"Aquele Querido Mês de Agosto" foi uma pequena revolução no cinema português. Com música dita pimba por fundo, florescia em fogo e sangue uma imagem de um povo através da sua própria expressão artística. Pegava num objeto dito "menor" ou, por vezes, considerado mesmo como reflexo da mediocridade das classes "incultas" e transformava-o em objeto de arte erudita. Não é inédito. A arte erudita, e a música em particular, sempre utilizou a arte popular como referencial cultural. Não da mesma forma como Amadeo pintava objetos do artesanato, não mantendo a sua essência e deles retendo apenas alguns atributos, como a forma parcial ou a cor, mas da mesma forma como faziam os compositores dos romantismos nacionais e regionais ou muitos dos chamados "cantores de intervenção". Usar música pimba como adereço de um filme artisticamente ambicioso não era novidade mas, que eu saiba, não tinha havido até então obra alguma que, respeitando o espírito e o objeto da música popular portuguesa recente, tão odiada e desprezada pela classe média culta, conseguisse transformá-la em arte de profundidade, reconhecendo-lhe uma dignidade própria.
Se em "Aquele Querido Mês de Agosto" havia a luz solar e a incandescência destrutiva do fogo, em Tabu, Miguel Gomes dá-nos a penumbra da nostalgia das solidões à beira de um monte fictício que dá nome ao filme e que se ergue como sombra telúrica de um continente que pesa e continuará a pesar na memória de um pequeno país onde uma solidão de pedra é apenas mascarada por tentativas anedóticas de estabelecer qualquer tipo de vizinhança. Pilar (Teresa Madruga) é uma católica progressista, uma alma justa e boa, de coração aberto aos outros, mas perdida nas contradições de afetos que nunca cumprem o objetivo de lhe encher a existência. Na casa ao lado, vive Aurora (Laura Soveral), acompanhada de Santa (Isabel Cardoso) numa relação de mútua rejeição e dependência desenhada segundo o estilo corrosivo e pausado das obras de João César Monteiro. Santa é como o Sexta-feira da obra de Defoe, onde vai exercitando as suas competências de leitura: um elemento estranho que disfarça a solidão de uma desterrada que não consegue destrinçar o sonho da realidade. "Paraíso Perdido" é o nome desta primeira parte de um filme, após um prelúdio irónico, como é irónica toda esta epopeia, reflexo de uma grandeza colonial que nunca foi mais que uma anedota grandiloquente.
Sem rejeitar a prosódia declamativa que tanto marca o cinema português desde o "Amor de Perdição" de Manoel de Oliveira, e que estava ausente na forma de falar das personagens de "Aquele Querido Mês de Agosto", Miguel Gomes, num ano em que Hollywood celebrou a força genesíaca e auroral do cinema mudo, desenvolve, depois, uma segunda parte quase muda, narrada na voz absolutamente brilhante de Henrique Espírito Santo. E essa segunda parte é, provavelmente, o melhor que já se fez em cinema em Portugal sem que lá deixem de estar todos os mestres que, até agora, apenas podiam ser apreciados por uma minoria bem pensante. Pessoas haverá que, não conseguindo aguentar um filme de Oliveira ou cinco páginas de Camilo, terão aqui a oportunidade de sentir a universalidade destes criadores portugueses, numa obra que parece não inventar nada mas cuja inovação justifica em absoluto o prémio Alfred Bauer. Inova sem rejeitar a herança cultural, transformando-a e ampliando-lhe o horizonte para lá de quaisquer Tabus que circunscrevam o limitado espaço de alcance do cinema português. E Tabu é universal, da mesma maneira que Daniel Defoe, Melville e Murnau o são e da mesma maneira que Camilo, Eça e Oliveira o deveriam ser.
A fotografia, de uma beleza sem mácula, passa pelos corpos e gestos juvenis desta segunda parte, chamada de "Paraíso", onde Ana Moreira e Carloto Cotta encarnam duas personagens dignas de figurar no Panteão cinéfilo de Afrodite, tal a carga erótica com que incendeiam cada cena que protagonizam juntos, até um desfecho abrupto e brilhante in media res, estuando no mar negro da separação e numa solidão de cinzas.
Um filme para se amar de forma perdida e incondicional. Agora e já, um clássico.
Um gafanhoto mexe as mandíbulas sem osso
Uma formiga-leão alada olha desconsolada
Os pais dos que serão mortos pelos seus filhos.
Seguem, insetos, os trilhos do nada
E no nada são tudo o que a vida alguma vez quis ser.
