. Oficialmente porque, mesmo segundo os critérios teológicos do catolicismo, haverá com certeza mais santos no céu do que aqueles a quem o Vaticano põe o carimbo de certificação de qualidade. E não vou discutir agora se alguns merecem ou não serem santos. Eu não participo no jogo, quem participa é que deve pôr em causa as regras do mesmo. Mas, ainda assim, este papa, a meu ver, tem sido sobrevalorizado. Eu mesmo embarquei no entusiasmo no simples momento em que ouvi dizer que chamar-se-ia Francisco, o nome do santo que, no meu abalável agnosticismo (inabalável até ao momento), esteve mais perto do ideal cristão da ingenuidade infantil. Acontece que este Francisco não é Francisco de Assis. Pode entrar na morada dos pobres, caminhar entre os pobres, rir-se com os pobres; pode não cair no miserável ridículo de benzer artigos de luxo, como o papa anterior. Mas não é Francisco de Assis, até porque Francisco de Assis nunca desceria à indignidade de ser bispo e muito menos de ser papa. Aliás, como o próprio Jesus Cristo, o mais anti-sacerdotal e anti-hierárquico dos líderes religiosos da história da Humanidade. Hoje, vejo algumas pessoas a abanar ramos de palma e a gritar hossanas por uma bela treta dita pelo papa, treta essa interpretada abusivamente como um sinal de abertura e tolerância da Igreja. No Público aparece “Papa Francisco contra a marginalização dos homossexuais” - título interpretativo de um discurso puramente conservador. Veja-se: “O Papa lembrou que “o catecismo da Igreja Católica diz muito claramente que os homossexuais não devem ser marginalizados [por causa da sua orientação] mas devem ser integrados na sociedade”. Mas também recordou que a doutrina entende os actos homossexuais como um pecado.”. O papa disse, no fundo, que os homossexuais são aceites pela Igreja desde que... não pratiquem a homossexualidade. Só eu, neste triste mundo é que vejo como isto é ridículo?
Repare-se que os grupos neonazis russos que engatam homossexuais na net para os humilharem e torturarem publicamente poderiam subscrever na íntegra este discurso, até porque pretendem, desta forma, dar um corretivo a alguém que, no ver deles, será um pedófilo no futuro. Tudo a bem da integração numa sociedade onde ter satisfação sexual (mútua) com alguém do mesmo sexo é pecado. Heil Papa!
Por ti, amor, espero até que as estrelas...
Por ti subo até...
Por ti.
Baba-se, a criatura.
Escorre saliva pelo queixo.
Falta-lhe compostura.
É asquerosa, viscosa, a criatura,
porque saliva. Não se controla.
Vai de viola, a criatura.
No reino da normalidade,
a saliva tem sentido único. E há controlo.
Ordem, criatura.
Baba-se, a criatura. Coisa feia.
Decadente. Velhice, doença, estado demente.
Falta-lhe compostura,
à abjeta criatura.
E chora, parece que tem sentimentos, a criatura.
Talvez os tenha.
Mas falta-lhe a compostura.
Parece ter o mundo às costas
e, lá dentro, todas as culpas originais,
congénitas ou acidentais, florescem em doces súplicas.
Mas anormais.
Baba-se, a criatura.
É mais linda, que as demais,
Mais aberta, luminosa, e tudo o mais.
Mas baba-se, a criatura,
escorre saliva pelos queixos.
Não pode aspirar a mais.
Lembro-me da luz do sol trazida pelas mãos da Donzília,
para que dormisse.
Da minha mãe a chorar frente ao lava loiças
pelo homem da camisa azul que me traria a confusão de Laio
e estranhas maravilhas, a pilhas, da Arábia.
Do cheiro a serradura e a cemitério de Chão de Meninos,
dos bolos da Cila e dos livros dos Sete que não me deixavam ler
porque também precisava de me dar com miúdos chatos, parvos e ricos.
Das sestas que não queria dormir.
Do vizinho que desapareceu e que fazia pregas na barriga e dizia que era uma bichana,
Das cascas enroladas da pele de tomate numa sopa intragável,
Num selvagem imitando o grito de um inimigo,
imitando o grito de um inimigo - e das vezes que me lembrei disso,
não por ser importante, mas porque era uma lembrança a guardar
na disformidade de Proteu,
Da Natália na primeira e na segunda classe, e de julgar que era a mais linda das meninas, nunca o tendo sido.
Num barco numa praia, na minha irmã a correr com uma menina de vestido de outra época, de um marinheiro zangado atrás delas.
De caranguejos sobre uma rocha, fugindo às mãos da minha mãe,
De um olho que nunca vi, numa fechadura que nunca espreitei, ou terei?
Da primeira declaração de amor, entre carros numa travessa, e ela, de cabelo louro sobre os olhos claros, olhando-me com espanto e piedade,
oferecendo a triste consolação de recusada amizade.
