Domingo, 31 de Março de 2013
A Bíblia, a série

A forma como a série “A Bíblia” tem sido apresentada pelos meios de comunicação em Portugal é bem elucidativa do nosso miserável provincianismo. Só porque um português faz de Jesus de Nazaré, empola-se logo a recetividade de um programa de televisão de baixa qualidade, que nem respeita a história factual, nem a história dita sagrada (que dá nome à série) nem as mais elementares regras do bom gosto. Cecil B. DeMille, o extravagante reinventor da Bíblia no cinema de Hollywood acrescentava os ingredientes que julgava mais sedutores (sexo, luxo e violência) ao esqueleto da narrativa bíblica e fez, à conta disso, clássicos de inegável envergadura no que diz respeito ao entretenimento. Ora, um filme bíblico é um produto de entretenimento. A teologia no cinema só funciona se renunciar à ortodoxia e ao gosto do público. Por isso, é perfeitamente natural que o melhor filme sobre Jesus Cristo, de um ponto de vista teológico, tenha sido, paradoxalmente, feito por um autor marxista cujo público é deveras limitado e “elitista”. Ora, “A Bíblia” é uma série que não é entretenimento, nem teologia nem provocação. Limita-se à sucessão de quadros mais ou menos referidos na Bíblia - mais ou menos, porque por vezes socorre-se da tradição para completar a cena e outras vezes reinventa a coisa para ficar mais dramática e falha redondamente. A evitar.

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publicado por Manuel Anastácio às 20:04
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LXVII
A vontade de partilhar é um mistério que transcende as inevitabilidades funcionais e materiais da natureza, mas não é fruto do ensino nem da educação. Ninguém, ao ver o famoso vídeo da cadela Lilica, que acompanha estas palavras, passará a partilhar de forma ativa se não tiver já esse desejo. Partilhar de forma ativa é dispor de menos recursos para a própria sobrevivência para ajudar a sobrevivência de outros. A partilha ativa implica pôr em causa a própria qualidade de vida ou, em caso extremo, a própria vida, consistindo, nesse caso, uma forma de heroismo. A partilha passiva ocorre quando a disponibilização de recursos não põe em causa a qualidade de vida, podendo, pelo contrário, aumentá-la. A maior parte dos atos de caridade dos senhores do mundo, as festas de beneficiência, as grandes doações não são formas de partilha, mas formas de conquista de poder. Poder social, de influência sobre aqueles que se sentem em dívida para com a magnanimidade do senhor. Pode haver alguma satisfação emocional no ato que pode ser confundida com bondade real. O poderoso que chora com uma criança que morre de fome ou de doença está deveras emocionado (não necessita de fingir) mas, em princípio, não alterará em nada o esquema funcional que sustenta a sua fortuna, esquema esse que produzirá mais seres humanos em sofrimento, incluindo crianças. A verdadeira vontade de partilhar não é contagiosa. O exemplo não ensina a partilha ativa. Ensina, quando muito, a partilha passiva dos restos ou a partilha estratégica, tendo em mira a posterior exploração daquele que é momentaneamente beneficiado. Mas há casos reais de partilha ativa, seja em relação a um grupo restrito de seres vivos (como a mãe que se sacrifica pelos filhos), seja por um grupo alargado, que se pode estender a outras espécies, como acontece no caso de Lilica. Estes casos de amor e abnegação não são fruto do espírito, mas algo intrínseco aos indivíduos que os protagonizam. Uma sociedade solidária não pode assentar neste tipo de comportamento por uma simples razão: não é justo. Não é justo que aqueles que nascem com uma dose de bondade e dignidade maior que os outros se sacrifique ou, mesmo, ponha em causa a sua vida. É um desperdício de um recurso natural não passível de prospeção. É um disparate.


publicado por Manuel Anastácio às 17:55
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Lamento

Não pode o mundo salvar-se à conta de uma árvore

nem à sombra da poesia.

