Quinta-feira, 31 de Março de 2011
XXI

Olha o céu atrás do nevoeiro

Fixa-o bem porque não está lá.

O que não vês não existe.

Muito menos existe o que vês.

Desculpa,

Estou numa fase nihilista.

Sê realista.

Pede o impossível.

Até porque não o vais ter.

publicado por Manuel Anastácio às 21:01
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Quarta-feira, 30 de Março de 2011
Tolentino de Mendonça

Há demasiadas frases vazias naquilo que quer dizer alguma coisa.

Repare-se: dizemos "quer dizer alguma coisa", não dizemos, apenas, "diz alguma coisa".

Querer dizer é o grau máximo de significado comportado por um discurso.

O desejo de ser mais que discurso é o único significado possível em qualquer forma de expressão.

E o que é que eu quero dizer com isto?

Provavelmente nada. "Tudo o que tenho, trago comigo", reza um título de Herta Müller citado por Tolentino de Mendonça numa entrevista que me foi recomendada pela Maria Helena.

Tolentino de Mendonça é um sacerdote que escreve poesia. E havendo quem goste, há quem diga que na poesia dele não há mais que o fruto de um sorteio aleatório de palavras. E diz-se que, ainda que sacerdote, foi beatificado pelo comadrio da esquerdalha que infesta as letras em Portugal. Sendo eu parte da esquerdalha (mas não do comadrio), creio que também sou cultor desta escrita vazia de significado. Apesar de ler com atenção as críticas, farpas e ferrões venenosos da direitalha que, movida de ódios e azedumes secretamente segregados sabe-se lá em que escusas alcovas, se parecem com a de uma alma morta que, se não pregasse o ódio, sempre poderia fazer de Judas de palha. Aqueles espantalhos que a tradição popular portuguesa gosta de queimar por alturas deste equinócio depois de, por artes de ventriloquismo,  servirem de cronistas do popularucho maldizer ou bodes expiatórios da mais lusa, primordial e rácica grunhice.

Agora vinha eu em defesa do padre poeta. Mas conheço mal. Usa imagens que, de facto, me parecem algo gratuitas e desconexas, ainda que cheias de intenção.

 

Em certos dias, nem sabemos porquê 
sentimo-nos estranhamente perto
daquelas coisas que buscamos muito
e continuam, no entanto, perdidas
dentro da nossa casa

 

Pode não dizer nada, mas quer dizer alguma coisa. A mim basta-me. Prefiro o desejo ao enjoo.

A escrita, quando é sagrada, não se confunde com encíclicas e catecismos.

publicado por Manuel Anastácio às 20:20
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Terça-feira, 29 de Março de 2011
Movimento

 

 

De SebastiAn, Embody - ensaio sobre a dança enquanto ingenuidade suprema.


Há espíritos.

Hegel falou de um.

Não sei se acredito.

Nesse.

Mas há.

Espíritos.

Talvez todos juntos

Formem um - ideia básica mas não menos plausível que não existirem

Talvez dancem e se

Ignorem.

Há espíritos.

São invisíveis.

Talvez se ignorem.

Mas existem.

Eu existo logo, eles também.

Não é método. É

Algo que só os espíritos podem saber. Aqueles que me

Guiam as mãos, o olhar, a voz

Mas não no Mundo. No Mundo não há espíritos.

Nesses não acredito.

Até porque o Mundo não existe.

Há espíritos a mais para tão pouco chão.

Se o Mundo já existiu, já não existe agora, não.

publicado por Manuel Anastácio às 20:48
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Segunda-feira, 28 de Março de 2011
Brunilde

Para o Paulo Almeida

 

Anéis de fogo no eloquente silêncio das rosas

Sobre cinzas onde dormem deusas.

Puras, materiais, ignaras ainda da ideia de poderem,

De espírito avaras, noutro desejo transubstanciar

A lã em neve, o haver em deve, o  longo em breve.

Em aros de luz há, decomposta, digo, disposta está,

Silente, quente e leve, a breve graça de acordar.

Ferve o metal de todos os desejos

No aloquete sem chave da voz humana.

E há a lança em sangue da impureza zoroastriana do fogo.

Imersa, disfarçada na maldição, há, digo, houve

A transubstanciação de amido cozido, não levedado,

Em coração. Em corpo, vida, vómito, frémito, oração

Que sobre quem a escuta cai e não se prostra em estrado raso de ilusão.

Chuva de rosas prometida em boudoir de menina feia,

Doida valquíria, Vénus perdida no corpo de Freia,

Tudo há aqui, no leitmotiv que se derrama do vento

No ébrio bafo de marinheiros

Entregues, inteiros, ao sortilégio

Do elo quente que une o Inferno ao céu

Em caminho desenhado por pés ausentes

De quem deixou o mundo há muito,

Entregue a nós - a nós, que desgraça, que desastre, - e

à lembrança vaga das filhas do Reno

sobre pedras eloquentes no seu desgaste.

No profundo hálito

Da respiração

De quem dorme, o mundo, trovejam

Todas as deusas. Semi-deusas e sementes

E os deuses, alheios, ausentes, desejam a morte do destino.

Mas sem nome, sem eu, sem religião

Ou mesmo, sem opinião ou desejo, surge

A lança ensanguentada no cálice do mais puro e pagão silêncio.

Os deuses não morreram. Não, faça-se um importuno e cristão silêncio.

No gélido túmulo das obras imperfeitas, deixaram, insatisfeitas

As suas inclinações direitas. Os deuses não morrem.

Recolhem em hibernação.

publicado por Manuel Anastácio às 23:44
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Domingo, 13 de Março de 2011
Um dia, clap

 

De Terence Nance, a partir da canção de Pharoahe Monch, Clap (One Day)

 

Diz o pessoal, a malta toda, que um dia... o povo isto, o povo aquilo. Um dia. Um dia.

 

Virá, dizem, o dia em que o povo fará aquilo que tem a fazer. E que é o quê?

 

Ganhar consciência de quê? De classe, de raça, de perspectiva? Um arrepio sobe-me pela espinha. O povo humano não é constituído por insectos sociais prontos para o sacrifício - e quando cai na ilusão de que é, sacrifica-se por meia dúzia e não pela espécie no seu todo. Como os insetos sociais, aliás. O ser humano terá sempre a ânsia do pequeno grupo, mesmo quando embandeira pelo lado da maioria, bem paga, que ama os Khadafis deste mundo. Somos eternos adolescentes e até na morte, enquanto trincamos a pílula de estricnina e apertamos o gatilho que nos torne imprestáveis como troféu para o clã adversário, até na morte, enterrados nos bunkers em que nos fechámos, continuamos crentes de que um dia o nosso povo baterá os pés, as palmas das mãos, os cabos das forquilhas justificando a morte e humilhação a que não soubémos dizer não enquanto brincávamos aos pensadores, estrategas, líderes, professores e discípulos dedicados.

 

Um dia. Hoje. Descobriremos que é preciso sujar as mãos para plantar uma árvore, curar um bicho ou dar à luz uma criança. Por mais luvas de cirurgião que venham a ser usadas.

 

Basta de dizer basta.

 

Espreguiço-me. E vou ao frigorífico.

publicado por Manuel Anastácio às 14:29
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