Do homem do carro, e do homem das latas,
Do Marco a descascar feijões, do pó, da comichão, de mim, sentado,
a contar a Bíblia, a vida de Haydn e da Joana d’ Arc à Florbela
na rua da minha avó. Da minha avó, perguntando de onde vinha a chuva,
do silêncio do meu avô.
Das maçãs de inverno debaixo da cama de palha de centeio,
das oliveiras abertas ao centro para receber a luz da noite,
da ribeira no inverno e dos moluscos debaixo das pedras,
da areia mastigada por vermes,
das estevas em Vale de Tábuas e de um gato selvagem fixo em mim, entre os troncos queimados dos pinheiros.
Das broas de azeite e do chiar das tremelas e dos varais,
de um regabofe de fantasmas a meio da noite. Do alçapão
que dava para o sótão, onde desciam aliens de olhos esbugalhados como louva-a-deus nas costas das cartas de jogar,
De uma cigana, que não era a Carmen (nem eu conhecia Bizet) e de uma rosa vermelha nos cabelos, da foto de uma adolescente numa banheira,
do fascínio da maldade e da redenção,
da resistência passiva de uma corajosa cobardia.
De Deus e do corpo escanzelado de Cristo,
dos olhos inexpressivos da Virgem e da voz das velhas a rezar o terço,
das rosas roubadas em maio, dos risos pueris de quem enfeita um andor,
do padre Rosa que todos os anos morria no dia das mentiras.
No mato, na urze, no estrume das ovelhas,
nos livros, nos livros, nos livros, nas bofetadas do homem da Biblioteca Itinerante,
que enviou para casa a Mensagem de Fernando Pessoa, e de como me senti importante.
Da Biblioteca do Entroncamento, dos dias perdidos,
de ver o início da Irma la Douce num café, em dias perdidos,
dos filmes de John Ford na televisão,
nas cassetes vhs aos molhos, O Último Ano em Marienbad,
numeradas. No Rui Navalho a falar dos Guns.
Da Acácia sobre o pátio da escola primária, das figueiras,
das orelhas do miúdo que não ouvia nem sentia,
de pedras penduradas em fios que puxávamos para bater às portas escondidos no outro lado da rua,
nas cascas de eucalipto com que fazíamos trenós, casas de altas paredes e ventoinhas,
numa menina afogada, num braço a sair da lama,
num inesperado caixão,
em maçãs de inverno debaixo de palha centeia.
Do calor sufocante no sótão, no pó, em papéis amarelos,
em copos do Juá.
Na fonte da Serafina, em tudo arrasada,
num ferreiro, num moleiro, num bêbedo na valeta,
no Vale da Carreira, no jogo da malha. Na dentadura branca e ofuscante do Salgado Zenha, em discursos comunistas, em cassetes piratas,
na Lara Li e no Carlos Paião,
Na cerejeira do Estreitinho, na camélia que ainda não era japoneira,
No vinho abafado, no alambique da ti Jesuína escorrendo aguardente por uma palha.
Na luz do sol a fechar-me os olhos.
Portugal, o país, nasceu de um puro desejo de poder. Não houve nele desígnios divinos ou um papel predestinado na história da Humanidade. Um rapaz quis ser rei, ou chefe de um bando de gente com força suficiente para se demarcar de outros com o mesmo desejo de dominação, e para isso lutou, matou, roubou. Impôs-se com a sua força e teve a sorte de os outros, por razões diversas, não terem conseguido impedi-lo de alcançar uma independência que não era mais que uma divisão entre senhores, em que o povo não foi tido nem achado. Depois, as lendas foram criando um sentimento de unidade. De Conquistador, Afonso Henriques passou a Libertador, coisa que nunca foi a não ser, talvez, de si mesmo, se descontarmos a ajuda que deu à libertação de alguns senhores do Norte, a um bispo e a algumas comunidades monásticas. Os primeiros a morrer nas batalhas que fundaram este país não lutavam por essa idealização tribal que é a Pátria, morreram porque a isso foram coagidos pela força ou porque tentaram a sua sorte. Mais tarde, sob a bandeira de uma propaganda política sustentada em histórias da carochinha, onde não faltaram milagres e aparições, a ideia de Pátria nasceu. Morrer como português, isto é, como cãozinho fiel a um dono imposto pela ordem da força e da mentira disfarçada de religião, passou a ser uma questão de honra, um livre trânsito para o panteão dos trouxas.
Talvez não seja assim tão simples. Nestas questões, os fautores da mentira são os primeiros a acreditar nela. Daí não faltarem nobres paspalhos elevados a heróis de um valor tão alto como as ilusões de glória e grandeza. Mera vaidade. Morte, apenas. Uma Pátria é um monte de ossos. Por respeito a essa vala de enganos e vidas desperdiçadas, em vez de missas, lápides e monumentos de bronze podia, ainda assim florescer a vida, o riso, a beleza compartilhada. Isso seria uma Pátria, e estaria disposto a morrer por ela. Por uma questão de amor.