Quarta-feira, 25 de Abril de 2012
Guimarães, O Passado numa breve homenagem à cidade: Património fotográfico e literário, de Célia Fernandes

 

 

Quando se passa grande parte da vida a recolher memórias, imagens, palavras, a vasculhar os cantos das prateleiras e das gavetas, a mente do investigador entra numa realidade nebulosa onde o passado e o presente se confundem, onde os lugares se tornam fantasmas. Guimarães, sendo uma preciosa caixa de memórias, é também uma cidade palimpséstica, como qualquer memória. Este livro de Célia Fernandes não é um livro que sistematiza, mas um livro que confunde. E nisso é o próprio retrato desta cidade onde as pedras nunca encontraram lugar fixo, onde as muralhas, as torres, as portas, as árvores, divagam ao sabor das vontades de cidadãos que vacilam entre a reverência ao passado e a vontade de o reescrever. E é isso que torna Guimarães uma cidade particularmente poética, saturada de simbolismos que vão para lá da honra fundadora de um país tão indefinido na sua Glória e no seu destino quanto as profecias nacionalistas do Bandarra. Lânguida, serena, vetusta, rica, trabalhadora... são adjetivos que se sucedem em textos que se sucedem sem outra vontade que não a de nos confundir e questionar que cidade é esta que tanto nos pesa no peito, que tanta nostalgia nos provoca e que tão contraditoriamente nos apaixona pela sua gente miserável e infinitamente feliz, honrada e arruaceira. E Célia Fernandes provoca-nos com os textos que escolhe e que foi recolhendo deste e daquele autor, sobre o mito, sobre as gentes, as ruas, os trabalhos, os cheiros. E, entre o negro e o branco das fotografias, distribuídas sem razão aparente, há um diálogo desconexo mas tão cheio de sentido quanto a sucessão de episódios no "Alice no País das Maravilhas", justamente citado pela autora no prefácio. Fragmentária ou fragmentada, cada peça apresentada não pretende informar, mas mergulhar o leitor ocioso e sedento de imagens do passado nas memórias que tomam formas vagamente reconhecíveis, como nas fotografias de um álbum encontrado num sótão alheio, onde as palavras escritas no verso aparecem na sua incógnita glória de pensamento arrancado a uma história que ninguém saberá contar nem reconstituir. Quem era esta gente que não deixou escritas as suas paixões? Que calaram elas entre as máquinas de fiação ou entre os eflúvios venenosos dos curtumes? Que vontades se perderam entre o aprumo fascista e orgulhoso do saudosismo das comemorações dos mitos fundadores? Que sensualidade estranha é a destas raparigas que encantam os escritores que delas falam como se o clima fosse mais quente e mais bafejado pelo Mediterrâneo, quando a chuva que se faz sentir nas paredes molhadas de granito é toda atlântica? É um livro de questões, não de respostas. Um poema de amor a uma cidade de "estreitos portais, escadas empinadas e miúdas gelosias", onde se escondem olhares que nos fazem fantasiar romances que nunca acontecerão, roubados que foram ao nosso tempo, por um Tempo que, aqui, passa como não passa em mais lado nenhum. 

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publicado por Manuel Anastácio às 21:57
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Quinta-feira, 19 de Abril de 2012
O Coração Sabe, de Vasco Ferreira Campos

Que "O Coração Sabe" coisas que o intelecto se recusa, por teimosia, a olhar de frente, todos sabemos. Mas poucos são aqueles que as sabem transformar em certezas e, menos ainda, aqueles que as conseguem expor no seu esplendor de coisas não corrompidas pelo pensamento. Vasco Ferreira Campos é um poeta capaz de definir as certezas com a mesma convicção com que defendemos os nossos pressentimentos. É um poeta das coisas concretas, tal como a memória as desencanta dos recantos mais luminosos daquilo que nos define enquanto pessoas. Há nos seus poemas um clarão místico, de coordenadas meridionais e orientais, com toques de uma religiosidade e fé pagã, natural, alheia à catequese. Da mesma  forma que uma criança, perante o rosto das respostas que lhes são dadas, não aceita a possibilidade do engano, há uma puerilidade sábia e reflectida em cada um dos seus versos ("agora até sou mais inteligente, mais convencido / e, inevitavelmente, menos sabedor"). 

