A forma como a série “A Bíblia” tem sido apresentada pelos meios de comunicação em Portugal é bem elucidativa do nosso miserável provincianismo. Só porque um português faz de Jesus de Nazaré, empola-se logo a recetividade de um programa de televisão de baixa qualidade, que nem respeita a história factual, nem a história dita sagrada (que dá nome à série) nem as mais elementares regras do bom gosto. Cecil B. DeMille, o extravagante reinventor da Bíblia no cinema de Hollywood acrescentava os ingredientes que julgava mais sedutores (sexo, luxo e violência) ao esqueleto da narrativa bíblica e fez, à conta disso, clássicos de inegável envergadura no que diz respeito ao entretenimento. Ora, um filme bíblico é um produto de entretenimento. A teologia no cinema só funciona se renunciar à ortodoxia e ao gosto do público. Por isso, é perfeitamente natural que o melhor filme sobre Jesus Cristo, de um ponto de vista teológico, tenha sido, paradoxalmente, feito por um autor marxista cujo público é deveras limitado e “elitista”. Ora, “A Bíblia” é uma série que não é entretenimento, nem teologia nem provocação. Limita-se à sucessão de quadros mais ou menos referidos na Bíblia - mais ou menos, porque por vezes socorre-se da tradição para completar a cena e outras vezes reinventa a coisa para ficar mais dramática e falha redondamente. A evitar.
Não pode o mundo salvar-se à conta de uma árvore
nem à sombra da poesia.
Mas pudesse o mundo
salvar-se, e seria na seiva calada dos ramos da madrugada,
que todas as árvores são manhãs
e todas as sementes são poemas.
Fosse o contrário,
Mas na boca dos poderosos
a palavra do poeta é um ruído ordinário.
Cita os profetas a sua própria negra profecia.
Vendem mentiras e morte com as sementes da madrugada,
arrancam árvores com as próprias mãos da alegria.
Não,
Não pode salvar-se o mundo à conta de uma árvore,
nem à sombra da poesia.
"Um poema ou uma árvore podem ainda salvar o mundo." - Eugénio de Andrade
Há histórias verdadeiras que parecem mentira pelo simples facto de conjugarem em si uma infinita beleza a essa tão rara aparição chamada justiça. Seria justo todos encontrarmos o amor, e não são poucos aqueles que nele tropeçam e injustamente o rejeitam como lixo. Seria justo recebermos a retribuição dos outros conforme o nosso esforço, dedicação e mérito. Mas é tão rara esta carícia do Universo, que todo aquele que teve a felicidade do seu beijo retribuído devia, por força, seguir o caminho dos justos - infelizmente, há quem sendo justamente acarinhado pelo Universo, pela sua ingratidão consiga transmutar a justiça em perversão. Não é o caso de um cantor norte-americano, Sixto Rodriguez, que escreveu e interpretou algumas das peças musicais mais verdadeiras da sua época. Em 1970, lançou um álbum chamado Cold Fact e em 1971, o álbum Coming from Reality. Neste último, uma das canções começa pelo verso “Cause I lost my job two weeks before Christmas“. É uma canção com um suporte poético perfeito, na forma e no sentido. Curiosamente, era também uma certeira profecia. Rodriguez, duas semanas antes do Natal viu o seu contrato rescindido, já que os seus álbuns tiveram vendas praticamente nulas e desapareceu, tal como os seus discos. Podia terminar aqui. Mas às vezes, o Universo ri-se da nossa humilde ignorância. Não se sabe como, os álbuns de Sixto Rodriguez chegaram a uma África do Sul amordaçada pelo Apartheid, e tornaram-se, durante décadas, um símbolo de justa subversão para os sul-africanos de etnia europeia. Rodriguez tornou-se naquela metade daquele país, mais importante e popular que Elvis. Nos Estados Unidos ninguém sabia quem era. Na África do Sul, ouvido e amado, ninguém sabia também quem era o bardo das suas inquietações, e nasceu o mito de um cantor-poeta maldito que se tinha imolado no fogo em palco. Até que dois sul americanos quiseram saber mais sobre este homem, e como tinha sido a sua morte heroica, e descobriram que o seu profeta era vivo. A história, simplesmente emocionante, é contada no filme que ganhou, este ano, o Óscar para Melhor Documentário, “Searching for Sugar Man” e é digna de ser contada a todos, não porque haja qualquer moral ou verdade metafísica a retirar-se de um caso absolutamente excepcional, ocorrido com um ser humano absolutamente excepcional, mas porque todos precisamos, por vezes, de um conto de fadas. E quando esse conto de fadas nos é oferecido pela própria realidade, é como se fosse a nós, sapos, que coubesse a sorte de sermos beijados pela princesa... e quantas vezes não o somos, sem o sabermos.
Os batedores de caça espantam as presas escondidas nos arbustos, e os nédios nobres teutónicos, preguiçosamente, apontam as armas para as peças que melhor figura farão como naturezas mortas nas suas fartas cozinhas.
Natureza morta com caça, de T. Mather, de 1671