Uma carraça espreita a seara de sangue de uma só colheita
Um pardal alheio ao mal e à injustiça
Ouve com preguiça o canto de um santo esfarrapado,
E sobre um estrado, um pombo larga parasitas
Sobre outras caganitas onde bactérias fecais
Fazem bacanais, mas sem maldade.
Sem piedade,
Um louva-a-deus cuida dos seus
Dando o pescoço à maternidade.
E os vermes, pouco dados à estética,
Dão uma aula peripatética sobre a decomposição em fatores primos.
Uma ave-do-paraíso, sem do bem ou do mal fazer juízo,
Aceita o impreciso fluir das escolhas
E morre sem outra angústia que a angústia de morrer.
E os búzios, sem nada ouvir,
Fingem repetir o que não lhes foi dado, jamais, a discorrer.
Como é que um filme com este título, e fazendo-lhe jus de forma perfeita, consegue ser um dos meus filmes preferidos? Não sei explicar. Há partes que parecem a paródia de uma paródia a um filme de Bollywood (sendo, mesmo,um filme de Bollywood). Os atores parecem tirados dos Malucos do Riso (ou dos Trapalhões), mas com mais Graça. Não com mais piada. Graça. Porque este é um filme sobre a Graça. Não sobre a via da Graça e a via da Natureza segundo Malick. Nada de filosofias transcendentais. Apenas 1 idiota a quem a Graça dotou de uma sensatez indisciplinada e dois idiotas necessitados de quem os salve. Não um Messias. Disse-me a Maria Helena que quem acredita em nós é quem nos salva. Eu acredito nisso. Este filme também.
No meio do caminho da nossa vida
encontrei-me numa floresta escura e maldita
onde a estrada do bom caminho estava mal escrita.
Ai,
Como encontrar o bom caminho era sem sentido.
Voltei atrás.
Encontrei-te.
E o purgatório que fosse dar uma volta,
que o Paraíso era já ali.
Ah, que bom ter um bom livro para escrever
e não o fazer. É melhor ler. E, já agora,
Dormir,
Esquecer.
Para voltar atrás e voltar a conhecer
aquilo que nos faz sorrir por ser tão simples.
Dormir também é viver.
E recordar é esquecer.
O Tiago pediu a minha opinião sobre "O Diário de Anne Frank". Ora, este é um livro sobre o qual é impossível ter opinião. Lembro-me um dia de, numa aula, a professora de Língua Portuguesa ter pedido para escrevermos um texto sobre um dos momentos mais fortes, emocionalmente, da nossa vida. Eu não o fiz. Escrevi sobre uma treta qualquer sobre um filme que amava muito na altura (e que agora, embora o considere um dos filmes da minha vida, já pouco me diz) e assim escapei de ter de expor as minhas maiores dores. Até porque naquela idade temos pouco discernimento sobre a tragédia ou sobre a impressão que cada coisa, individualmente, terá na nossa vida. Uma grande amiga minha, de quem perdi totalmente o rasto, escreveu um texto sem particular valor literário mas infinitamente superior àquilo que alguma vez escrevi ou escreverei, a não ser que um dia eu venha a passar por algo semelhante (e queira Deus que não). Quando a professora entregou os textos, ela deu-mo para ler e disse que estava arrependida de ter escrito o que tinha escrito e perguntou-me o que é que eu pensava daquilo. Li o texto. Não era uma obra de grande literatura, mas estava lá tudo o que deveria estar em cada linha da grande literatura. Um grito de revolta, de dor e, ao mesmo tempo, do amor mais profundo. Não vou dizer o que lá estava escrito, porque acho que não devo, mas o importante a reter é que a literatura não é a vida. Pode orientar-nos na vida, preencher grande parte da nossa vida, mas não é a nossa vida. Na altura em que li aquele texto da minha amiga, não chorei lágrimas de comoção como já fiz por coisas menores, disse-lhe apenas que aquilo era coisa sobre a qual não poderia ter opinião. Ela fez um ar triste e disse que me compreendia. Não era possível dizer-lhe que aquela frase ficaria mais elegante dita desta ou daquela maneira, porque há coisas em que a elegância do estilo é dispensável. A verdade é superior a qualquer figura de estilo. E quando a verdade se parece com uma figura de estilo, ou estamos frente a uma anedota verídica ou perante a mais pungente das tragédias. Naquele texto havia apenas a descrição de uma noite em que alguém bateu à porta da minha amiga e deu uma notícia por meias palavras. Hoje, eu poderia dizer à minha amiga: o teu texto está excelente, mas, sabes, esse último parágrafo em que explicas o que aconteceu e não quiseram dizer quando abriste a porta era dispensável - assim como tu mesma percebeste o que te tinha acontecido com as meias palavras de quem te deu a notícia, da mesma forma o leitor o perceberá. Mas eu nunca o teria dito porque o tema era mais forte que o estilo. Um escritor com alguma capacidade sabe quando é que deve parar de narrar. Muitos jovens julgam que precisam de explicar aquilo que escrevem - e na verdade, precisam, porque estão numa altura de aprendizagem em que é preciso reflectir de forma académica sobre as coisas que escrevem. Eu sou a favor de uma educação académica. Deve-se dar prioridade às coisas certinhas e bem feitas. Os génios saberão, depois, fazer coisas novas. Mas um professor não avalia génios. Tem uma tarefa mais modesta, mas não menos importante. Os génios são avaliados pela Humanidade. É por isso que acho que aquelas histórias sobre os professores que não viram que o Einstein era um génio são um perfeito disparate. Mas voltando à minha amiga e ao seu texto: há palavras sobre as quais quaisquer palavras são demais. Onde a crítica não é possível.