 

A dedicatória do livro de poemas que tenho agora ao meu lado é dirigida aos seus filhos. E Vasco Ferreira Campos deixa-lhes, neles, uma herança de certezas talvez deles recebida. É à luz do olhar infantil que a sua poesia, madura, justifica esta primeira impressão de infância recuperada, com uma força descritiva e evocadora ao modo de Proust, mas de forma sintética e quase epigramática. Chamei um dia, a um dos poemas deste livro, um tratado de antropologia íntima. É daquelas expressões que eu gosto de buscar ao baú das minhas impressões confusas, mas que, no fundo, o meu coração sabe estarem certas. Antropologia, dizia eu, mas poderia chamar-lhe, também, epistemologia prática. Uma epistemologia que legitima alguns enganos (não erros) que nos deixam uma esperança intimamente justificada de estarmos certos. Mas as palavras do Senhor Vasco, como o conheci pela primeira vez, nem são dessa esterilidade discursiva para a qual está a cair este meu texto (e que já me fez perder 60% dos leitores que avançaram para lá da segunda linha de texto), nem exigem profundidades de análise porque convém que sejam lidas de olhar lavado e com o estado de espírito próprio de quem vai ser admitido numa casa acolhedora, a meio de uma tempestade ou a meio da desolação da inexistência. E há, de poema em poema, um percurso onde nos confrontamos com a infância, as responsabilidades que assumimos e para as quais nos faltam a simples possibilidade de as manter, não por impotência, mas pela própria essência do devir e da entropia, a felicidade dos espaços familiares, a intimidade dos olhares sempre à procura de um horizonte fixo onde assentar certezas sem nome, mas luminosas e propiciadoras de uma paz que ora toma a forma de uma casa ora a sombra de uma árvore (talvez ambas, a mesma coisa). Mas sempre que evoca a árvore ou a casa, não o faz de forma abstrata. As árvores e as paredes têm uma realidade própria feitas de experiências sensoriais sugestivas, mas sugerindo sempre verdades íntimas que se confundem com verdades universais, da mesma forma que o contato erótico, sugerido mais pela cadência dos versos nos poemas que pelas imagens mínimas do cabelo ou da pele humedecida, toma a mesma certeza intemporal, semelhante à certeza da morte, tão próxima da certeza da própria existência. A dignidade humana é feita destes arrepios feitos de tempo, espaço, memória ("os nossos mortos / têm a localização exacta / dos seus vivos") e na conciliação de todas as dualidades graças à escolha, a cada passo, de um novo abrigo: a casa iluminada, a árvore, os objetos de um quotidiano harmonioso e belo, não obstante a corrupção do mundo e - principalmente - os filhos, herdeiros das certezas e dos enganos cósmicos que mantêm a sucessão das estações e a permanência das coisas belas enquanto manifestação da própria natureza em nós, que somos apenas um elo entre as ternuras a nós passadas ("As pombas esvoaçam em redor do meu pai. // A minha mãe por todo o lado") e as que, o coração sabe, transparecem na contemplação da luz que ilumina, reciprocamente, o amador transformado na coisa amada.

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publicado por Manuel Anastácio às 00:59
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Segunda-feira, 16 de Abril de 2012
Terceira canção última

Os estandartes vermelhos da penumbra

segredam promessas de bom tempo a quem conta ficar

mais um dia ao teu lado. E o calor que se escapa das pedras

passa por mim sem resistência. Não há, em ser, coerência

para mais um dia. Nem ciência que me cure desta invernia

em que entro, em pleno estio.

Tenho frio.

 

As muralhas cinzentas da manhã não terão já sentinelas

nem os meus passos encontrarão nelas o rasto dos teus.

A fome que tinha de ti, gravada em fotografia digital,

por ninguém será resgatada da cache universal

onde depositámos os nossos segredos,

esquecidos que estávamos da quarta parede.

Tenho sede.

 

O abismo gélido do meio dia será repasto de aves de rapina

com olhos de angélica virgem com pestanas de vadia.

Ter-me-ás abandonado.

Terei deixado as palavras e nem os sonhos nos ligarão.

Seremos talvez os sonhos.

Seremos talvez

 

As formas que as nuvens tomam quando não as vemos.

Seremos talvez isso.

O corpo morto sobre o qual se oficia o feitiço

Nada faz. Mas traz

de volta

a quarta parede

virada para uma plateia vazia

 

O abismo gélido do meio dia.

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publicado por Manuel Anastácio às 23:16
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Capitães da areia, de Cecília Amado