Mas pudesse o mundo

salvar-se, e seria na seiva calada dos ramos da madrugada,

que todas as árvores são manhãs

e todas as sementes são poemas.

Fosse o contrário,

Mas na boca dos poderosos

a palavra do poeta é um ruído ordinário.

Cita os profetas a sua própria negra profecia.

Vendem mentiras e morte com as sementes da madrugada,

arrancam árvores com as próprias mãos da alegria.

Não,

Não pode salvar-se o mundo à conta de uma árvore,

nem à sombra da poesia.

 

"Um poema ou uma árvore podem ainda sal­var o mundo." - Eugénio de Andrade

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publicado por Manuel Anastácio às 05:05
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Searching for Sugar Man, de Malik Bendjelloul

Há histórias verdadeiras que parecem mentira pelo simples facto de conjugarem em si uma infinita beleza a essa tão rara aparição chamada justiça. Seria justo todos encontrarmos o amor, e não são poucos aqueles que nele tropeçam e injustamente o rejeitam como lixo. Seria justo recebermos a retribuição dos outros conforme o nosso esforço, dedicação e mérito. Mas é tão rara esta carícia do Universo, que todo aquele que teve a felicidade do seu beijo retribuído devia, por força, seguir o caminho dos justos - infelizmente, há quem sendo justamente acarinhado pelo Universo, pela sua ingratidão consiga transmutar a justiça em perversão. Não é o caso de um cantor norte-americano, Sixto Rodriguez, que escreveu e interpretou algumas das peças musicais mais verdadeiras da sua época. Em 1970, lançou um álbum chamado Cold Fact e em 1971, o álbum Coming from Reality. Neste último, uma das canções começa pelo verso “Cause I lost my job two weeks before Christmas“. É uma canção com um suporte poético perfeito, na forma e no sentido. Curiosamente, era também uma certeira profecia. Rodriguez, duas semanas antes do Natal viu o seu contrato rescindido, já que os seus álbuns tiveram vendas praticamente nulas e desapareceu, tal como os seus discos. Podia terminar aqui. Mas às vezes, o Universo ri-se da nossa humilde ignorância. Não se sabe como, os álbuns de Sixto Rodriguez chegaram a uma África do Sul amordaçada pelo Apartheid, e tornaram-se, durante décadas, um símbolo de justa subversão para os sul-africanos de etnia europeia. Rodriguez tornou-se naquela metade daquele país, mais importante e popular que Elvis. Nos Estados Unidos ninguém sabia quem era. Na África do Sul, ouvido e amado, ninguém sabia também quem era o bardo das suas inquietações, e nasceu o mito de um cantor-poeta maldito que se tinha imolado no fogo em palco. Até que dois sul americanos quiseram saber mais sobre este homem, e como tinha sido a sua morte heroica, e descobriram que o seu profeta era vivo. A história, simplesmente emocionante, é contada no filme que ganhou, este ano, o Óscar para Melhor Documentário, “Searching for Sugar Man” e é digna de ser contada a todos, não porque haja qualquer moral  ou verdade metafísica a retirar-se de um caso absolutamente excepcional, ocorrido com um ser humano absolutamente excepcional, mas porque todos precisamos, por vezes, de um conto de fadas. E quando esse conto de fadas nos é oferecido pela própria realidade, é como se fosse a nós, sapos, que coubesse a sorte de sermos beijados pela princesa... e quantas vezes não o somos, sem o sabermos.

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publicado por Manuel Anastácio às 03:31
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LXVI

Os batedores de caça espantam as presas escondidas nos arbustos, e os nédios nobres teutónicos, preguiçosamente, apontam as armas para as peças que melhor figura farão como naturezas mortas nas suas fartas cozinhas.

 

Natureza morta com caça, de T. Mather, de 1671

 

La Règle du Jeu, de Jean Renoir. Cena da caça.
publicado por Manuel Anastácio às 00:16
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