Eu não considero o "Diário de Anne Frank" uma obra literária. Está bem escrito e toca na alma de qualquer um, e Anne Frank poderia bem ter vindo a ser uma grande escritora, não fosse a tragédia humana que foi, um dia, um povo ter encontrado uma ditadura de iniquidade a que se aninhar. Mas se não fosse o Holocausto, que seria daquelas páginas? Para começar, não teriam sido escritas, e Anne Frank teria escrito apenas um diário de adolescente sobre as primeiras impressões do amor. Da mesma forma como escreveu? Tenho as minhas dúvidas. A opressão, a perseguição, a miséria e a desumanidade tanto reduzem as pessoas a cinzas como podem fazer despertar nelas uma luz que permanece ao longo dos séculos. Anne Frank teve de viver, perante a permanente ameaça da morte, de uma forma mais intensa do que alguma vez teria vivido em tempo de paz e prosperidade. Não digo, com isto, que a guerra e a intolerância são boas! Jamais! Mas a verdade é que a Natureza e a História têm por vezes estas formas de justiça poética em que aqueles que poderiam passar despercebidos passam a ser heróis. Eu luto por um mundo onde os heróis seriam apenas aqueles que lutassem contra as forças da natureza a favor do seu semelhante humano. Por exemplo, já que o Tiago me pediu que lhe recomendasse um livro, faço-o agora: lê "O Escafandro e a Borboleta" de Jean-Dominique Bauby (até porque tem a ver com a tua confessada vocação). É um livro sobre alguém que, tal como Anne Frank, lutou contra um encerramento forçado e que, se não fosse esse encerramento, passaria por esta vida como um estranho - uma pessoa digna, sem dúvida, brilhante, sem dúvida, mas estranho e desconhecido para todos ou quase todos. Com uma diferença. Bauby escreveu um livro (e um dos mais belos alguma vez escritos) apenas com uma pálpebra. Não porque fosse artista de circo mas porque, encerrado no estado de saúde em que estava, só podia comunicar com o exterior com uma pálpebra. Não podia, sequer, utilizar a linguagem não verbal com que tantas vezes interpretamos as frases de quem conosco comunica. Tinha de se limitar à linguagem verbal, escrita, e a conta gontas. Mas Bauby foi um herói contra um estado de coisas que não foi provocado por outro ser humano. Foi vítima da Natureza. Talvez um dia haja algum neurocirurgião chamado Tiago Peixoto a libertar aqueles que vivem encerrados atrás de uma pálpebra - e que honra e alegria teria eu nisso, como se fosse eu mesmo a fazê-lo. Mas essa é uma luta contra as adversidades da natureza. Todos os heróis deviam ser assim. No caso de Anne Frank, o heroísmo é de outra ordem. Anne perdeu a possibilidade de viver uma adolescência normal graças à iniquidade de outros seres humanos e não porque tinha uma doença ou porque foi apanhada por uma inundação repentina. Foram outras pessoas a colocá-la naquela situação e foram outras pessoas que interromperam antes do tempo aquela obra de humanidade forçada.
O Diário de Anne Frank é mais que um livro e mais que literatura, embora existam livros mais bem escritos. É um grito de humanidade sobre o qual não podemos ter opinião. É um pedaço sagrado de uma vida, uma relíquia de valor infinito. Também os outros livros o podem ou devem ser. Mas não de forma tão violenta. Não porque o livro seja violento. De facto, parece-se bem, e apenas, com um mero diário de uma rapariga mais inteligente do que a média posta numa situação que nunca deveria ter existido. Todos os dias penso para mim mesmo como seria bom que livros como "O Diário de Anne Frank" nunca tivessem sido escritos. Não saberíamos o bem que tínhamos. Mas, Tiago, como saberia bem essa ignorância.