Dizer que esta adaptação de Capitães da areia é um filme belo é pouco. Como se poderia adaptar uma história destas hoje em dia, em que os excessos do cinema atual obrigam a mostrar as feridas sendo abertas e o sangue salpicando a tela? Esta não é uma história de violência, nem de delinquência, nem de bandidagem revoltada. É uma história de amor adolescente que pouco foge ao universo poético das histórias para a infância. Cecília Amado desenha a história com a mesma ingenuidade poética dos seus heróis, com a mesma ingenuidade com que terá lido a história quando tinha catorze anos e a fez apaixonar-se por Pedro Bala. O recurso a jovens atores não profissionais dá-lhe uma atmosfera de neorrealismo extemporâneo, mas a poesia plástica de cada plano obriga a classificar todo o conjunto como um conto de fadas doloroso, mas de uma doçura suavizada por intervenção dos orixás. Já muitas vezes o disse, e reafirmo, que nunca tendo estado no Brasil, encontrei aí uma Pátria que me foi roubada sem nunca a ter tido. Hoje voltei a encontrar essa luz de um país perdido, parafraseando Camilo Pessanha, e que nunca poderei encontrar. Da mesma forma que o Professor, que por justiça humana deveria ter o amor de Dora, é enjeitado a favor da virilidade extremada de Pedro Bala, também a Pátria que me acolhe em piedade o corpo e me cata os piolhos me recusa os beijos. E um filme, um livro, um conto ou um poema só são nossos quando neles nos encontramos - e eu encontro-me ali metido na minha insignificância perante a força daquelas personagens maiores que os Gregos e Troianos das epopeias. A história de amor adolescente criada por Jorge Amado é intocável, um clássico que conta verdades profundas e violentas sobre a natureza humana e a inexorabilidade dos afetos. A maior das violências e das crueldades mora no coração de quem ama. E é essa violência que conta e que tem de ser contada, mais que os golpes de capoeira e as navalhadas que algum público, sedento de sangue e arena, eventualmente procurará num filme dos dias de hoje. E este "Capitães da Areia" não é um filme dos dias de hoje, é um filme de época e de uma época, sem que deixe de ser um filme para todas as épocas. É magnífica a direção artística, são magníficos os trapos rotos que cobrem aqueles corpos juvenis onde aflora o desejo, é magnífico o sabor musical de uma ópera sambada a que não falta a tragédia de uma Pietá invertida nos seus polos masculino e feminino, mas mais magnífica é a capacidade de recusar o excesso e contar o desejo e a sua consumação sem o erotizar para além do próprio erotismo com que se nasce já, ingenuamente, num mundo onde não há, não haverá nem nunca houve, lugar para tais ingenuidades. Talvez todos vejamos apenas a luz dos países perdidos, dos paraísos perdidos transformados em estrela, como Dora, num céu onde ninguém arde de outra febre que não a da sua luz perene e sombria.

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publicado por Manuel Anastácio às 00:25
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Blues Control com Laraaji e Arji

Não sou, em termos de pensamento, muito dado aos tiques New Age e dos orientalismos místicos. Mas, às vezes, as ondas arrastam-nos até à beira desses oceanos. Molhamos neles os pés e compreendemos algo mais sobre quem somos, de uma forma ingénua, descascando as escamas que nos enchem de cataratas a vista. Não que se abram mais os olhos, nem se melhore a nitidez do que se sente, até porque os sentimentos não se exprimem em palavras a não ser através do enigma da poesia, mestra da destruição dos significados, imergindo-os no feitiço das coisas primordiais - das coisas que não sabemos, não entendemos, mas que nos empurram em direção à nossa felicidade. Laraaji (nascido em 1943) é um músico norte-americano, nascido em Filadélfia, com o nome de Edward Larry Gordon. Dedicando-se à música desde jovem, estudou violino, piano, trombone e voz nos seus primeiros anos em Nova Jersey. Frequentou  uma Universidade Historicamente Negra em Washington DC, a Howard University, com uma bolsa para estudar composição e piano. Depois, em Nova York, ainda tentou a carreira de comediante e ator.
No início dos anos setenta, ao estudar o misticismo oriental, encontrou um novo rumo para música e para a vida. Comprou a sua primeira cítara numa loja de penhores e adaptou-a depois a instrumento eletrónico, de modo a usá-la como piano. Em 1978, fazia interpretações de rua nos parques e nos passeios de Nova Iorque. No ano seguinte, foi descoberto por Brian Eno enquanto tocava na Washington Square Park. Patrocinado po Eno,  lançou o álbum "Ambient 3: Day of Radiance", o terceiro de uma série de Brian Eno dedicada à música "ambiente".  Começou então a compor versões mais longas das suas peças, gravadas em cassete e procuradas por grupos de meditação. Entretanto, expandia o seu entendimento místico do mundo com gurus como Swami Satchidananda Shri Brahmananda Sarasvati, fundador do Ashram Ananda em Monroe, Nova Iorque. Em virtude deste percurso, descobriu no riso um meio de meditação que, aliás, está bem presente nas suas composições, não só através da sua voz metálica como na da sua companheira Arji, a senhora da percussão, que entre caixinhas, vasos orientais e conchas, lança gargalhadas que irrompem numa malha sonora que, graças a um certo humor interpretativo, consegue ultrapassar a monotonia da música ambiente que, por vezes, empesta um certo tipo de comércio com cheiro a incenso. A junção da música mais electrónica dos Blues Control completa a atmosfera. Para ouvir com a cara lavada e o coração aberto ao riso do universo.

 

publicado por Manuel Anastácio às 00:18
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