Graças à Ana Ramon, que me mandou o artigo a que faço referência no post anterior, dei de caras com uma couve que me dizia alguma coisa. As couves têm, no Reino das Plantas, o desprezado lugar da burrice que, no Reino dos Animais, é reservado às galinhas. Diz-se de uma pessoa que está em coma que está como uma couve, ou que se reduz ao estado de uma couve. Poderia agora discorrer sobre a capacidade, comprovada cientificamente, de as couves, como outra planta qualquer, comunicar com outras plantas da mesma espécie. Não comprovado cientificamente, mas bem capaz de ser possível, será a sua capacidade de comunicar com outros seres vivos que com elas interajam interespecificamente (afídios, lagartas da borboleta-das-couves, moscas-brancas, ervas de toda a espécie e bactérias alojadas nas raízes, incluindo as que fazem o tão detestado "potro" que se manifesta com a formação de tubérculos nas raízes das mudas jovens de couve ratinha que os meus pais rejeitavam e que eu, caridosamente, plantava num canto da horta e, não raramente, davam boas folhas durante um ano ou dois). Também podia discorrer sobre a falsa burrice das galinhas, especialmente dos pintainhos que parecem ter capacidades paranormais, se for a acreditar nos livros da coleção "Labirinto" das Edições 70. Mas quando a Ana Ramon me enviou um mail sobre as virtudes nutritivas da couve-galega (que na minha terra é couve-ratinha), quando abri o link derramou-se sobre os meus olhos uma imagem familiar. A imagem não dizia: "foste tu que me fizeste". Tirar uma fotografia tem pouco de autoria, que me desculpem os fotógrafos. É apontar e disparar. Eu sei que o ângulo, a luz e tudo o resto conta e transfigura a realidade natural em objeto artístico, mas não é disso que agora quero falar. Aquela couve falava comigo por si mesmo. As suas folhas azuladas (eu sei que eram azuladas, mas a Gláucia alertou-me novamente, e de forma terna e cúmplice para esta peculiaridade), o fundo repleto de japoneiras (que é como aqui se chama àquilo que na minha terra natal apenas é designado de "camélias") e o muro com aspeto de muralha castreja dizia-me que, por alguma razão, estava no quintal dos meus sogros, de onde se vê Braga por um canudo. Era uma couve já de mais de dois anos ou perto disso, de onde já se tinha tirado muita folha para sopa, para galinhas e coelhos, sem falar nos "netos" que são os rebentos que vão crescendo ao longo do longo do caule e com os quais se fazem um belo e bracarense arroz de netos (ao modo das sensaboronas couves de bruxelas, mas sem formar bolinhas). Ao ler os comentários do artigo, contudo, descobri muita gente a dizer que a fotografia não era uma couve galega. E o meu sangue começa a ferver perante disparates, sejam eles do foro político, estético, filosófico ou botânico. Aquilo é e sempre foi uma couve galega. Mas havia gente a dizer... imagine-se o absurdo, que era uma couve-lombarda! Aí apeteceu-me rebentar. Até que, entre os comentadores, alguém que assinou por "Zé das Couves" disse: "será que sou o único aqui a saber o que é uma couve-galega? Aquilo é uma couve-galega!". Muito agradecido fiquei ao Zé por tão preclara sabedoria. Fiquei a saber, depois, que a minha amadora fotografia foi uma segunda escolha do pessoal do Público. Ao que parece, puseram lá, em primeiro lugar, antes das críticas da acéfala multidão da internet, uma couve-lombarda belissimamente fotografada por um fotógrafo que ganha algum a disparar flashes, o que não é o meu caso. As minhas fotografias, boas ou más, são de toda a gente e toda a gente as pode utilizar para o que bem quiser sem me dar um centavo (já que vamos voltar aos dracmas é melhor readaptar a linguagem). As dos fotógrafos profissionais são protegidas por direitos de autor. Pois, a couve-lombarda podia ser muito bonita, mas não era uma couve-galega. Os jornalistas, coitados, lá tiveram de recorrer à Wikipedia e, não tendo melhor, porque os fotógrafos profissionais não gostam de couves-ratinhas, lá tiveram de utilizar a minha soberba couve-galega-ratinha do quintal dos meus sogros, soberba não à conta do meu mérito de fotógrafo, mas à conta do seu mérito de resistente exemplar de esguia generosidade. Mas continuo orgulhoso. Ser segunda escolha não é de desprezar, quando somos a escolha acertada.
Dei com uma fotografia minha no Público. Confesso que fiquei orgulhoso de coisa tão pequena...
Homúnculo, Nikolaus Hartsoecker, 1695
As coisas pequenas têm a perfeição que o tamanho apaga.
A mais bela criação humana,
reduzida ao que não é visível, apaga-se
na imperfeição do caos
que só as coisas perfeitas
conseguem reescrever.
Pensar que fomos imperfeitos
em pequenos
é próprio de quem caminha para uma certa
imperfeição
onde o que não se vê
só pode,
claro,
ser perfeito.
Por isso nos escondemos.
Poesia: arte de transfigurar a nossa ignorância com as poucas palavras que conhecemos e com as que nos faltam para dar nome ao que sabemos que existe. Mais ou menos isto. Se soar bem, tanto melhor, mas não é absolutamente necessário.
A formiga-da-madeira silente vigia, e olha
para nada. E nada se ouve, antes goteja da negra
folhagem e dos suspiros profundos da noite
no desfiladeiro do verão.
O abeto ergue-se como ponteiro de relógio
em espinhos. A formiga reluz na sombra do monte.
Grita um pássaro! E, por fim. As nuvens amontoadas, lentas
iniciam a retirada.
Numa manhã de inverno sentes como esta terra
mergulha em frente. Contra as paredes das casas
uma corrente de ar, beija-nos
fora do seu abrigo.
Rodeada de movimento: a tenda do sossego.
E o leme secreto do rebalho em migração.
Saído da escuridão invernal
sobe um tremolo
de instrumentos escondidos. É como estar
debaixo de altas tílias com o zunir
de dez mil
asas de insetos sobre as nossas cabeças.