Olha o céu atrás do nevoeiro
Fixa-o bem porque não está lá.
O que não vês não existe.
Muito menos existe o que vês.
Desculpa,
Estou numa fase nihilista.
Sê realista.
Pede o impossível.
Até porque não o vais ter.
Há demasiadas frases vazias naquilo que quer dizer alguma coisa.
Repare-se: dizemos "quer dizer alguma coisa", não dizemos, apenas, "diz alguma coisa".
Querer dizer é o grau máximo de significado comportado por um discurso.
O desejo de ser mais que discurso é o único significado possível em qualquer forma de expressão.
E o que é que eu quero dizer com isto?
Provavelmente nada. "Tudo o que tenho, trago comigo", reza um título de Herta Müller citado por Tolentino de Mendonça numa entrevista que me foi recomendada pela Maria Helena.
Tolentino de Mendonça é um sacerdote que escreve poesia. E havendo quem goste, há quem diga que na poesia dele não há mais que o fruto de um sorteio aleatório de palavras. E diz-se que, ainda que sacerdote, foi beatificado pelo comadrio da esquerdalha que infesta as letras em Portugal. Sendo eu parte da esquerdalha (mas não do comadrio), creio que também sou cultor desta escrita vazia de significado. Apesar de ler com atenção as críticas, farpas e ferrões venenosos da direitalha que, movida de ódios e azedumes secretamente segregados sabe-se lá em que escusas alcovas, se parecem com a de uma alma morta que, se não pregasse o ódio, sempre poderia fazer de Judas de palha. Aqueles espantalhos que a tradição popular portuguesa gosta de queimar por alturas deste equinócio depois de, por artes de ventriloquismo, servirem de cronistas do popularucho maldizer ou bodes expiatórios da mais lusa, primordial e rácica grunhice.
Agora vinha eu em defesa do padre poeta. Mas conheço mal. Usa imagens que, de facto, me parecem algo gratuitas e desconexas, ainda que cheias de intenção.
Em certos dias, nem sabemos porquê
sentimo-nos estranhamente perto
daquelas coisas que buscamos muito
e continuam, no entanto, perdidas
dentro da nossa casa
Pode não dizer nada, mas quer dizer alguma coisa. A mim basta-me. Prefiro o desejo ao enjoo.
A escrita, quando é sagrada, não se confunde com encíclicas e catecismos.
De SebastiAn, Embody - ensaio sobre a dança enquanto ingenuidade suprema.
Há espíritos.
Hegel falou de um.
Não sei se acredito.
Nesse.
Mas há.
Espíritos.
Talvez todos juntos
Formem um - ideia básica mas não menos plausível que não existirem
Talvez dancem e se
Ignorem.
Há espíritos.
São invisíveis.
Talvez se ignorem.
Mas existem.
Eu existo logo, eles também.
Não é método. É
Algo que só os espíritos podem saber. Aqueles que me
Guiam as mãos, o olhar, a voz
Mas não no Mundo. No Mundo não há espíritos.
Nesses não acredito.
Até porque o Mundo não existe.
Há espíritos a mais para tão pouco chão.
Se o Mundo já existiu, já não existe agora, não.
Para o Paulo Almeida
Anéis de fogo no eloquente silêncio das rosas
Sobre cinzas onde dormem deusas.
Puras, materiais, ignaras ainda da ideia de poderem,
De espírito avaras, noutro desejo transubstanciar
A lã em neve, o haver em deve, o longo em breve.
Em aros de luz há, decomposta, digo, disposta está,
Silente, quente e leve, a breve graça de acordar.
Ferve o metal de todos os desejos
No aloquete sem chave da voz humana.
E há a lança em sangue da impureza zoroastriana do fogo.
Imersa, disfarçada na maldição, há, digo, houve
A transubstanciação de amido cozido, não levedado,
Em coração. Em corpo, vida, vómito, frémito, oração
Que sobre quem a escuta cai e não se prostra em estrado raso de ilusão.
Chuva de rosas prometida em boudoir de menina feia,
Doida valquíria, Vénus perdida no corpo de Freia,
Tudo há aqui, no leitmotiv que se derrama do vento
No ébrio bafo de marinheiros
Entregues, inteiros, ao sortilégio
Do elo quente que une o Inferno ao céu
Em caminho desenhado por pés ausentes
De quem deixou o mundo há muito,
Entregue a nós - a nós, que desgraça, que desastre, - e
à lembrança vaga das filhas do Reno
sobre pedras eloquentes no seu desgaste.
No profundo hálito
Da respiração
De quem dorme, o mundo, trovejam
Todas as deusas. Semi-deusas e sementes
E os deuses, alheios, ausentes, desejam a morte do destino.
Mas sem nome, sem eu, sem religião
Ou mesmo, sem opinião ou desejo, surge
A lança ensanguentada no cálice do mais puro e pagão silêncio.
Os deuses não morreram. Não, faça-se um importuno e cristão silêncio.
No gélido túmulo das obras imperfeitas, deixaram, insatisfeitas
As suas inclinações direitas. Os deuses não morrem.
Recolhem em hibernação.
De Terence Nance, a partir da canção de Pharoahe Monch, Clap (One Day)
Diz o pessoal, a malta toda, que um dia... o povo isto, o povo aquilo. Um dia. Um dia.
Virá, dizem, o dia em que o povo fará aquilo que tem a fazer. E que é o quê?
Ganhar consciência de quê? De classe, de raça, de perspectiva? Um arrepio sobe-me pela espinha. O povo humano não é constituído por insectos sociais prontos para o sacrifício - e quando cai na ilusão de que é, sacrifica-se por meia dúzia e não pela espécie no seu todo. Como os insetos sociais, aliás. O ser humano terá sempre a ânsia do pequeno grupo, mesmo quando embandeira pelo lado da maioria, bem paga, que ama os Khadafis deste mundo. Somos eternos adolescentes e até na morte, enquanto trincamos a pílula de estricnina e apertamos o gatilho que nos torne imprestáveis como troféu para o clã adversário, até na morte, enterrados nos bunkers em que nos fechámos, continuamos crentes de que um dia o nosso povo baterá os pés, as palmas das mãos, os cabos das forquilhas justificando a morte e humilhação a que não soubémos dizer não enquanto brincávamos aos pensadores, estrategas, líderes, professores e discípulos dedicados.
Um dia. Hoje. Descobriremos que é preciso sujar as mãos para plantar uma árvore, curar um bicho ou dar à luz uma criança. Por mais luvas de cirurgião que venham a ser usadas.
Basta de dizer basta.
Espreguiço-me. E vou ao frigorífico.